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O casamento tridentino

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1. A lei e o casamento no Império Ultramarino português

1.1 O casamento tridentino

O Concílio de Trento teve suas atividades iniciadas em 13 de dezembro de 1545, buscou reafirmar os preceitos da religião Católica Apostólica Romana, num momento importante para a história da Igreja, devido à necessidade de reformas impostas pelo movimento protestante e da reabilitação do clero perante a sociedade cristã. Essas modificações tinham em vista o fortalecimento dos sacramentos e a exaltação do papel da Igreja e de seus representantes perante a sociedade22. De tal

22 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. pp. 19-20.

maneira, a salvação da alma, o fim das heresias e dos erros cometidos contra a fé estavam entre os objetivos do Concílio, como podemos ler em um dos textos:

[...] Por tanto o Sacrosanto, Ecumênico, e Geral Concilio Tridentino com assistência do espírito Santo legitimamente congregado, presidindo nele os mesmos legados da Sé Apostólica, para desterrar os erros, e extirpar as Heresias, que a cerca dos santos Sacramentos neste nosso tempo ressuscitam das Heresias antigamente condenadas pelos Padres, e as que de novo se inventam, opostas a pureza da Igreja Católica, e a Salvação das almas, insistindo na doutrina das Santas Escrituras, das Tradições Apostólicas, e no consenso de outros Concílios, e Padres, julgou se devem estabelecer, e decretar estes presentes Cânones; e os de mais que restam para se concluir perfeitamente a obra começada, com o adjutório do Espírito Santo os publicará depois 23.

Com esse objetivo reformador e buscando desterrar os erros que desviavam os fiéis e os próprios clérigos dos sacramentos, o Concílio reafirmou dogmas e formulou novas diretrizes para serem seguidas pelos católicos. O casamento foi incluído nesse rol e, ao ser apropriado pela Igreja passou a ser doutrinado – obedecendo a um ritual litúrgico – e, acima de tudo, foi normatizado pelos cânones e decisões tomadas principalmente após o sagrado Concílio Tridentino, alcançando, assim, o nível de sacramento. Segundo a sessão XXIV que trata diretamente do sacramento do matrimônio, o mesmo é definido como:

o vínculo perpétuo, e indissolúvel do matrimônio o exprimiu o primeiro pai do gênero humano, quando disse por inspiração do divino Espírito: Este é um osso dos meus ossos, e carne de minha carne: pelo que deixara o homem a seu pai, e a sua mãe, e unirá com sua mulher, e serão dois em uma carne. Mais claramente ensinou Cristo Senhor nosso, que com este vínculo só se unem, e juntam dois, quando referindo aquelas ultimas palavras, como proferida por Deus, disse: Portando já não são dois, mas uma carne: e logo confirmou a firmeza do mesmo nexo, declarada tanto antes por Adão com estas palavras: “o que Deus pois juntou, o homem não separe”24. (grifo nosso)

23 Todos os trechos retirados do Concílio de Trento e das Constituições Primeiras foram grafados com o português atual visando facilitar a compreensão dos mesmos e uma melhor leitura. REYCEND, João Baptista. O Sacrosanto, e Ecumênico Concilio de Trento, Em Latim e Portuguez: dedica, e consagra aos Excell. , e Rev. Senhores arcebispos, e bispos da Igreja Luterana. Tomo I. Lisboa: Officina Patriarc. de Francisco Luiz Ameno, 1781. pp.171-173.

Ao observar as decisões do concílio, notamos que o casamento, na condição de sacramento, tem toda sua importância ligada à união dos corpos, já que os dois se fundem em um, ligados a Deus por essa junção, tendo este ato toda inspiração na criação divina do mundo, quando se fez a mulher da costela de Adão. Da mesma forma, o homem, ao casar, simbolicamente voltaria a ser um só corpo e uma só carne com sua mulher, e ao terem as bênçãos do padre, o interlocutor de Deus na terra, estavam recebendo a graça divina que estaria proporcionando uma união indissolúvel para os olhos da Igreja e do Senhor, pois o que Deus uniu o homem não separa.

Essa associação entre os homens transformados em uma só carne pelo matrimônio deve ter surgido anteriormente, já que é possível ser observada como uma forma de conservação da monogamia, um dos princípios do casamento. Nessas relações, quem procurava se unir deveria ter como objetivo principal a procriação, geração de descendência para povoar as terras e, no caso específico da Igreja, gerar novos fiéis. Além disso, o fato de associar a união carnal a Deus foi uma forma utilizada para inibir as relações sexuais consideradas pecaminosas e, portanto, ofensivas à boa conduta moral, que poderiam pôr em risco o surgimento de novas famílias cristãs, bem como a manutenção das já existentes.

