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Que se faça saber

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1. A lei e o casamento no Império Ultramarino português

1.2 O Concílio de Trento e As Constituições Primeiras do Arcebispado da

1.2.2 Que se faça saber

A máquina burocrática eclesiástica ainda possuía outros trâmites até a celebração matrimonial. Os que buscassem casar na igreja tinham de procurar o pároco da freguesia e comunicar-lhe da sua vontade. A partir daí, o eclesiástico daria início aos banhos do casamento67, que consistia num processo, de recolhimento de alguns documentos, como certidão de batismo, comprovantes de residência e/ou de óbito, no caso dos nubentes viúvos.

Buscava-se principalmente encontrar algum impedimento, dentre os já citados anteriormente, que viesse atrapalhar a união aos olhos da lei eclesiástica; após essa fase, caso fosse descoberto algum impedimento, seja por denúncia ou pela falta de documentos, tal empecilho poderia ser superado. As dificuldades eram suplantadas com uma solicitação de dispença, um recurso legitimado pela Igreja e que poderia ser impetrado por parte dos nubentes.

Incluído nos banhos estava o ato de denunciar, que consistia basicamente em anunciar durante três domingos seguidos o nome dos futuros nubentes durante a celebração da missa, enfatizando a vontade dos mesmos de casarem. Existia um texto que deveria ser preenchido com informações dos denunciados que dizia o seguinte:

Quer casar Joaquim Antonio Cavalcanti. 68 Filho de Joaquim de Miranda Barboza, e de Dona Luzia Maria da Conceição. Naturais de Olinda, moradores de tal parte, freguesia de Santo Antonio com Dona Joaquina Correia de Mello filha de Manuel Correia Gomes de Mello, e Vicência Maria da Conceição naturais de Recife, moradores

em tal parte, freguesia de Santo Antonio, se alguém souber que há algum impedimento, pelo qual não possa haver efeito o Matrimônio, o mandamos em virtude de obediência, e sob pena de excomunhão maior o diga, e descubra durante o tempo das denunciações, ou quanto os contraentes se não recebem; e sob mesma pena não porão impedimento algum ao dito Matrimônio maliciosamente69. (grifo nosso)

67Os Banhos consistiam em um pregão, que o pároco lança na citação, para ver se há algo que ponha impedimento para o casamento; chama-se pregão porque se apregoa. Estes banhos são três em três dias santos, nesse sentido banho deriva de bann, que em língua alemã quer dizer publicação. BLUTEAU, op. cit., 1712. v. 1, p 35.

68 Nas Constituições todas as partes a serem preenchidas são antecedidas de N, para uma melhor ilustração, optamos por preencher tais lacunas (em itálico) com informações de um dos registros existentes em nosso corpus documental. Os dados usados são do enlace ocorrido aos 16 de novembro de 1795, na Igreja Matriz de Santo Antônio, celebrado pelo reverendo Francisco Sales da Silva as 6:00 da manhã. AMSAR – Livro I – casamento – 1795 - p.141.

Usando as informações de origem, moradia e o nome dos seus respectivos pais, os párocos anunciavam durante três domingos ou dias santos, durante a missa, a vontade dos futuros consortes. Tal procedimento, regulamentado pela lei, tinha por objetivo impedir a quebra das regras do matrimônio tridentino. Aos que omitissem informações, encobrindo erros e impedimentos, a Igreja tentava levar os seus fiéis a denunciarem o que soubessem sobre os nubentes usando a excomunhão como pena maior.

As denúncias tinham prazo de validade, de dois meses; caso não ocorresse a celebração, os consortes deveriam proceder novas investigações, ou apelar para uma licença do Provisor70. Existiam casos em que os futuros consortes recebiam dispensas das denúncias. Um bom exemplo é quando existe risco de morte de um dos companheiros, em concubinatos ambos são dispensados dos banhos e, para não morrer em pecado, têm o seu matrimônio abençoado pelo padre.

Quando no período da formação do processo ocorriam denúncias ou era descoberto algum impedimento, a lei dizia que,

se na primeira, ou segunda denunciação, se descobrir algum impedimento, não deixe o pároco de prosseguir com as outras, mas antes as acabe de fazer, e então passara certidão, na qual declara os impedimentos, com que saíram, e a razão que tiveram os impedientes para saberem deles, por termo assinado pelos ditos impedientes [...]71.

A busca por algum outro impedimento, ou a confirmação do já descoberto, pode ser um dos motivos para que se procedesse até o final do processo. Além de terem seus planos adiados, os nubentes eram informados e tinham de ter conhecimento dos impedimentos, assinando o termo que era remetido com toda brevidade à Igreja ou ao Provisor. O processo deveria ser remetido em maço fechado, com o selo eclesiástico, na “forma costumada” e enviado por pessoa fiel. Todas as despesas processuais, principalmente com a descoberta de impedimentos e a solicitação de dispenças, deveriam ser pagas pelos contraentes.

Os padres estavam proibidos de celebrar uma união que tivesse registro de impedimentos durante as denunciações; tal fato poderia acarretar castigos graves.

70 O Provisor é o que faz às vezes de bispo no seu bispado. De ordinário não tem faculdade para dar reverendas, se não quando o bispo esta muito distante. BLUTEAU, op. cit., 1712. v. 6, p. 809.

Mas, caso um mandato ou uma sentença tivesse sido autorizada para o casamento, o pároco poderia realizar a cerimônia sem correr o risco de punição.

