• Nenhum resultado encontrado

Ascese no conhecimento a Deus

Agostinho não se limita a apresentar o método que pretende utilizar, ele estabelece também um plano a seguir nesta investigação:

Se quiseres, investiguemos na seguinte ordem: procuremos como provar com evidência a existência de Deus; se na verdade tudo o que é bem, enquanto bem, vem de Deus; enfim, se será preciso contar, entre os bens, a vontade livre do homem. Uma vez esclarecidas essas questões, aparecerá evidente, como penso, se essa vontade foi dada aos homens com justiça233.

Esta divisão, clara e didática, assim como este plano investigativo que Agostinho seguirá de modo decidido, revelam porque este segundo Livro é considerado o mais bem organizado dos três.

O primeiro objetivo proposto é a ascensão a Deus, um tema fundamental e extremamente importante do ponto de vista doutrinal para o pensamento agostiniano e, por isso, muito estudado pela crítica. Madec, G. define a demonstração da existência de Deus de Agostinho como “um ato da inteligência da fé e uma ascensão metódica do espírito em direção a Deus”234.

Na opinião de Capitani, F. De duas características presidem a fase inicial tanto quanto a fase da prova final: um processo de interioridade progressivo e constante que parte do eu pensante e não da realidade exterior para ascender a Deus e a prevalência da

232 De lib. arb. II, 2, 6. Novamente entra em campo a «inteligência da fé» que procura compreender aquilo que se crê. Neste texto se vê claramente que a fé antecede a razão no «método racional» de Agostinho. Nesta passagem ainda, Agostinho deseja demonstrar a Evódio as disposições morais requeridas para tornar fecunda a busca da «demonstração da existência de Deus» (OLIVEIRA, N. DE A. «Tradução, Organização, introdução e notas», 258). Consultar ainda CAPITANIF.DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino,116.

233De lib. arb. II, 3, 7).

62

interioridade ontológica/moral do superior em relação ao inferior, como também daquele que julga em relação a quem está sendo julgado235.

a) Cogito agostiniano: A consciência do próprio existir e o valor do intellegere

Esta argumentação começa com o chamado cogito agostiniano, de uma verdade imediatamente evidente de ordem espiritual. S. Agostinho pergunta a Evódio se ele é consciente de existir ou se tem dúvidas a esse respeito. Porém, mesmo se Evódio duvidasse, permaneceria o fato que não poderia duvidar se não existisse236: “Assim, pois, para partirmos de uma verdade evidente, eu te perguntaria, primeiramente, se existes. Ou, talvez, temas ser vítima de engano ao responder a essa questão? Todavia, não te poderias enganar de modo algum, se não existisse”237. Desta primeira evidência deriva outra, a de que se vive, pois a certeza de existir não pode ser afirmada senão por um ser que vive:

Portanto, no De libero arbitrio se parte do sujeito que é, vive e conhece intelectualmente. Três evidências de origem neoplatônica [...] particularmente importantes ao Agostinho filósofo e por ele revitalizadas e assumidas como elementos fundamentais à personalidade metafísica do sujeito pensante e que quer. Das três qualidades, é sem dúvida superior do ponto de vista ontológico (praestantius) a terceira: o intellegere, porque é com a razão que se sabe de existir, de viver e de conhecer238.

Após ajudar Evódio a admitir o fato da sua existência, Agostinho começa a expor os três degraus da perfeição: ser, viver e pensar239. A partir daqui, Agostinho ajuda seu amigo

235 CAPITANI F. DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino,118. O ponto de partida de S. Agostinho será a intuição do «eu pensante». Trata-se de uma formulação já presente em outros diálogos de Agostinho: por exemplo: De b. vita 2, 7; Sol. 2, 1, 1.

236. S. Agostinho procura encontrar uma «certeza inicial»: a consciência do próprio existir. Pois esta não se pode negar, nem mesmo se existe uma dúvida a respeito (GENTILI, D. NBA III/2, 215 nota 4). Verificar também: Sol. 2, 1, 1 e CAPITANI F. DE: Il «De libero arbitrio» di S.

Agostino,119.

237 De lib. arb. II, 3, 7. Eis o ponto de partida da análise agostiniana que deu origem ao cogito cartesiano, muito mais famoso que o agostiniano. O ponto de partida desta investigação é o «homem que pensa», o «homem interior» que é, vive e conhece intelectualmente (CAPITANIF. DE).

238 CAPITANIF.DE.

239 CAPITANI F. DE, pensa aqui em uma influência platônica: conferir: Sofh. 248e (CAPITANI F.DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino,119).

63

a dar mais um passo: aceitar que está certo e, consequentemente, que conhece intelectualmente (intellegere)240. Porque uma pessoa que admite a sua existência e possui vida deve reconhecer também que obteve este reconhecimento através da razão (inteligência).

Chega-se, assim, à conclusão de que existem três certezas: existir, viver e conhecer intelectualmente241. Deste modo, até mesmo o sujeito que duvida sabe que existe, vive e pensa242. Mas qual destas três verdades básicas é superior e mais perfeita? Agostinho admite que a melhor das três é aquela que só o homem possui, juntamente com as duas outras, isto é, a inteligência, que supõe nela o existir e o viver. É superior áquele tipo de existência que resume em si o maior número de modos de ser para poder subsistir, isto é, a inteligência, pois esta não poderia subsistir senão em um indivíduo que existe e que vive. Se a existência é suficiente para uma pedra ou um cadáver ser o que são, o mesmo não se passa com o animal, para o qual o conceito implica também a qualidade de viver, Muito menos ainda será para o homem, para o qual a definição implica, além do existir e do viver, a qualidade do viver e do poder conhecer intelectualmente. Quem é detentor dessas três qualidades é superior, portanto, àquele no qual falta uma ou duas243.

