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Aspectos da posição esquizo-paranóide

3. A agressividade em Melanie Klein

3.1 Aspectos da posição esquizo-paranóide

As angústias vividas pelo bebê, segundo Klein, logo no início da vida são oriundas tanto de fontes internas como de fontes externas. A fonte interna principal é a “operação da pulsão de morte dentro do organismo [que] é sentida como medo de aniquilamento (morte) e toma a forma de medo de perseguição” (Klein, 1946, p.24). A primeira fonte externa é a experiência do nascimento que é vivida pelo bebê “como um ataque por forças hostis, isto é como perseguição” (Klein, 1952c, p.86). Assim, desde que nasce o bebê kleiniano vive fortes angústias persecutórias, ele é ameaçado não só de fora como também de dentro.

Como um bebê recém-nascido lida com essas angústias? Segundo Klein, o bebê tem desde o começo da vida um ego que, embora rudimentar, já tem a capacidade de utilizar mecanismos de defesa, de relacionar-se com objetos, tanto na fantasia como na realidade, e de tolerar angústias, sendo que esta última capacidade depende da força inata do ego, ou seja, de fatores constitucionais (cf.1952b, p.81). Podemos constatar que a concepção kleiniana do início da vida difere radicalmente da visão winnicottiana, pois o bebê kleiniano, desde o nascimento, já se relaciona com objetos externos (mesmos que parciais), usa mecanismos mentais de introjeção e projeção e já é capaz de amar e odiar, diz Klein:

O uso que faço do termo “relações de objeto” baseia-se na minha asserção de que o bebê, desde o início da vida pós-natal, tem com a mãe uma relação (se bem que centrada primariamente em seu seio) imbuída dos elementos fundamentais de uma relação de

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Para este estudo, estarei utilizando a obra kleiniana a partir de 1932, isto é, a partir da inclusão do conceito de pulsão de morte como central, na teorização da autora, em relação à agressividade.

objeto, isto é, amor, ódio, fantasias, ansiedades e defesas. (Klein, 1952a, p. 72)

O ego primitivo, para Klein, já é estruturado o suficiente, desde o nascimento, para usar mecanismos mentais de projeção e, desse modo, colocar para fora (no seio materno) o impulso destrutivo. Isto é denominado de deflexão da pulsão de morte. Essa projeção faz com que o bebê sinta o mundo externo - incluindo aí o seu primeiro objeto externo que é o seio da mãe – como extremamente hostil. Dessa maneira, qualquer frustração do desejo causada pela realidade externa - nesse momento representada pelo seio - é vivida pelo bebê como retaliação por seus impulsos destrutivos e o seio se torna imediatamente um perseguidor, além de se tornar “um representante externo da pulsão de morte” (Klein, 1948, p. 52). Esse é o seio mau. A projeção da pulsão de morte no seio “é geralmente sentida como dividindo-o (splitting) em vários pedaços, de modo que o ego é confrontado por uma multidão de perseguidores” (Segal, 1975, p.37). A parte da pulsão de morte que permanece no self “é convertida em agressividade dirigida contra os perseguidores” (idem). Nas suas fantasias destrutivas, o bebê morde e dilacera o seio, devora-o, aniquila-o e sente que o seio o atacará da mesma forma. Mas esse processo não termina aí: através de um mecanismo de introjeção, o seio mau é internalizado e “a parcela da pulsão de morte que havia sido defletida para fora, com todos os perigos a ela associados, de novo se volta para dentro e o ego vincula ao objeto interno mau o medo de seus próprios impulsos destrutivos” (Klein, 1948, p. 52). Com essa introjeção, o ego tem urgência de projetar novamente para o mundo externo os perigos internos, ou seja, a atividade interna da pulsão de morte. Desse modo, os mecanismos de introjeção e projeção do seio mau proporcionam uma “constante flutuação entre o medo dos objetos maus internos e dos externos, entre a pulsão de morte que atua dentro e a que é defletida para fora” (idem, p.53). Esses mecanismos também fazem com que os perigos externos sejam sempre afetados pelos perigos internos de maneira que os primeiros são sempre mais intensos do que realmente são.

Porém, esta é só uma parte do que o bebê kleiniano vive. A pulsão de vida, que também está operante, será projetada através da libido no seio materno externo – o seio bom – que será então introjetado reforçando o poder da pulsão de vida, internamente. Esse seio bom internalizado vai ser sentido pelo bebê como fonte de vida e parte constituinte do ego.

O que acontece é que uma cisão entre bom e mau ocorre tanto no ego do bebê como nos objetos. A deflexão da pulsão de morte envolve cisão entre a parte que contém os impulsos destrutivos e a parte sentida como contendo a libido.

Porém, mesmo essa divisão do seio em bom e mau, na fantasia do bebê, pode ser difícil de ser mantida: “o impulso destrutivo que é projetado para fora é inicialmente vivenciado como agressão oral” e quando o bebê está frustrado ou ansioso sente “ter tomado para dentro de si o mamilo e o seio em pedaços” (Klein, 1946, p.25). Dessa maneira, o seio frustrador é sentido como fragmentado em contraposição ao seio gratificador que é sentido como inteiro. Todavia, esse seio bom, gratificador e sentido como inteiro pode ser - em condições de frustração e angústia - despedaçado. Se, na incorporação dos objetos, há uma grande dose de sadismo, isso fragmenta não só o próprio objeto, mas também o ego, pois, para a autora “o ego é incapaz de cindir o objeto, interno e externo, sem que ocorra uma cisão correspondente dentro dele” (idem). É este o processo que está na base da desintegração do ego. Para Klein, o bebê vive, no seu desenvolvimento normal, estados transitórios de desintegração, que ela chama de estados esquizóides. Se o ego for incapaz de superar esses estados isso pode ser um sinal de doença esquizofrênica no bebê.

