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A abordagem biográfica, da qual faz parte o recolhimento da his- tória de vida não é recente. Ela é, com efeito, herdeira da tradição da Escola de Chicago, que, durante os anos 20 e 30, se projetou sobre a cena científica americana.

Trata-se de uma sociologia que se caracteriza, principalmente, pela pesquisa empírica, na qual o trabalho de campo é uma prática corrente, e pela utilização de “métodos originais de pesquisa”, entre os quais se des- tacam a utilização de documentos pessoais e o recolhimento de histórias de vida. O primeiro trabalho dessa escola, utilizando a história de vida como documento sociológico é a célebre pesquisa de William Thomas e Florian Znaniecki intitulada The polish peasant in Europe and America:

monograph of an immigrant groupe, publicada entre os anos de 1918 e

1920. Nessa obra, os autores propõem-se a estudar a vida social de cam- poneses poloneses na Polônia e emigrados para os Estados Unidos. Além de fontes clássicas (documentos), os pesquisadores utilizaram métodos inovadores, como a pesquisa de campo, a utilização de documentos pes- soais, especialmente de cartas, e, finalmente, as histórias de vida, que per- mitem, segundo Thomas, compreender e interpretar os comportamentos dos imigrantes poloneses a partir da significação subjetiva que eles acor- dam a suas ações.

Outra obra célebre da Escola de Chicago, também escrita, em 1930, a partir do método de história de vida, é The Jack-Roller: a delinquent boy’s

own story, de Clifford Shaw. Trata-se da história de Stanley, um “delin-

quente” de dezesseis anos que, a pedido de Shaw, escreve uma autobio- grafia, na qual relata sua trajetória. É importante ressaltar a observação de Shaw sobre a validade e o valor de uma narração, que não depende de sua objetividade, como escreve na introdução dessa obra:

[…] não esperamos que o delinquente descreva necessariamente suas si- tuações de vida de forma objetiva. Ao contrário, o que se deseja é que sua história reflita suas atitudes pessoais, suas próprias interpretações porque são precisamente estes fatores pessoais que são importantes para o estudo e o tratamento do caso (SHAW, 1966, p. 183, tradução nossa).

Por sua vez, Burgess (1966), no prefácio dessa obra, embora defen- da a importância das verificações das narrativas através de outros dados, reforça a importância das “reações dos sujeitos aos acontecimentos de sua experiência” e “sua própria interpretação dessas experiências” (1966, p. 28, tradução e grifos nossos). Ainda um último exemplo de pesquisas realiza- das na escola de Chicago é a obra de Edwin Sutherland, The professional

thief (1937), um estudo consagrado aos ladrões, que utiliza a história de

Alain Coulon, em seu estudo sobre a Escola de Chicago, faz uma apro- ximação entre o método de Sutherland e o conceito de “reflexividade” utili- zado em etnometodologia: a equivalência entre descrever e produzir uma interação. Na medida em que Sutherland trabalha as descrições que o la- drão faz de sua prática, de sua vida cotidiana e da maneira de ver o mundo que o cerca, ele transforma seu informador em seu assistente de pesquisa:

Ele vem a ser, pela descrição que faz de seu mundo, um etnógrafo reflexivo do mundo no qual ele vive. Estamos então diante não somente do sujeito empírico, tal qual ele se apresenta a Sutherland e a todo leitor de sua histó- ria, mas também, de maneira muito mais interessante para o sociólogo, o sujeito analítico, o que quer dizer, aquele que nos mostra como ele analisa sua vida cotidiana a fim de lhe dar sentido e a fim de poder tomar suas decisões em função do contexto, em função de sua definição da situação (COULON, 1984, p. 90, tradução nossa).

Temos então que, além de conhecer as condições objetivas de vida dos sujeitos, é necessário compreender o sentido que dão ao seu meio, a sua situação e a suas ações (o sentido que constroem), o que só poderá ser feito no âmbito de uma história de vida.