Nos casos em que havia uma barreira ao matrimônio, muitas vezes uma suspeita poderia ser enviada mais a título de confirmação, mas mesmo que não parecesse verdadeira, deveria ser investigada. Os nubentes, neste caso, poderiam receber as bênçãos; para isso, ambos deveriam ser perguntados em juramento se existia impedimento, e respondendo não, pagariam uma fiança que variava de acordo com a “qualidade” do casal72. Ao final dos banhos, era concedida a licença ao casal, na qual constava um aviso ao pároco para notificar, caso os nubentes já vivessem juntos sob o mesmo teto, que a cerimônia só poderia ser realizada após o final das denunciações.

O caminho que o casal percorria após conseguir a licença para casar ainda tinha alguns obstáculos. Um exemplo é que a cerimônia também tinha sua hora regulamentada, só poderia ocorrer durante o dia, “nem antes do nascer do sol nem dele posto”. Tal procedimento pode ser relacionado à publicidade da cerimônia, evitando erros e pecados, como celebrações clandestinas ou não desejadas. Para garantir uma visibilidade no momento da união, não somente a claridade importava, mas também que todos pudessem ver o ato, já que as portas deveriam permanecer abertas, como ocorre até hoje.

Inicialmente, era declarado que as denunciações foram feitas e que não existiu impedimento, e caso tenha existido, que estão dispensados. Na continuidade do ritual, usando como exemplo, a união de Felix e Felipa73, era perguntado aos noivos se estavam casando por suas livres vontades. Com uma resposta afirmativa, o mútuo consentimento tão necessário para expressar a vontade de ambos e confirmar socialmente tal desejo, os nubentes tinham suas mãos direitas unidas e deveriam dizer:

Mulher: Eu Felipa Eugenia, recebo a vós Felis José Serafim, por meu marido, como manda a Santa Madre Igreja de Roma.

72 Tal pagamento, denominado de caução pignoratícia, ficaria depositado em juízo, e estando certa da não existência de impedimento, ao final dos banhos o depósito seria devolvido ao casal. Idem. p.114.

73 Matrimônio celebrado na Igreja do Livramento dos Homens Pardos na freguesia de Santo Antônio, aos 20 de fevereiro de 1798, tendo como pároco Francisco José Rebelo. AMSAR – Livro II – casamento - 1798 - p. 65.

Homem: Eu Felis José Serafim, recebo a vós Felipa Eugenia, por minha mulher, como manda a Santa Madre igreja de Roma74.

Findada essa parte do ritual, que caracterizava a vontade dos recém-casados, o pároco ou sacerdote que realiza a cerimônia abençoa os noivos com o “eu vos

declaro marido e mulher”. Assim, Felix e Felipa, como tantos outros casais que

circularam nas Igrejas, tiveram selada a sua união matrimonial através das Constituições, seguindo todos os ritos e cerimônias ordenadas pela “santa madre

Igreja”.

No momento de registrar oficialmente o matrimônio, ainda há a interferência de um modelo ideal de assento, no qual se relatavam informações acerca do dia, mês, ano e local da celebração. Além disso, existia referência aos banhos e às denunciações, acrescidas de liberação de impedimentos ou alguma licença; o nome do pároco ou licenciado que realizou o ritual; e o mais importante para que pudesse ter ocorrido o matrimônio, as testemunhas presentes. Também não faltavam os nomes dos nubentes e seus respectivos pais, seguidos cada um das informações do local onde eram nascidos e residiam75.

Em determinados casos, no nosso acervo documental, devido ao requinte de detalhes dos registros feitos pelos vigários, é possível encontrar a condição social e civil dos envolvidos no casamento, seja da testemunha ou dos próprios consortes; indicativos de condição civil, etnia e profissão são os mais comuns. Todas essas informações, apesar de não terem sido uma exigência das leis sinodais, enriquecem nossa investigação, como será visto posteriormente.

O que é possível perceber, até o momento, nas Constituições, é que a Igreja fez questão e conseguiu estar sempre presente em todas as fases da realização do matrimônio. Tal presença no processo de banhos e nas denunciações, chegando ao modelo ideal de registro, são marcas da vigilância que, ao menos na lei, está inscrita. Era uma tentativa de desterrar os pecados e contradições da colônia, colocar os homens e mulheres na retidão da fé católica, seguindo os preceitos Tridentinos, fugindo das blasfêmias e heresias, salvando o rebanho de Deus, que

74 VIDE, op. cit., 2007. p. 120.

75 Segundo Alzira Lobo, foi o direito canônico que determinou a elaboração de registros paroquiais, válidos não somente na dinâmica matrimonial, mas para batismos e óbitos. A autora cita Pierre Chaunu, o qual informa que o surgimento dos registros data do século XV, já que a confiança clerical na memória coletiva não dava conta do emaranhado de parentescos e afinidades que poderiam existir. CAMPOS, op. cit., 2003. p.71.

deveria formar famílias exemplares desde sua concepção e influenciar as demais gerações.

Entretanto, saber o que aconteceu no cotidiano de cada paróquia, se todos os padres enviaram denúncias, impedimentos ou cumpriram seu papel de informar quais os pecados e crimes contra o sagrado matrimônio, é algo que não poderemos assegurar. Só descortinaremos esta questão estudando algumas localidades a partir dos entrelaçamentos de famílias, o que poderá ser feito com os vestígios por ventura deixados, fios que podem ser repuxados esclarecendo o tecido social e que possibilitem articulações com outros fios, numa outra investigação documental.

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