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3. O assédio moral na Administração Pública

3.1. Aspectos definidores do Assédio Moral

A globalização, conjunto de transformações na ordem política e econômica mundial, teve início na segunda metade do século XX, com o objetivo de interligar todo o mundo, bem como realizar a revolução tecnológica. O fenômeno atingiu todos os setores organizacionais, incluindo-se a Administração Pública.

Tal processo trouxe para a nova ordem econômica um alto grau de competitividade e insegurança nas relações de trabalho. Com a revolução tecnológica, as organizações privadas e públicas passaram a fazer uso dos recursos tecnológicos da informação que facilitam a execução de suas atividades administrativas e operacionais.

Esse avanço da tecnologia da informação exige que os trabalhadores desenvolvam habilidades como eficiência, agilidade, flexibilidade, criatividade, capacidade, competitividade e experiência em todos os processos, com a finalidade de aumentar a produtividade.

Nesse ambiente competitivo e cruel, os trabalhadores passam a sofrer todo o tipo de cobrança para superação de metas e aumento da produtividade, tornando a relação de trabalho uma zona de terror devido ao alto grau de competitividade exigido pelas organizações. Por conta disso, esse ambiente se torna propício para práticas de assédio moral, que se confirma em comportamento de conflitos internos entre os trabalhadores.

Nesse cenário, destacamos contribuições de inúmeros autores que abordam o conceito de assédio moral. Sabemos que não é um fenômeno novo, pois sempre existiu e remonta a própria existência das relações interpessoais, no entanto, os estudos científicos que o abordam são relativamente recentes. Curiosamente, essa prática não é observada apenas nas relações de trabalho, mas também a encontramos nas relações familiares, escolares e sociais, de modo geral (SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 17).

Atualmente, o assédio moral tem seu fundamento na necessidade de proteção à dignidade do trabalhador enquanto indivíduo. Vale lembrar, como já estudado, que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho são fundamentos da República (art. 1º, III e IV, CF), e que a ordem social tem por fim garantir a todos uma existência digna, e, como base o primado do trabalho e o bem-estar e a justiça sociais (arts. 170 e 193, CF).

Como vimos no primeiro capítulo deste estudo, a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental de natureza constitucional e universal, que impõe o respeito à dignidade da pessoa, assim, sua proteção deve ser assegurada em todas as circunstâncias, inclusive no âmbito da relação de trabalho.

Margarida Barreto (2003, p. 91) ressalta a essência do trabalho:

O trabalho, ao longo da vida em sociedade, é fundamental na relação do homem com a natureza. Coloca em movimento a vida humana, seus órgãos, aparelhos e sistemas, na busca de produtos, os quais o alimentarão, vestirão e permitirão sua reprodução e produção social. O homem, com sua ação, transforma seu entorno e, nesse processo, é transformado. Desenvolve a sociedade, humaniza-se.

Desta forma, compreendemos que o trabalho é imprescindível para a evolução material e moral do homem e da sociedade. É por meio dele que desenvolvemos a nossa economia, a nossa cultura, a nossa educação, e garantimos uma existência condigna a todos.

Frisa-se que o trabalho é um direito fundamental, previsto no art. 6º, da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifo nosso).

Diante disso, deve a Administração Pública ajustar sua conduta, nas relações de trabalho, conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, e os princípios que norteiam toda atividade pública - da legalidade, da impessoalidade, da publicidade, da moralidade, da finalidade pública e outros - e, ainda, promover a proteção aos seus servidores e garantir os meios de combate e prevenção do assédio moral.

Segundo o dicionário eletrônico Aurélio o termo assediar significa: “Por assédio, cerco a., perseguir com insistência; importunar com tentativas de contato ou relacionamento sexual”. Para o dicionário Michaelis, em sentido figurado, o termo assédio significa “insistência impertinente, em relação a alguém, com declarações, propostas, pretensões, etc.”

De acordo com FERRAZ (p. 137), verificam-se duas espécies de assédio, quais sejam o assédio moral e o assédio sexual, que se distinguem por sua natureza. O assédio moral possui natureza psicológica, enquanto o outro possui natureza sexual.

O assédio sexual está previsto no art. 216-A, do Código Penal, incluído pela Lei nº 10224, de 15/05/2001:

“Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção de 1 a 2 anos”.

