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As três correntes teóricas e sua complementariedade

CAPÍTULO 1 – ABORDAGENS CONCEITUAIS SOBRE ATORES, IDEIAS E

1.4 As três correntes teóricas e sua complementariedade

Zahariadis, um dos principais autores que utiliza o MSF, afirma que a abordagem

de Kingdon oferece respostas para três questões essenciais: “Como a atenção é dividida?

Como e quando é conduzida a busca por soluções? Como a seleção é enviesada?” 45 (Zahariadis, 2007, p.65) São questões que estão em perfeita sintonia com os objetivos específicos do presente estudo.

Contudo, os dados empíricos coletados indicam que a simples aplicação do MSF não é suficiente para dar conta de uma explicação mais sistêmica dos eventos ocorridos no Ceará para se chegar ao atual desenho do PAIC. Partimos então para discutir as principais lacunas do modelo já levantadas pelos estudiosos no tema e apresentar perspectivas complementares de análise.

A principal crítica ao modelo de MSF parte do próprio Sabatier (1991) ao constatar que Kingdon desenvolveu uma visão apolítica sobre analistas de políticas públicas e pesquisadores, e que o papel da análise advocatória é negligenciada ao colocar distância entre as dinâmicas de politica pública e política.

Tanto Sabatier como Kingdon reconhecem a importância de atores – políticos, pesquisadores, burocratas, acadêmicos, profissionais da mídia especializada, associações

profissionais – como participantes ativos no âmbito da comunidade de uma política

pública. Kingdon, entretanto, identifica dois grupos de atores e com papeis diferenciados no processo da política pública: visíveis e invisíveis.

Os “atores visíveis” – os políticos e os empreendedores de políticas públicas –

percebem a mudança do humor nacional – “pessoas dentro e no entorno do governo sentem o clima de uma nação”46 (KINGDON, 1995, p. 146) – como parte de sua atuação profissional e, então, sabem quando é o momento adequado para propor que um tema entre na agenda. No entanto, o próprio autor reconhece a dificuldade em operacionalizar de

forma prática a captura desse humor percebido pelos políticos: “E como, especificamente,

as pessoas no governo conseguem senti-lo? Eu creio ser difícil dar respostas muito precisas”47 (KINGDON, 1995, p. 149).

45“How is attention rationed? How and where is the search for alternatives conducted? How is selection

biased?”

46“People in and around government sense a national mood”

Os “atores invisíveis”, por seu turno, atuam mais na etapa de especificação de

alternativas de políticas do que na formação da agenda governamental. O autor ainda

destaca o fator “coesão”48

do grupo como um dos recursos com potencial para afetar a agenda governamental, mas não aprofunda essa temática.

Em suma, somente as ideias dos atores “visíveis” seriam preponderantes para uma

temática entrar na agenda, pois as ideias dos atores “invisíveis” fazem parte de um garbage can que forneceria as alternativas nos momentos de junção das dinâmicas, ou seja, as ideias de ambos os grupos de atores não são tratadas em conjunto.

O sistema de crenças presente no modelo das coalizões de defesa desenvolvido

por Sabatier apresenta uma perspectiva mais interessante do que a de Kingdon para

compreender o posicionamento dos atores – sejam eles visíveis ou não – frente a uma

determinada temática. Isto porque Sabatier procura explicar o comportamento individual a

partir de suas crenças e valores – presentes em três camadas –, fatores que também

explicam a formação das coalizões. Essa perspectiva analítica, além de apresentar maior

potencial operacional, é fundamental para compreender o processo de articulação dos

atores em torno do PAIC e a formação de uma coalizão que passa a atuar em sua defesa. Em outras palavras, o sistema de crenças desenvolvido pelo ACF é de extrema valia para se identificar a formação de coalizões baseada no compartilhamento de valores presentes no núcleo profundo e no núcleo da política pública. E a análise das convicções do núcleo da política pública permite compreender o processo de formação da coalização, as estratégias adotadas pelos atores e os processos de coordenação entre os participantes da coalização para concretizar seu sistema de crenças.

Assim, Sabatier oferece um mecanismo com maior capacidade operacional para captar a posição dos grupos de interesse frente a uma determinada temática. Embora a análise desses grupos esteja presente nas investigações de Kingdon (1995, p. 151), este novamente não operacionaliza detalhadamente a atuação destes pois, segundo sua visão,

“É difícil descrever precisamente como as pessoas no governo e no seu entorno concluem

sobre para qual direção pende o equilíbrio entre apoio e oposição”49 a uma dada ideia.

48“Cohesion is another resource that gives a group some advantage in affecting the governmental agenda. Part of group’s stock in trade in affecting all phases of policy making – agendas, decisions, or implementation – is its ability to convince governmental officials that it speaks with one voice and truly represents the preferences of its members. If the group is plagued by internal dissension, its effectiveness is seriously impaired.” (Kingdon, 1995, p. 52).

49“It is difficult to portray precisely how people in and around government arrive at their notion of where the

A análise quanto à formação das coalizões a partir das crenças e valores dos indivíduos desenvolvida por Sabatier configura-se, então, como uma perspectiva complementar à oferecida pela metodologia do MSF e sua proposta de junção das dinâmicas pelos empreendedores de políticas públicas nas janelas de oportunidade.