Em Portugal, durante parte da Idade Média, os reis tentaram conciliar os seus interesses com a disciplina da Igreja, associando os poderes temporais e espirituais. Nesse contexto, o casamento era associado ao matrimônio para moldar a população e contribuir com a ordem pública25. Havia diferença entre as cerimônias celebradas sem a presença de um sacerdote (casamento-contrato), e os rituais sacramentados (matrimônio), que seguiam os ritos e as cerimônias. Para a Igreja, estes eram muito mais valiosos, mesmo assim, o poder religioso considerava as uniões entre dois cristãos como válida e verdadeira.

Para entender melhor o que acontece no concílio e a diferença existente entre sacramento e contrato, é preciso compreender alguns costumes que estão diretamente ligados às uniões e que já existiam anteriormente. Segundo Alexandre Herculano, o contrato de casamento era legislado desde o código Theodosiano, no

25 HERCULANO, Alexandre. Estudos Sobre o Casamento Civil, por ocasião do Opúsculo do Sr. Visconde de Seabra sobre este assumpto. 6º ed. Lisboa: livraria Bertrand; Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, [s.d.]. p. 56.

ano de 42826. Neste, bastava o mútuo consentimento dos contraentes para ser validada a união, sem a interferência de um sacerdote, algo que só irá acontecer durante a Idade Média.

Outro costume, que foi o principal ponto de discordância entre os conciliares em Trento, foi chamado de casamento clandestino. Duas correntes debatiam o assunto, ameaçando em alguns momentos suspender as reuniões. A corrente que tinha como causídico principal o cardeal de Lorraine defendia a invalidade de tais uniões, principalmente as que tivessem ocorrido sem autorização paterna; já uma opinião contrária era encabeçada pelo jesuíta Jacques Laynez, que, seguindo o preceito existente desde o código referido anteriormente, considerava o mútuo consentimento como a verdadeira natureza do matrimônio, de tal forma que condenar algo tão puro seria teleologicamente incorreto27.

As uniões consideradas clandestinas pelos conciliares representaram principalmente uma violação do pátrio poder, já que muitos filhos se uniam sem autorização, clandestinamente. Mas uma outra questão deve ser lembrada; o sentido do casamento clandestino não estava ligado somente a algo oculto, significava para a Igreja “todos os não celebrados com as solenidades e os ritos eclesiásticos” 28.

Associadas a isso, existiam as divergências entre o valor contratual e sacramental do casamento. Algumas alegações chegaram a encontrar a origem da indissolubilidade do vínculo conjugal na união de Adão e Eva, visando mostrar a maior superioridade e validade da ordem sacramental perante os contratos. Tal argumento estava inscrito em um preâmbulo elaborado por bispos que seguiam a corrente da distinção entre contrato e casamento, como podemos ler:

Cristo [...] ensinou com mais clareza que este vínculo só podia unir e ligar dois indivíduos [...] o mesmo Cristo, porém instituidor e aperfeiçoador dos veneráveis sacramentos, com a sua paixão, obteve para nós por seus merecimentos a graça que completasse o natural amor, confirmasse a indissolúvel unidade e santificasse os casados [...]29.

26 Idem. p. 22.

27 CAMPOS, op. cit., 2003. p. 68. 28 HERCULANO, op. cit., [s.d.]. p.105. 29 Idem. p. 111.

Mas a nova ordem que passa a vigorar no que se refere ao casamento não distingue mais o contrato do sacramento, ambos são um só, sendo celebrados e validados sob a égide da Igreja. Uma união única seguindo os ritos e cerimônias exigidas para todos os novos consórcios, incluindo neste rol os clandestinos, que deixaram de vigorar oficialmente graças aos esforços do Cardeal de Lorraine.

Assim, após as delongas e debates dos conciliares, aos 11 de novembro do ano de 1563, começava a ser impressa a decisão acerca do matrimônio que passou a valer com a reforma tridentina. O cerne do casamento tridentino era uma celebração que deveria ocorrer publicamente, às portas da igreja, na presença de um sacerdote ou licenciado, além de contar com duas ou três testemunhas. Cerimônia que consistia basicamente nas palavras de mútuo consentimento expressos pelos contraentes in facie Ecclesiae, pronunciamento que era abençoado pelo ego conjugo vos proferido pelo sacerdote ao final da celebração.

1.2 O Concílio de Trento e As Constituições Primeiras do Arcebispado da

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