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Introdução do Livro II (De lib arb II, 1, 1-2, 6)

A problemática a ser afrontada neste livro, com as questões e dúvidas propostas por Agostinho e Evódio, é para Capitani, F. Deo fio condutor dos dois primeiros capítulos deste Livro. É como considerar compatível a existência de um Deus bom e justo com a liberdade do homem.

Na verdade, Evódio deseja que o mestre lhe explique a razão pela qual Deus concedeu ao homem o livre arbítrio da vontade, já que diz ter compreendido através do Livro anterior que o homem não somente possui um livre arbítrio, mas que é por meio dele que pode vir também a pecar. Agostinho concorda com o amigo, mas neste momento ele quer saber de Evódio se “sabe que esse dom, que certamente possuímos e pelo qual pecamos, foi Deus quem no-lo concedeu?”” 212. Evódio responde dizendo que somente Deus poderia conceber este poder ao homem, pois é por meio Dele que o homem existe e merece receber o castigo ou a recompensa ao pecar ou ao agir bem213. Sem dar trégua ao amigo, S. Agostinho deseja saber se Evódio compreende isto com evidência ou se é levado a crer pelo argumento da autoridade de fé, ainda que sem um claro entendimento214. Insiste ainda Agostinho se sabe verdadeiramente215 que foi Deus quem concedeu este dom ao homem e Evódio, diante desta pressão, responde que sobre isto ele o aceitou primeiramente dócil à autoridade216, mas reconhece que não existe nada mais verdadeiro em acreditar que: Tudo o que é bom procede de Deus. E tudo o que é justo é bom. Ora, existe algo mais justo do que o castigo advir aos pecadores, e a recompensa aos que procedem bem? Donde a conclusão: é Deus que atribui aos pecadores a miséria e a felicidade aos que praticam o bem217.

212 De lib. arb. II, 1, 1. 213 De lib. arb. II, 1, 1. 214 De lib. arb. II, 1, 1.

215 Importante aqui conhecer o sentido da palavra «saber» (scire) nos escritos filosóficos de S. Agostinho, que significa: conhecer com certeza racional. Toda esta argumentação envolve o «método racional». Sobre esta questão, se pode consultar: CAPITANI F. DE: Il «De libero

arbitrio» di S. Agostino, cap. 8 «Rapporti fede/ragione: credere per comprendere, assistiti

dall’illuminazione divina. 216 De lib. arb. II, 1, 1. 217 De lib. arb. II, 1, 1.

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A esta altura é importante, para melhor compreender o desenvolvimento desta argumentação, esclarecer alguns pontos. Primeiramente, deve-se ter claro que o método de investigação que está sendo usado é o mesmo já estabelecido no início do diálogo, ou seja, procurar compreender aquilo que se crê218, conhecer intelectualmente aquilo em que já se acredita por meio da fé. Mas é importante também destacar uma concepção fundamental para os dois interlocutores: o ótimo conceito que se deve ter de Deus e, ainda, Deus é bom e justo. Deve-se também recordar que no início do Livro I219 os dois amigos já haviam deixado clara essa mesma questão, ou seja, que Deus é Bom e Justo220. Pois bem, trata-se de procurar entender o raciocínio de Agostinho, pois tanto ele quanto Evódio acreditam que Deus seja bom e justo, mas desejam compreender isto racionalmente, através da iluminação divina, na tentativa de alcançar a Sabedoria e gozar da gaudium veritate. O primeiro passo para a aquisição desta Sabedoria, segundo Agostinho, deve sempre se iniciar pela fé sobrenatural. Seu método consiste primeiramente em receber a verdade pela fé e depois procurar penetrá-la com a inteligência221. Este é o método que deixou claro desde o início deste diálogo, como também deixou claros os princípios fundamentais da sua teodicéia, isto é, que Deus é o criador de todas as coisas, que governa o universo com Sabedoria, Bondade e Justiça. Portanto, grande parte deste Livro II redundará em um esforço para procurar adquirir intelectualmente uma verdade já adquirida por meio da Revelação: que Deus existe. O método de Agostinho, como se viu, baseia-se na citação de Is 7, 9, interpretada a partir da tradução dos Setenta, que consolida o esquema da necessária anterioridade da fé sobre a razão. Este esquema tem uma dupla exigência: aspirar à inteligência daquilo que se crê, visto que o fim último do homem não é somente crer em

218 De lib. arb. I, 2, 4.

219 De lib. arb. I, 1, 1 e I, 2, 5.

220 Segundo CAPITANI F. DE, esta convicção: ter de Deus o melhor conceito possível, é de origem Estóica, mas o uso que S. Agostinho faz vai além da simples metafísica da qual este foi tomado. Além disto, Capitani defende que esta convicção é também um dos argumentos da polêmica antimaniquéia sobre o conceito de divindade que Agostinho prefere (CAPITANIF.DE:

Il «De libero arbitrio» di S. Agostino, 115).