A partir do De libero arbitrio II, 3, 8, Agostinho inicia uma investigação minuciosa sobre os sentidos exteriores, o sentido interior 244 e a razão:

No intuito de estabelecer uma graduação hierárquica na ordem do saber, Agostinho começa pelo conhecimento mais evidente: o sensível [...] Ora, tal conhecimento não pode provir dos próprios sentidos externos; pressupõe a existência de uma força superior, capaz de julgar os sentidos, a saber, de um sentido interior (“sensus interior”) [...] Que esta força superior deva ser um sentido, Agostinho o conclui do

240 De lib. arb. II, 3, 7.

241 De lib. arb.II, 3, 7. Provavelmente esta afirmação é de origem platônica (CAPITANIF.DE: Il

«De libero arbitrio» di S. Agostino,119).

242 BOEHNER,P.GILSON,E.História da Filosofia Cristã, 154.

243 De lib. arb. II, 3, 7. Sobre estas considerações e sobre o cogito agostiniano ver: CAPITANIF. DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino,119 e nota 276.

244 Sobre a questão e influências do «Sentido interior» ou «sentido interno» em Agostinho ver nota 302 em: CAPITANI F. DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino,120; consultar ainda: O’DALY,G.J.P.«Sensus interior in St. Augustine, De libero arbitrio 2. 3.25 – 6, 51.

64

fato de a encontrarmos também nos animais. De fato que não ultrapassamos, ainda, o nível do reino animal245.

Esta reflexão sobre a relação existente entre os objetos da consciência sensível, os sentidos, o sentido interior e a razão pode parecer à primeira vista demasiada longa e um pouco dispersiva, mas do ponto de vista doutrinal não pode ser deixado de lado. Além disso, trata-se de um tema importante para o pensamento de Agostinho, visto que o retoma em outras obras246. Sua importância, na realidade, fundamenta-se no sentido de que, através delas, Agostinho intui que para se chegar a Deus não basta seguir a via da superioridade do sujeito que conhece sobre o objeto conhecido, mas, sim, encontrar outra medida de superioridade, isto é, aquela que julga em relação ao que é julgado: “Quem julga é superior aquilo sobre o que julga” 247. Resulta, assim, evidente que a razão possui um grau ontologicamente superior de conhecimento. A esta altura, Agostinho pergunta ao amigo: “Vê, pois, eu te peço, se podes encontrar na natureza do homem algo mais excelente do que a razão”248, ao que Evódio responde: “não encontro absolutamente nada que possa ser melhor”249. Portanto, para os dois interlocutores, a razão é aquilo que de melhor e mais nobre pode qualificar um homem. Será preciso, agora, ultrapassar a razão e demonstrar que ela é julgada ou moderada por algo superior. Para Agostinho bastará, então, procurar demonstrar que existe algo superior à inteligência humana. Dessa forma, esta realidade será definida e denominada Deus, contudo, se existir ainda uma que lhe é superior, será esta última então a ser definida e considerada Deus. Portanto, caberá necessariamente a

245 BOEHNER,P.GILSON,E.

História da Filosofia Cristã, 154. Conferir também: De lib. arb.

II, 3, 8; II, 4, 10.

246 Sobre isto, pode-se verificar: De vera rel. 29, 53-31,58; De quant. an. 33, 71; De mus. 6, 5, 8 e

Conf. VII, 17, 23.

247 De lib. arb. II, 5, 12. Trata-se do princípio de subordinação: «O princípio de subordinação, ou regulação como também é chamada, constitui parte significativa da metafísica agostiniana. Consiste em evocar a subordinação prática de cada atividade da alma, dentro de sua hierarquia, a um elemento que lhe seja superior [...] O princípio de subordinação, sendo também de ordem ontológica, Agostinho vai utilizá-lo a seguir, sempre no plano metafísico, a propósito da vida do espírito. Daí a sua importância. Será essa uma das peças mestras da dialética agostiniana» (OLIVEIRA, N. DE A. «Tradução, Organização, introdução e notas», 260). Ver também: CAPITANIF.DE: Il «De libero arbitrio» di S. Agostino, 120.

248 De lib. arb. II, 6, 14. 249 De lib. arb. II, 6, 14.

65

Agostinho demonstrar que existe uma realidade superior à razão250. S. Agostinho, com esta reflexão, procura estabelecer uma hierarquia de valores, que inclui: o corpo, a alma animal e, enfim, a razão, pois o sentido interior julga os sentidos corporais, aprovando um bom funcionamento ou exigindo sua função. Do mesmo modo, os próprios sentidos externos, eles mesmos julgam os objetos corporais, aceitando seu contato, caso seja agradável, ou rejeitando-o, caso contrário»251. Conclui, que nada existe de mais excelente na natureza da alma do que a razão252. O homem é então superior porque pode julgar e o julgamento é uma ação exclusiva da inteligência: a razão é a faculdade de julgar por excelência. Inicia aqui a «demonstração da existência de Deus:

Eis o momento da tomada de impulso para a ascensão desejada. As demonstrações fornecidas até aqui foram apenas um preâmbulo. Agora os elementos de base já mencionados vão ser cuidadosamente recolocados, em vista da ascensão. O caminho a ser percorrido pela prova encontra-se fixado com clareza253.