Outro aspecto importante da abordagem de Sabatier está na atenção que o autor confere ao aprendizado das políticas públicas. Os defensores do ACF argumentam que a análise baseada em períodos longos de tempo permite verificar como os atores incorporam novos dados e informações ao seu sistema de crenças e valores, podendo levar tanto a um reforço como a um questionamento dos mesmos. Esse acúmulo de conhecimento leva ao aprendizado e que os atores utilizam para concretizar suas crenças.

Capelari, Araújo e Calmon (2015), por seu turno, apontam que a principal limitação da teoria desenvolvida por Sabatier e demais pesquisadores é o fato de o modelo ser baseado em poucas relações causais e que, dessa forma, apresenta maior utilidade como um ferramental descritivo e analítico. Assim, acaba apresentando menor poder explicativo capaz de justificar as alterações tanto nas políticas públicas como o aprendizado que leva a uma mudança nas crenças e valores. Por outro lado, esses autores brasileiros reconhecem a importância da análise da dinâmica do MSF por oferecer explicação sobre mudanças na agenda governamental, bem como a compreensão de como as políticas se constituem num contexto de ambiguidade em processos políticos.

Por fim, a perspectiva do neoinstitucionalismo histórico tem por intuito fornecer um suporte institucional que complementa e reforça as abordagens tanto das múltiplas dinâmicas como das coalizões de defesa. A ideia é compreender o contexto institucional no qual os atores relacionados com o Programa Alfabetização na Idade Certa desenvolveram suas estratégias. Essa perspectiva é fundamental uma vez que a literatura do MSF e ACF não considera suficientemente o papel das instituições, isto é, “não integra sistematicamente as instituições políticas que estruturam o processo de tomada de decisão” (ZOHLNHÖFER, HERWEG, HUß, 2015).

O componente institucional se mostra importante porque uma das principais características do programa estadual cearense é a vertente das relações intergovernamentais, ou seja, o PAIC tem como um de seus componentes fundamentais a articulação do governo estadual junto aos municípios, atuação que se revela histórica na política estadual. Trata-se de um legado prévio que se mostra relevante na definição das estratégias dos atores (TENDLER, 1998; VIEIRA e VIDAL, 2013).

Para construir o cenário institucional, serão apresentados os processos de feedback positivo e que geraram uma dependência de trajetória, culminando em uma forte estabilidade das instituições no que se refere ao regime de colaboração entre estado e municípios cearenses. A compreensão dessa trajetória é essencial para analisarmos os contornos que o PAIC assumiu na vertente intergovernamental, principalmente porque as suas ações – de gestão municipal, avaliação externa, alfabetização, formação de leitores e educação infantil – pressupõem uma intensa interação entre os gestores estaduais e municipais.

A abordagem neoinstitucionalista de corte histórico não afirma que o conjunto de instituições presentes no cenário político é o único elemento a influenciar as decisões dos atores, abrindo espaço para análises mais amplas e com a incorporação, por exemplo, de fatores como a difusão de ideias e crenças (HALL, TAYLOR, 2003), que promove certo alinhamento conceitual com as duas outras correntes teóricas adotadas nessa Tese. Apesar de considerar que o mundo é um lugar mais complexo e que a explicação para o comportamento dos atores vai além do que ditam as regras e normas, uma das fragilidades

do neoinstitucionalismo histórico é o fato de que os “teóricos tendem a conceituar a relação

entre as instituições e o comportamento individual em termos muito gerais” (idem, p. 196).

Steinmo (2014) aponta que “... há um amplo reconhecimento de que nós [os

neoinstitucionalistas históricos] ainda não temos uma compreensão clara e coerente das relações entre atores, ‘ideias’ (por exemplo, crenças, valores e normas) e as instituições nas

quais trabalham e vivem”50

(STEINMO, 2014, p. 7).

Portanto, como se observa, essa limitação da vertente neoinstitucionalista justifica a necessidade de se incorporar correntes teóricas que trabalham com a questão das ideias, valores e crenças dos atores de modo mais robusto e que utilizam esses conceitos para explicar seu comportamento e o resultado das políticas públicas, o que nos traz de volta para as abordagens das múltiplas dinâmicas e das coalizões de defesa. Essas duas vertentes teóricas conferem especial atenção ao papel das ideias e do conhecimento como variáveis endógenas que atuam no processo de produção das políticas públicas, como já apontado por John (1999, apud Faria, 2003) e também pelo fato dos dois modelos seguirem o paradigma da racionalidade limitada de Simon (1985, apud Faria, 2003), o que os aproxima na leitura da tomada de decisão em políticas públicas.

50“… it is widely recognized that we still lack a clear and coherent understanding of the relationship between

Em suma, a proposta desta seção foi discutir a complementaridade das abordagens analíticas adotadas na Tese, em que as fragilidades de cada uma das vertentes são reforçadas pelas vantagens que as demais apresentam e, com isso, elaborar uma lente multifocal mais robusta e sistêmica para a análise do caso.

No próximo capítulo, apresentamos o percurso metodológico da Tese, finalizando com a apresentação das categorias de análise derivadas da literatura discutida e que irão auxiliar na análise do PAIC.