Inspirando-se nessa tradição, numerosas obras transformaram-se em clássicos, por exemplo, a obra de Don C. Talayesva, Solei hopi (1962), na qual o autor, um índio hopi, conta sua vida, a pedido de Léo Simmons, que apresenta o texto. Oscar Lewis, em 1963, escreve Les enfants de Sánchez:

autobiographie d’une famille mexicaine, obra composta pelas histórias de

vida de Jésus Sánchez e de seus quatro filhos, uma família pobre vivendo na periferia da cidade do México. Temos também a obra de Maurizio Ca- tani e Suzanne Maze, de 1982, Tante Suzanne, une histoire de vie sociale, que se trata da transcrição integral de entrevistas que contam a vida de Suzanne Maze. E ainda a obra de Adélaïde Blasquez, Gaston Lucas, serru-

rier: chronique de l’anti-héros (1976), que dá a palavra a um ex-trabalhador

pertencente à maioria silenciosa, à categoria de indivíduos sem importân- cia, o qual procura quebrar tal imagem.

Após a Segunda Guerra Mundial, as pesquisas quantitativas e trata- mentos numéricos tornam-se dominantes. A retomada de pesquisas qua- litativas por meio do recolhimento de histórias de vida é feita a partir dos trabalhos de Franco Ferrarotti, na Itália, e Daniel Bertaux, na França, no início dos anos 70.

Em meados da década de 70, Vincent de Gaulejac, Michel Bonetti e Jean Fraise, na França, criam os Groupes d’Implication et de Recherche5 (GIR) no campo da sociologia clínica, campo pluridisciplinar que se ins- pira em correntes teóricas das ciências humanas, tais como a sociologia, a psicanálise, a psicossociologia e a fenomenologia, entre as principais. Os seminários do GIR exploram as articulações entre romance familiar e trajetória social dos participantes e situam-se na interface de pesquisa, formação e trabalho sobre as histórias pessoais. Busca-se trabalhar a me- diação dos fatores econômicos, históricos, psicossociais e ideológicos nas trajetórias individuais, evitando cair no risco de um “psicologismo” ou “sociologismo”. Desses grupos participam profissionais de áreas diversas, entre os quais estão educadores, terapeutas, formadores de adultos, do- centes, trabalhadores sociais, consultores, pessoal da saúde, psicoterapeu- tas, sociólogos de práticas de intervenção, orientadores, etc.

A partir de 1983, abre-se outra perspectiva de utilização de histórias de vida, dessa vez no campo da educação e formação de adultos. É criada, em 1990, a Association Internationale des Histoires de Vie en Formation6 (ASIHVIF), que considera a história de vida como uma abordagem privi- legiada para a autoformação, especialmente no campo da educação popu- lar, reivindicando uma ação emancipatória (LEGRAND, 1993). Participam vários pesquisadores, entre os quais Gaston Pineau (Tours, França), Guy de Villers (Louvain la Neuve, Bélgica) e Pierre Dominicé (Genebra, Suíça). As pesquisas nesse campo são orientadas por referências teóricas diversas – fi- losofia existencial, sociologia, psicanálise, linguística, teorias da formação.

Nos estudos e pesquisas sociológicas no Brasil, a abordagem biográfica não tem tradição, sendo recente o interesse por pesquisas em histórias de vida que tomam como foco o indivíduo ou o grupo que narra sua história7.

No campo da história (história oral, sobretudo), a abordagem biográ- fica orienta grande número de pesquisas e obtém importante reconheci- mento, mas, em outras áreas disciplinares, essa perspectiva metodológica enfrenta inúmeras dificuldades no sentido de legitimar-se e ser reconhe- cida, pois é considerada por muitos como extremamente subjetiva, logo, pouco científica8. A obra clássica de Eclea Bosi, Memória e sociedade: lem-

branças de velhos (1987), e os trabalhos de Michel Le Ven, Dazinho, um

5 Grupos de implicação e de pesquisa.

6 Associação Internacional de Histórias de Vida em Formação.

7 No campo da psicossociologia e sociologia clínica, ver Barros (2000, 2006, 2009); Barros e Silva (2002); Carreteiro (2009a, 2009b, 2009c); Takeuti e Niewiadomski (2009). 8 Especialmente o Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getu- lio Vargas, no Rio de Janeiro.

cristão nas minas (1998)9, e de Denise Paraná, O filho do Brasil: de Luiz

Ignácio a Lula (1996)10, são as referências principais da utilização de histó- rias de vidas em pesquisa.