No entanto, até o momento, não há uma legislação federal ou nacional específica que trate ou tipifique o assédio moral nas relações de trabalho, tornando-se mais dificultosa sua conscientização e, a consequente prevenção e punição.

Por esse motivo, no presente trabalho abordamos apenas a problemática do assédio moral no âmbito da Administração Pública. E a partir de agora passamos a buscar o seu conceito no âmbito jurídico, que ao longo dos anos vem sendo construído, pela doutrina e pela jurisprudência.

A definição de assédio moral que temos hoje, utilizada pela doutrina majoritária, foi criada por Marie-France Hirigoyen, estudiosa que usou o termo pela primeira vez e o popularizou. Segundo sua definição o assédio moral se caracteriza por “qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude), que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade, psíquica ou física, de uma pessoa ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho” (FERRAZ, p. 137).

Segundo Hirigoyen (2002, p. 16 apud SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 18) o assédio moral não possui um caráter absoluto, sofre variação de acordo com a cultura e os costumes de cada sociedade. O que pode ser agressivo em determinada cultura pode não ser em outra. Por esse motivo, a autora utiliza o termo moral para caracterizar o assédio, que segundo ela não seria possível estudar tal fenômeno sem se levar em conta sua perspectiva ética e moral.

Nesse contexto, temos que o termo assédio moral, com diferentes terminologias e sofrendo variações conforme a cultura local, é considerado um fenômeno social em diversos países. Hirigoyen (2005, p. 85), distingue alguns desses termos da seguinte forma:

O termo mobbing (utilizado pelo psicólogo alemão Heinz Leymann) relaciona-se mais a perseguições coletivas ou à violência ligada à organização, incluindo desvios que podem acabar em violência física. O termo bullying é mais amplo que o termo mobbing. Vai de chacotas e isolamento até condutas abusivas com conotações sexuais ou agressões físicas. Refere-se mais às ofensas individuais do que à violência organizacional.

O assédio moral diz respeito a agressões mais sutis e, portanto, mais difíceis de caracterizar e provar, qualquer que seja sua procedência. Mesmo que sejam próximas, a violência física e a discriminação estão, primeiramente, excluídas, pois são violências já levadas em conta na legislação.

A referida autora ressalta a importância da utilização do termo exato, de acordo com a definição adotada por cada país, de modo a facilitar o estudo aprofundado do tema e a não torná-lo desprovido de significado.

Para melhor compreensão do termo assédio moral, buscamos amparo na doutrina do Direito Trabalhista Brasileiro, onde Alice Monteiro de Barros (2005, p. 872-873) entende que:

Quanto ao assédio moral alegado, na esfera do Direito do Trabalho, este se caracteriza quando o empregado sofre violência psicológica extrema, premeditada, de forma sistemática e frequente, por período prolongado, no local de trabalho, a ponto de desestabilizá-lo psicologicamente, não se confundindo com conflitos esporádicos, nem mesmo com más condições de trabalho.

Por conseguinte, conhecido como psicoterror, o assédio moral caracteriza-se por ser uma conduta violenta, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica e física, de forma contínua, que expõe o trabalhador a situações humilhantes e degradantes, capazes de causar danos à personalidade, à dignidade e à integridade do trabalhador (FERRAZ, 2014, p. 157).

Segundo a jurisprudência, consiste o assédio moral:

(...) no abuso cometido contra o subordinado pelo superior hierárquico que, excedendo os poderes que lhe foram atribuídos, dispensa ao servidor tratamento incompatível com a sua dignidade, impondo-lhe rigor excessivo ou constrangimento indevido. Caracteriza-se ainda pela degradação deliberada do ambiente de trabalho, sujeitando o trabalhador, de forma contínua e duradoura, a regime de trabalho marcado pela exposição do indivíduo a situações de ridicularização, menosprezo e inferioridade em relação ao grupo, tendo como principal norte incutir no trabalhador a iniciativa de desistir do trabalho. (TRF-4 - AC: 6350 RS 2004.71.02.006350-5, Relator: Carlos Eduardo Thompson Z, Data de Julgamento: 17/02/2009, Terceira Turma, Data de Publicação: D.E. 24/h06/2009).

