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Em sua definição de aspecto gramatical, Comrie (1976, p.7, tradução nossa) aponta que essa noção deve ser entendida como a “gramaticalização das distinções semânticas relevantes”, no que diz respeito aos significados aspectuais, nas diversas línguas naturais.

7 Neste trabalho, utilizaremos o termo “aspecto semântico”.

8 Diferentemente de Comrie (1976), Smith (1991) não utiliza os termos “aspecto gramatical” e “aspecto semântico”, mas sim os termos “ponto de vista” e “tipo de situação”, respectivamente, para fazer referência a esses dois aspectos. Optamos por manter a nomenclatura adotada por Comrie neste trabalho.

Nesse sentido, de acordo com o autor, a noção de aspecto gramatical pode referir-se restritamente a noções aspectuais gramaticalizadas. Ao pensarmos na distinção entre as sentenças que correspondem aos exemplos (1a) “Pedro nadava no lago” e (1b) “Pedro nadou no lago”, percebemos que a oposição das informações aspectuais está pautada em itens gramaticais, os morfemas “–va” e “–ou”. A morfologia verbal, nesse sentido, é essencial para determinar a leitura aspectual dessas sentenças.

Sendo assim, quando a informação aspectual está codificada em itens gramaticais – por exemplo, em um morfema gramatical ou em verbos auxiliares associados aos verbos principais em estruturas perifrásticas – temos o que chamamos de aspecto gramatical. Para Comrie (1976), há dois aspectos gramaticais básicos nas línguas naturais, o perfectivo e o imperfectivo.

O aspecto perfectivo caracteriza uma situação sem fazer distinção entre as partes internas dessa situação, ou seja, independentemente da sua temporalidade interna. Retomando novamente os exemplos em (1), a sentença (1b) configura uma situação de leitura perfectiva. Portanto, a situação em (1b) é observada como um todo, a partir de um ponto de vista externo, tendo o seu início e o seu fim bem definidos e delimitados.

Ter seu fim delimitado, no entanto, não significa que a situação tenha necessariamente terminado, como no exemplo “Pedro comeu maçã”, em que o sujeito pode não ter terminado de comer uma maçã inteira, mas, com apenas uma mordida na maçã, podemos considerar que o conteúdo da sentença é verdadeiro. Além disso, devemos ressaltar que, em “Pedro comeu maçã”, mesmo que o sujeito não tenha terminado de comer uma maçã inteira, a situação é descrita como um todo, como um ponto definido e delimitado no tempo.

O aspecto imperfectivo caracteriza uma situação de modo a desmembrar as suas partes internas, limitadas pelo início e pelo fim dessa situação. Desse modo, as partes internas dessa situação podem ser observadas a partir de um ponto de vista interno. A título de ilustração, temos a sentença no exemplo (1a), que configura uma situação de leitura imperfectiva.

A partir dos exemplos dados em (1), nota-se que, no PB, podemos distinguir a expressão do perfectivo (1b) daquela do imperfectivo (1a) no tempo passado por meio das morfologias de pretérito perfeito do indicativo e de pretérito imperfeito do indicativo, respectivamente. Há outras línguas, no entanto, em que essa correspondência não existe e não é possível diferenciar a expressão desses aspectos morfologicamente.

No inglês, por exemplo, o morfema “–ed”, além de expressar a noção de tempo passado, pode expressar tanto o aspecto perfectivo como o imperfectivo. Nesse caso

específico, é preciso recorrer a outros elementos sentenciais, como advérbios e expressões adverbiais para entendermos qual a leitura aspectual de uma sentença em que o morfema “–

ed” esteja junto ao verbo9.

Voltando à bipartição do aspecto gramatical em perfectivo e imperfectivo, Comrie (1976) afirma também que o aspecto imperfectivo, por contemplar diferentes tipos de distinções aspectuais, pode ser subdividido em algumas línguas. Assim sendo, nessas línguas, podemos ter o aspecto imperfectivo habitual e o aspecto imperfectivo contínuo, sendo este o aspecto que desperta-nos maior interesse neste estudo. A seguir, podemos ver como Comrie (1976, p. 25) esquematiza as subdivisões dos diferentes tipos de aspecto:

Figura 2: Diagrama da classificação das oposições aspectuais, segundo Comrie (1976).

De acordo com o esquema acima, temos as diferentes oposições aspectuais propostas por Comrie (1976), as quais serão tratadas a seguir. Primeiramente, a fim de apresentarmos as diferenças entre os aspectos habitual e contínuo, vejamos as orações destacadas nos exemplos a seguir.

3. (a) Pedro nadava no lago quando era jovem. (b) Pedro nada no lago todos os dias.

(c) Pedro estava nadando no lago quando cheguei. (d) Pedro está nadando no lago agora.