221 «la vraie méthode consiste à recevoir d’abord la vérité par la foi, avant de la pénétrer par l’intelligence (THONNARD,F.-J.«La philosophie augustinienne», VI, BA 497).

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Deus, mas sim procurar conhecê-lo; e a segunda exigência diz que é preciso partir da fé para chegar ao conhecimento de Deus222.

A partir daí, Agostinho propõe ao amigo outra questão: “Como sabes que existimos por virmos de Deus?”223. Para Evódio, a questão de certo modo é clara, pois ele acredita que Deus é justo. Assim, do mesmo modo que é próprio da bondade fazer o bem a quem nem mesmo se conhece, também não é próprio da justiça infligir castigos a quem não os merece. Deste modo, para Evódio Deus não é somente cheio de bondade para o homem ao conceder os seus dons, mas é ainda justo ao castigar aqueles que merecem224. Ainda segundo Evódio, Deus é bom para o homem, e tudo o que procede de Deus é bom. Com isso, pode-se compreender que o homem também procede de Deus, porque o próprio homem, enquanto homem, é um certo bem, pois tem a possibilidade de viver retamente quando quer225. Agostinho concluirá que era necessário que Deus desse ao homem a vontade livre:

Pois se o homem é um bem e que não poderia agir bem a não ser querendo, seria preciso que gozasse de vontade livre, sem a qual não poderia agir bem. Com efeito, não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é preciso supor que Deus a tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente [...] Por outro lado, se o homem carecesse do livre arbítrio da vontade, como poderia existir esse bem, que consiste em manifestar a justiça, condenando os pecados e premiando as boas ações? Visto que a conduta desse homem não seria pecado nem boa ação, caso não fosse voluntária. Igualmente o castigo, como a recompensa, seria injusto se o homem não fosse dotado de vontade livre. Ora, era preciso que a justiça estivesse presente no castigo e na recompensa, porque aí está um dos bens cuja

222 BOEHNER,P.GILSON,E.História da Filosofia Cristã, 153. 223 De lib. arb. II, 1, 2.

224 De lib. arb. II, 1, 2.

225 De lib. arb. II, 1, 2. Existe aqui mais uma afirmação considerada pelos Pelagianos, favorável à sua doutrina.

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fonte é Deus. Conclusão: era necessário que Deus desse ao homem a vontade livre226.

Como é possível constatar, Agostinho, de certo modo, já procura responder à questão inicial proposta por Evódio, mas isto não é ainda suficiente. Por persistir a argumentação, surge uma nova objeção: porque o homem usa o livre arbítrio, um dom de Deus, para praticar o mal? Evódio é certo que o homem possui o livre arbítrio da vontade, mas não é ainda certo de que este tenha sido doado por um Deus justo, uma vez que, por meio deste, o homem pode também pecar227. S. Agostinho, para responder a esta questão, invoca a Sabedoria de Deus para dizer que foi Ele quem concedeu ao homem o livre arbítrio. E seja qual for o modo pelo qual ele é recebido e utilizado pelo homem, deve-se reconhecer que Deus não era obrigado a concedê-lo. Para S. Agostinho, quem deu este poder ao homem foi Aquele a quem de modo algum o homem pode criticar com justiça Suas ações228. Evódio crê em tudo isso com fé inabalável, mas não possui ainda um pleno entendimento de todas essas questões229, acreditando que seria uma blasfêmia pensar que Deus tenha fornecido ao homem um dom que não deveria230. A esta altura, Agostinho faz ao amigo uma pergunta fundamental, que dará início a uma longa argumentação para demonstrar a existência de Deus. “Pelo menos, uma coisa é certa para ti: Deus existe?” Evódio responde que isto é uma “Verdade incontestável, mas pela fé e não pelo entendimento” 231. Diante das dúvidas do amigo, S. Agostinho lhe pergunta se ao menos é certo da existência de Deus, entendendo, é claro, como uma certeza racional. Agostinho procura esclarecer ao amigo que é necessário procurar compreender aquilo que em se crê, pois: “não se pode considerar como encontrado aquilo em que se acredita sem entender. E ninguém se torna capaz de encontrar a Deus, se antes não crer no que há de

226 De lib. arb. II, 1, 3. 227 De lib. arb. II, 2, 5. 228 De lib. arb. II, 2, 4. 229

De lib. arb. II, 2, 5. 230 De lib. arb. II, 2, 5.

231 De lib. arb. II, 2, 5. Nota-se aqui novamente, uma das intenções fundamentais deste diálogo: aprofundar, compreender os conceitos e argumentos que a fé impõe, sempre dentro da perspectiva do credo ut intellegam.

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compreender”232. A certeza da fé em Deus deve ser demonstrada como certeza justificada. Trata-se de um grande esforço de inteligência da fé.