Há ainda outro problema no caso de o medo persecutório ser muito grande. O bebê, para defender-se dessa ameaça, idealiza um seio “inexaurível e perfeito, sempre disponível, sempre gratificador [...] que deveria saciar o desejo voraz por gratificação ilimitada, imediata e permanente” (Klein, 1952c, p.88). Assim, o seio ficará cindido em seio ideal e seio persecutório, sendo que essa cisão está diretamente ligada a uma negação - que é onipotente - de qualquer objeto ou situação frustrante. Para Klein, essa negação está vinculada

com a negação da própria realidade psíquica, ou seja, não é só o objeto que é negado e aniquilado; “é uma relação de objeto que sofre esse destino e, portanto uma parte do ego, da qual emanam os sentimentos pelo objeto, é negada e aniquilada também” (Klein, 1946, p.26). Segundo a autora, pode-se ver isso acontecendo nos delírios de grandeza dos esquizofrênicos.

Se a angústia persecutória não for muito grande, essa cisão não será tão intensa e o ego poderá integrar-se ao invés de cindir, integrando da mesma maneira o amor e o ódio dirigidos ao objeto; porém, será necessário para que isso aconteça que “o amor pelo objeto predomine sobre os impulsos destrutivos (em última instância, a pulsão de vida sobre a pulsão de morte)” (idem, p.90). Para Klein, a linha divisória entre a saúde e a doença psíquica parece ser, essencialmente, uma questão constitucional: se o indivíduo nascer com um quantum de pulsão de morte maior do que o de pulsão de vida, ele muito provavelmente irá adoecer psiquicamente.

Retomando a questão da projeção, Klein irá definir um tipo de identificação com a mãe denominada, por ela, de identificação projetiva que é “o protótipo de uma relação de objeto agressiva”. Ela acontece quando o bebê projeta para dentro da mãe “excrementos nocivos, expelidos com ódio [...] e as partes más do self” (idem, p.27). Essa projeção não é usada apenas para danificar o objeto, mas também para possuí-lo e controlá-lo. Dessa maneira, o objeto não é sentido como separado do indivíduo, ele é sentido “como sendo o self mau” (idem). A identificação de um objeto com as partes odiadas do self contribui, nos distúrbios psicóticos, para a intensidade do ódio dirigido contra outras pessoas.

Tudo isso que vimos até aqui corresponde às angústias, aos mecanismos de defesa e às relações de objeto vividas nos primeiros três ou quatro meses de vida do bebê que é denominada por Klein de posição29 esquizo-paranóide.

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O termo posição é utilizado por Klein “porque, embora os fenômenos envolvidos ocorram primeiramente durante os estágios arcaicos do desenvolvimento, eles não estão confinados a esses estágios, mas representam agrupamentos específicos de ansiedade e defesas que aparecem durante os primeiros anos de infância” (Klein, 1932, p.17)

Nesse estágio [posição esquizo-paranóide], os processos de cisão estão em seu ponto mais alto, e o amor e o ódio, bem como os aspectos bons e maus do seio, são mantidos amplamente separados um do outro (Klein, 1952a, p. 72).

Essa posição faz parte do desenvolvimento normal do bebê, e, embora Klein afirme que, a cada estágio, fatores externos afetam o desenvolvimento, ela só se tornará patológica em função da constitucionalidade e do mundo intra-psíquico do indivíduo.

É essencial para o desenvolvimento favorável do bebê, na posição esquizo-paranóide, que as experiências boas predominem sobre as más. O que é a experiência verdadeira do bebê depende de fatores tanto externos quanto internos. A privação externa, física ou mental, impede a gratificação; mas, ainda que o ambiente seja propício a experiências gratificantes, estas podem ser modificadas ou mesmo impedidas por fatores internos (Segal, 1975, p.51). A pressuposição de Klein de que existia desde o início mais precoce do desenvolvimento normal de um bebê uma posição esquizo-paranóide era do ponto de vista winnicottiano pouco apropriada, pois apesar de “não se poder ignorar o fato de que encontramos [...] os dois mecanismos: 1- medo da retaliação [paranóide]; 2- splitting do objeto em ‘bom’ e ‘mau’”, eles não tem a menor importância no estágio de dependência absoluta, se o ambiente do bebê for suficientemente bom. Se contrariamente o ambiente inicial do bebê não for suficientemente bom o que acontece “é o caos, mais do que medo de retaliação e splitting do objeto em ‘bom’ e ‘mau’” (1965va, p.161).

Do ponto de vista kleiniano, a mãe já é, no início da vida, um objeto externo ao bebê. Como, além disso, Klein não leva em consideração a criatividade originária do bebê, não há sentido, para ela, em a mãe adaptar-se ao gesto espontâneo. Para Winnicott, diferentemente de Klein, a mãe no início apesar de ser externa do ponto de vista do observador é totalmente subjetiva para o bebê e funciona como seu ego auxiliar facilitando seu processo de amadurecimento, esperando e indo ao encontro de seu gesto espontâneo.