Temos ainda o seguinte entendimento sobre o tema:

Como se sabe, são diversas as possibilidades de prática de assédio moral, normalmente consistentes em gestos depreciativos e velados, atitudes discriminatórias ou mesmo perseguição sub-reptícia, tais como: cometimento de tarefas não compatíveis com a formação do empregado, imposição de sobrecarga de trabalho ou esvaziamento das atividades laborais; isolamento físico; críticas destrutivas ou ausência de elogios; e

outros similares, com o objetivo de tornar insuportável a permanência do empregado no ambiente de trabalho. A conduta ilícita do empregador ou seus prepostos desencadeia, em tese, sérias consequências sobre a saúde do trabalhador, sob a forma de estresse, ansiedade, depressão e distúrbios psicossomáticos, podendo resultar inclusive em desequilíbrio psíquico. (TST - AIRR: 384007420105130025 38400-74.2010.5.13.0025, Relator: Renato de Lacerda Paiva, Data de Julgamento: 06/02/2013, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 15/02/2013).

A jurisprudência trabalhista sobre o tema é ampla, e, como visto, o assédio moral é uma prática abusiva, que de forma continuada fere a dignidade do trabalhador, expondo-o a situações humilhantes e degradando o seu ambiente de trabalho, com a finalidade de afastá-lo do seu trabalho, podendo causar graves a danos a sua saúde.

Desta forma, “podemos compreendê-lo como um processo sistemático de hostilização, direcionado a um indivíduo, ou a um grupo, que dificilmente consegue se defender dessa situação” (SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 17). Esse processo tem por finalidade causar prejuízos físico ou emocional para a vítima e, muitas vezes, gerando o seu adoecimento e a exclusão do grupo.

Ao analisarmos os aspectos que definem o assédio moral dentro das relações de trabalho, nos deparamos com a repetição e a duração do comportamento abusivo, características que dão ao assédio moral um caráter processual. Destarte, temos no assédio moral um caráter sistêmico, gradual e que se intensifica (SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 25).

Nesse sentido, não importa quanto tempo dure as agressões, mas sim, se houve um prolongamento no tempo que caracterize um processo. Ou seja, o importante não é determinar a frequência ou a duração mínima pra que a conduta caracterize o assédio, pois aqui, sua característica essencial é o caráter processual.

É esse caráter processual que distingue o assédio moral das demais condutas agressivas experimentadas pelos servidores públicos em seu ambiente de trabalho, como são denominadas pela doutrina de agressões pontuais. Nestas a conduta ofensiva e humilhante não é repetitiva, podendo inclusive ser uma reação diante de determinada situação, como exemplo, o desentendimento entre colegas.

Portanto, a repetitividade e a intencionalidade são alguns dos elementos que caracterizam a ocorrência do assédio moral, diferenciando-o dos demais conflitos nas relações interpessoais no ambiente de trabalho. Desta forma, más condições de trabalho, imposições profissionais, violência externa, violência física e violência sexual, por exemplo, não podem ser confundidas com a prática de assédio moral.

A seguir citamos condutas, que de forma reiterada, podem caracterizar o assédio moral: rigor excessivo; ameaças explícitas ou veladas; divulgação de doenças e problemas pessoais; agressões verbais ou por meio de gestos; atribuições de tarefas estranhas à atividade profissional; imposição de horários injustificados; retirada de mesa de trabalho e pessoal de apoio; delegação de tarefas flagrantemente superiores ou inferiores à sua capacidade; orientações, ordens ou instruções contraditórias e imprecisas; críticas em público; desvio de função; dentre tantas outras.

A pesquisadora Margarida Barreto (2008), ao ser questionada sobre o assédio moral nas organizações públicas, aponta o seguinte:

Não existe um local que não exista assédio moral. Ele ocorre em empresas privadas, empresas públicas, organizações não governamentais, instituições filantrópicas, sindicatos e igrejas e, em todo lugar onde há trabalhadores. O assédio nas empresas públicas está muito ligado às políticas de ascensão funcional e ao modelo de gestão. De certa forma, o que eu venho observando é que o processo tende a ser mais perverso e penoso do que nas empresas privadas, pois a pessoa aceita o assédio sempre na esperança de que, quando mudar o comando, as coisas mudem. Por outro lado como a pessoa não pode ser mandada embora, ela, muitas vezes, é colocada à disposição e começa a rodar por vários setores, sempre carregando um estigma que, muitas vezes faz com que ela volte a ser assediada. Nós já vimos casos de assédio em empresa pública com duração de oito anos, enquanto na empresa privada o máximo foi de um ano e meio.