Como ressaltam Takeuti e Niewiadomski (2009), a partir dos anos 1990, manifesta-se o interesse, na academia brasileira, pela abordagem biográfica sob influência de diversas inspirações. Como ilustração, pode- se citar o desenvolvimento, desde o início dessa década, da abordagem “história de vida em formação”, reunindo, em grande parte, pesquisado- res do campo da educação. O desenvolvimento dessa corrente pode ser observado na criação de associações, por exemplo, a Associação Norte- Nordeste de Histórias de Vida em Formação (ANNHIVIF), em Natal, no Rio Grande do Norte, que mantém estreitas relações com outras entidades estrangeiras, como a ASIHVIF, além da realização de encontros interna- cionais, nacionais e regionais.

Nesses trabalhos com histórias de vida, predominou, inicialmente, a preocupação em se apreender através de histórias ou relatos individu- ais, processos e relações sociais, porém, mais recentemente, nota-se maior preocupação com processos de subjetivação das pessoas que narram sua própria história e/ou de sua coletividade.

Por ora, cumpre notar que as abordagens reunidas sob o termo “aborda- gem biográfica” parecem estar se impondo como um modo disciplinar de acesso ao sentido, o que vem fortemente questionar certas práticas de pes- quisa sedimentadas nas Ciências Humanas e Sociais. Desse modo, práticas autobiográficas, relatos de vida e histórias de vida individuais ou coletivas, todos eles se inscrevem na perspectiva do campo em que o pesquisador se encontra. Veremos, outrossim, que essas práticas não são homogêneas e, dentre elas, há aquelas que, mais do que outras, vão participar de um pro- fundo remanejamento das relações intersubjetivas das pessoas implicadas num processo de narração e de trocas, modificando sensivelmente as re- lações de “poder-saber”, geralmente presentes numa pesquisa (TAKEUTI; NIEWIADOMSKI, 2009, p. 20).

O campo da intervenção psicossociológica no Brasil, tanto na acade- mia quanto fora dela, tem desenvolvido a utilização de práticas biográficas 9 Trata-se do relato da vida de Dazinho, líder trabalhador em Minas Gerais e deputado operário cassado pela ditadura militar.

10 A autora, inspirando-se no trabalho de Lewis, apresenta as narrativas de vida de Lula e de seus irmãos e irmãs.

expressivas, que se apresentam de várias formas – escritas, verbais, artísti- cas, gestuais – e se expressam em diversos contextos relacionais11. Trata-se principalmente de registro de memórias individuais e coletivas, de experi- ências e de trajetórias, trabalhadas conjuntamente com o objetivo de “dar voz”, transformar e emancipar coletividades, dar visibilidade à história, cultura e experiência de um grupo/organização/movimento. São diversas as denominações que recebem tais práticas, o que demonstra a existência de distintas opções teórico-metodológicas tendo como elemento comum a narrativa de uma (ou várias) vidas. Esse trabalho de narração é sempre uma coconstrução (LEGRAND, 2008) dinâmica, no sentido de que uma vida nunca é contada da mesma maneira, pois ela é constantemente tra- balhada pelas vivências do narrador. Como são recentes, falta ainda uma melhor sistematização e uma divulgação mais ampla dessas práticas como produção científica. Muitas vezes, elas ficam restritas a apresentações em congressos como relatos de experiências, cuja repercussão ainda não im- pacta significativamente o campo do conhecimento.