• Nenhum resultado encontrado

Antes de tudo, no décimo oitavo capítulo, Agostinho recorda as conclusões obtidas até o momento: que Deus existe e que todos os bens procedem Dele288. Depois, inicia uma nova investigação para tentar esclarecer a terceira questão proposta no plano inicial deste Livro II, questionando se convêm considerar a vontade livre do homem entre os bens, com o seguinte argumento: “Vejamos, agora, se é possível esclarecer a terceira questão proposta, a saber: convém considerar a vontade livre do homem entre os bens? Uma vez esse ponto demonstrado, concederei, sem hesitação, que Deus no-la deu e que convinha no-la ter dado?”289. A esta altura, o caro leitor irá notar que, na realidade, esta terceira questão já foi resolvida dentro das duas conclusões precedentes290. Isto porque, uma vez demonstrado que Deus existe e que é bom, governa o universo com harmonia e justiça por meio da Providência, e tudo depende Dele, fica claro também que a vontade livre é um bem e que efetivamente deveria ter sido concedida, pois Deus não daria nada que não fosse justo e bom. De fato, o próprio Agostinho afirma: “Ora, essas duas verdades: que Deus existe e que todos os bens vêm dele, nós já admitimos com fé inabalável. Entretanto, nós as expusemos de tal forma que a terceira verdade também se torna plenamente evidente, a saber: que a vontade livre deve ser contada entre os bens recebidos de Deus”291. Mas, para esclarecer esta questão, Agostinho retoma, aprofunda e aplica à livre vontade muitas observações e considerações feitas anteriormente. Em primeiro lugar, faz um aprofundamento mais detalhado sobre as relações entre os bens. Todos os bens, enquanto tais, vêm de Deus, porém existem bens pequenos, médios e grandes, cada um com as suas características. Mas nem todos os bens são hierarquicamente iguais. Por exemplo, os bens corporais são considerados de grau inferior quando comparados com os espirituais292. São ainda considerados pequenos os bens exteriores do corpo em sentido aristotélico, como, por

288 De lib. arb. II, 18, 47.

289 De lib. arb. II, 18, 47. Rever ainda as três questões propostas em: De lib. arb. II, 3, 7. 290 OLIVEIRA,N.DEA.«Tradução, Organização, introdução e notas», 275.

291 De lib. arb. II, 18, 47.

76

exemplo, os olhos, as mãos e a beleza. E mesmo que alguém use desses bens para cumprir ações erradas ou vergonhosas, não se pode dizer que não venham de Deus:

Com efeito, a discussão precedente já demonstra, e nós o admitimos, a natureza corpórea ser de grau inferior à natureza espiritual. E daí se seguir que o espírito é um bem maior do que o corpo. Ora, entre os bens corpóreos, encontra-se no homem alguns de que ele pode abusar, sem que por isso digamos que esses bens não lhes deveriam ter sido dados, pois reconhecemos serem eles um bem [...] Do mesmo modo, como aprovas a presença desses bens no corpo e que, sem considerar os que deles abusam, louvas o doador, de igual modo deve ser quanto à livre vontade, sem a qual ninguém pode viver com retidão. Deves reconhecer: que ela é um bem e um Dom de Deus, e que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em vez de dizer que o doador não deveria tê-lo dado a nós293.

Apesar destas argumentações, Evódio ainda não se convenceu de que a livre vontade seja um bem: “Primeiramente, desejo que me proves que a vontade livre é um bem. Concederei, logo em seguida, que ela é um dom de Deus, porque reconheço que todos os bens procedem de Deus”294. Agostinho então afirma que já lhe provou isto295, e volta a insistir sobre os tipos de bens existentes, dizendo que há no campo espiritual bens com os quais ninguém pode praticar o mal. Estes são considerados os grandes bens, como, por exemplo, as virtudes: Justiça, Fortaleza e Temperança, que somente podem ser usadas retamente, segundo a recta ratio. Ninguém pode usá-las de forma errada ou maldosa, porque, se assim fosse, não poderiam mais ser consideradas virtudes296. A livre vontade seria então classificada entre os chamados bens médios297. Agostinho ainda esclarece que das virtudes, classificadas como grandes bens, ninguém pode fazer mau uso, mas, dos outros bens, os inferiores e os médios, pode-se fazê-lo:

Portanto, as virtudes pelas quais as pessoas vivem honestamente pertencem à categoria de grandes bens. As diversas espécies de corpos sem os quais pode-se

293 De lib. arb. II, 18, 48. 294 De lib. arb. II, 18, 49. 295 De lib. arb. II, 18, 49. 296 De lib. arb. II, 18, 50.

77

viver com honestidade, contam-se entre os bens mínimos. E, por sua vez, as forças do espírito, sem as quais não se pode viver de modo honesto, são bens médios. Das virtudes, ninguém usa mal. Todavia, com relação aos outros bens, isto é, dos médios e dos inferiores, pode-se utilizá-los como um bem ou como um mal298.

Ao final destas afirmações, Agostinho ainda exalta que por todos esses bens Deus devem ser glorificados299. Portanto, a livre vontade é classificada entre os bens médios porque ela pode ser usada para fazer o bem ou o mal, mas, verdadeiramente, o que isso significa? Porque Deus deu ao homem um instrumento tão delicado e perigoso? É verdadeiramente um bem? Pois bem, cabe aqui retornar ao raciocínio feito anteriormente por S. Agostinho: se com as próprias mãos, que são classificadas como bens inferiores ou pequenos, alguém comete um homicídio, isto não significa que se deve culpar Deus por ter dado as mãos ao homem, ou mesmo não considerar as mãos como um bem, mesmo que pequeno? O mesmo raciocínio pode ser feito com relação à livre vontade, classificada como um bem médio. Pois, se alguém utiliza sua livre vontade para cometer o mal, isto não significa que se deva culpar Deus por tê-la dado ao homem, ou mesmo não considerá-la entre os bens. Além disso, como a vontade é um bem médio, sem ela o homem não poderia nem mesmo praticar o bem, pois como bem médio, ela serve tanto para o mal quanto para o bem.