O aspecto habitual faz referência a um hábito, uma situação recorrente em um determinado período, de modo que ela não seja vista como um fato acidental. No caso das sentenças nos exemplos (3a) e (3b), temos uma situação habitual no passado e uma situação habitual no presente respectivamente. Já nos exemplos (3c) e (3d) não descrevem situações habituais.

9 Não necessariamente o morfema utilizado em inglês para marcar tempo passado e os aspectos perfectivo e imperfectivo é “-ed”, já que há verbos irregulares nessa língua, como, por exemplo, os verbos “to be” e “to think”.

PERFECTIVO IMPERFECTIVO

HABITUAL CONTÍNUO

Ainda no que diz respeito ao aspecto habitual, Comrie (1976) reforça que a habitualidade não deve ser confundida com a noção de iteratividade, já que uma sentença habitual não necessariamente é iterativa. A iteratividade indica que uma determinada situação ocorreu repetidas vezes, ou seja, indica “a ocorrência sucessiva de uma situação” (MAGGESSY, 2013, p.26). Essa distinção fica clara em sentenças com a expressão “used to”, que veicula situação habitual no inglês. Em “My grandparents used to live in Portugal” (“Meus avós moravam em Portugal”), a sentença é habitual, mas não é iterativa. Apesar de mencionar a iteratividade, Comrie não define se ela faz parte dos aspectos imperfectivos ou se ela está contida no aspecto habitual.

O aspecto contínuo, por sua vez, faz referência a uma situação que está em andamento em um determinado período. No caso das sentenças em (3c) e (3d), temos uma situação em curso no passado e uma situação em curso no presente, respectivamente. Quanto à expressão do aspecto imperfectivo contínuo, é importante notar que sua expressão pode se dar por meio de morfologias de progressivo e de não progressivo no PB, como mostram os exemplos cujas orações estão em negrito em (4) abaixo, em que parte dos exemplos em (3) é retomada.

4. (a) Pedro estava nadando no lago quando cheguei. (b) Pedro está nadando no lago agora.

(c) Pedro nadava no lago quando cheguei. (d) Pedro nada no lago agora.

É interessante notar que, em (4a) e (4c), de um lado, e em (4b) e (4d), de outro, as sentenças de leitura contínua foram expressas através de marcas morfológicas distintas, ainda que preservassem o mesmo Tempo e o mesmo Aspecto. Desse modo, em línguas como o português, o aspecto contínuo pode ser expresso através de uma morfologia de não progressivo, como a morfologia de presente do indicativo (sentença em (4d)) ou de pretérito imperfeito do indicativo (sentença em (4c)), ou através de uma morfologia de progressivo, como a perífrase “estar” + verbo principal no gerúndio(sentenças em (4a) e (4b)). Há outras línguas, no entanto, que não possuem uma morfologia de progressivo para expressar uma situação em andamento. A respeito de uma dessas línguas, o húngaro, Emmel (2005, p.55) afirma que:

“[O] Húngaro não apresenta uma marcação morfológica para o progressivo, mas a ordem de palavras e uma entonação especial da sentença autorizam uma interpretação progressiva, sem que isso seja assumido como uma construção progressiva genuína.”

Nas línguas como o PB, isto é, línguas em que há a distinção entre morfologia de progressivo e de não progressivo, a morfologia de progressivo “corresponde à morfologia

específica para a expressão do imperfectivo contínuo” (ARAÚJO, 2015, p. 41). Nessas línguas, porém, de acordo com Comrie (1976), o uso da morfologia de progressivo pode ser restringido devido a particularidades semânticas do verbo. Além disso, segundo o autor, cada língua tem suas próprias regras que especificam quais são os verbos que podem ser combinados à forma progressiva. A questão do uso da morfologia de progressivo é especialmente relevante neste trabalho e voltaremos a tratar dela com mais cuidado no próximo capítulo desta dissertação.

Por fim, é importante chamar a atenção para o fato de que Comrie (1976), como mostra a figura 2, inclui progressivo e não progressivo em seu quadro de distinções aspectuais, tratando dessa oposição de maneira ambígua, ora como se progressivo e não progressivo fossem categorias aspectuais distintas, ora como se fossem marcas morfológicas distintas. Neste trabalho, no entanto, não consideraremos progressivo e não progressivo como diferentes categorias aspectuais, mas como diferentes marcas morfológicas, ou seja, como diferentes maneiras de realizarmos morfologicamente o aspecto imperfectivo contínuo. Essa questão será retomada mais adiante, na seção 2.1 do capítulo 2.

No decorrer desta seção, salientamos, bem como observa Cunha (2004), que há uma considerável variação entre as línguas humanas quanto aos recursos disponíveis para expressar a informação aspectual relevante. Se, por um lado, a expressão morfológica de Aspecto varia entre as diferentes línguas, por outro, Aspecto é uma categoria sintática universal, pois está presente em todas as línguas. Na próxima seção, trataremos daquele aspecto que diz respeito às particularidades semânticas inerentes dos itens lexicais, o aspecto semântico.