Conforme o posicionamento da referida pesquisadora, percebemos que a prática de assédio moral no âmbito da administração é comum e, diferente da iniciativa privada, por não haver a possibilidade de demissão do servidor - exceto nos casos previstos em lei - pode durar anos, o que torna o abuso ainda mais cruel.

A doutrina apresenta alguns critérios de identificação do assédio moral, quais sejam, o assédio vertical descendente, horizontal ou vertical ascendente. O assédio moral praticado pelo superior hierárquico da vítima é denominado vertical descendente e é o mais comum, tendo em vista que muitas vezes a vítima é vista como uma ameaça ao superior por apresentar um desempenho melhor que o dele. O abuso praticado pelos pares é conhecido como horizontal, ocorre por competitividade ou por conflito de relacionamento e convivência entre colegas. E por fim, o assédio praticado pelos subordinados contra sua chefia é o vertical ascendente, pode ocorrer por se tratar de chefia que age com autoritarismo ou soberba, ou ainda, por não ter domínio sobre as atividades ou empregados (SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 57).

Essas modalidades podem configurar assédio moral misto quando se manifestam de forma combinada, ou seja, a perseguição é feita tanto pelo superior ao subordinado como também entre os próprios colegas.

Por ser a hierarquia um fator que intimida a ação comunicativa, na maioria das vezes, o assédio ocorre da forma vertical descendente. No entanto, o assédio moral entre pares está aumentando consideravelmente, em virtude da alta competitividade nas organizações de trabalho, que gera grande competição entre os trabalhadores, e, por conseguinte, individualismo e medo de ser o próximo excluído do grupo (ELGENNENI; VERCESI, 2009). Oassédio moral no trabalho pode ter um caráter individual e pessoal, ou ainda, coletivo e com efeito de política de gestão. Como já vimos o assédio moral interpessoal é um processo contínuo de hostilidade ou isolamento, direcionado a pessoas específicas. O assédio moral organizacional é um processo contínuo de hostilidades, estruturado via política organizacional ou gerencial, que tem como objetivo imediato aumentar a produtividade, diminuir custos, reforçar os espaços de controle, ou o desligamento dos trabalhadores que a empresa não deseja manter em seus quadros. (SABOLL; GOSDAL, 2009, p. 17).

Portanto, o assédio organizacional é um conjunto de práticas autoritárias, repetitivas, inseridas na rotina da organização como forma de gestão, por meio de pressões, humilhações e intimidações, com a finalidade de alcançar objetivos institucionais. Esse tipo de assédio representa uma escolha da organização como estratégia de gestão, de estimular o aumento da produtividade, ou de obter maior controle sobre os empregados.

As consequências do assédio moral organizacional são extensas, pois gera um ambiente de trabalho hostil e desagradável, carregado de tensões, trazendo prejuízos à saúde do trabalhador. Caracteriza-se por gestão abusiva, desviando-se das finalidades institucionais, ferindo a dignidade da pessoa humana e o dever de manter um ambiente de trabalho saudável e sem violência.

Desta forma, é importante ressaltar a grande disparidade que há entre o assédio moral, seja pessoal ou organizacional, e o interesse da própria Administração, uma vez que seus efeitos não são sentidos apenas pela vítima direta, mas, também, por toda a Administração e pela sociedade. Estas sofrem de forma indireta os efeitos do assédio moral, a Administração, por exemplo, com a diminuição da produtividade, a perda de servidores qualificados, o aumento de doenças e o consequente afastamento do servidor, grandes despesas com processos administrativos e judiciais, e, com pagamento de indenizações, além da perda de credibilidade, e tantos outros.

A sociedade sofre seus efeitos danosos, por exemplo, com a perda de trabalhadores produtivos, aumento de custos médicos, de custos com benefícios para aposentadorias precoces por invalidez, o desemprego e, o aumento dos casos de suicídios.

Nesse contexto, a criação de meios adequados para punir, prevenir e reparar as agressões sofridas pelos servidores públicos é fundamental para manter um ambiente de trabalho equilibrado e, preservar a dignidade dos servidores dentro das relações de trabalho, bem como garantir uma boa prestação de serviços públicos.

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