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7 Perfil Distributivo das Políticas Sociais: aposentadorias, pensões e riqueza

7.5 Aspectos Institucionais e Desigualdades nas Políticas Sociais

Há duas boas razões para se analisar a história das políticas sociais brasileiras em um estudo sobre desigualdade. A primeira é entender em que medida aspectos determinados na origem e momentos intermediários da evolução do sistema afetam, por inércia, as políticas atuais. Não se trata apenas de verificar se as características do sistema de proteção social expressam uma organização de atores e forças políticas que permanece relativamente estável no tempo, mas, também, o peso de instituições criadas no passado na estrutura organizacional das políticas no presente, pois resultados empíricos apontam para a existência de uma relação entre o perfil distributivo das políticas sociais de um país e a história de sua institucionalização. Bonoli (1997:367), por exemplo, ao analisar 16 países europeus, conclui que decisões tomadas um século antes ainda exercem alguma influência sobre suas políticas sociais atuais, mesmo quando se considera a forte convergência observada no perfil dessas políticas nas últimas décadas.

A segunda razão é identificar se as características do sistema de proteção social observadas em determinado período são conjunturais, isto é, refletem apenas um quadro momentâneo da sociedade. Uma breve análise da evolução das instituições que hoje são responsáveis pela administração do sistema previdenciário e de assistência social no Brasil mostra que o viés concentrador desse sistema não é resultado de circunstâncias desfavoráveis localizadas em um momento específico do tempo mas, antes, uma característica que acompanha parte das políticas sociais brasileiras ao longo de sua história. As forças que, em outros países, imprimiram um caráter igualitarista às políticas sociais tiveram, no Brasil, impacto limitado ou até mesmo seus resultados anulados na constituição do sistema de proteção social.

A literatura internacional que trata do Welfare State nos países industrializados da América do Norte e Europa Ocidental é bastante extensa, mas há nas análises uma certa convergência no que diz respeito aos fatores que determinam a origem e a evolução do Welfare State nesses países. A consolidação de sistemas amplos de políticas sociais é freqüentemente relacionada às necessidades de regulação da economia capitalista por meio do “keynesianismo”, ao controle dos conflitos políticos, à influência sobre a mercantilização e reprodução da força de trabalho e às relações de

força existente entre os diversos grupos hegemônicos da sociedade (Piore & Sabel, 1984; Vacca, 1991; Przerworsky & Wallerstein, 1988; Lipietz, 1992).

No que diz respeito ao caráter distributivo das políticas sociais, a literatura tende, especialmente a partir do trabalho de T.H. Marshall sobre cidadania e classe social em 1949 (Marshall, 1996), a interpretar o Welfare State como um passo da sociedade em relação a um sistema mais igualitário. Estudos mais detalhados sobre essa literatura mostram que isto ocorre mesmo entre aqueles que não consideram uma maior igualdade algo desejável (Goodin, 1998; Barry, 1990; Pierson,1991). Os resultados de pesquisas feitas em países desenvolvidos indicam que, ao menos até a década de 1990, essas políticas realmente tiveram efeitos igualitários, a ponto de Esping-Andersen (1990) considerá-las um mecanismo de redistribuição do poder pela via da desmercantilização da força de trabalho e Flora & Heidenheimer as julgarem uma “nova forma de solidariedade” (1982:24).

Ora, o panorama delineado pelos dados referentes à distribuição das aposentadorias e pensões públicas indica que o caráter igualitário das políticas sociais brasileiras é um tanto restrito. A distribuição desses benefícios, que juntos compõem os principais gastos sociais brasileiros, é bastante equilibrada entre a grande maioria dos beneficiários, porém torna-se extremamente concentrada nos que recebem os benefícios de valor mais alto. Os beneficiários mais ricos são justamente aqueles que consome a maior quantidade de recursos do sistema.

A verdade é que, fora do conjunto dos países industrializados, é comum as políticas sociais seguirem uma trajetória distinta. Não raro nos países subdesenvolvidos a ação estatal na economia esteve, ao longo de boa parte do século XX, predominantemente orientada à implantação de infra-estrutura e aquisição de bens de capital, pois a regulação sistemática da demanda muitas vezes estava além do alcance das políticas keynesianistas nacionais devido ao peso do setor externo em suas economias.

A história dos conflitos políticos no Brasil ajuda a explicar porque o caráter igualitário do sistema de proteção social é restrito. Diferente da história de alguns países desenvolvidos, onde o Welfare State surge como resultado das barganhas políticas dos trabalhadores, o Brasil tem, na origem de suas políticas, um mecanismo de constituição da força de trabalho industrial por intermédio do Estado, seguindo um processo semelhante ao indicado por Offe & Lenhardt (1990:92-94). As pesquisas de Malloy

(1979:45,56,71), Barcellos (1983:11) e Draibe (1998) mostram que, em suas origens, as políticas trabalhistas e de seguridade social brasileiras tinham caráter conservador e reformista, sendo usadas para restringir a legitimidade das lideranças trabalhadoras nas reivindicações sociais e, com isto, limitar a capacidade de mobilização dos trabalhadores em geral.

A institucionalização das políticas sociais em um contexto como esse resulta na concessão de benefícios a grupos isolados de trabalhadores com algum poder de barganha e, para os demais, políticas assistenciais de caráter populista. A destinação de recursos públicos à elite dos trabalhadores aumenta a desigualdade e dificulta a realização dos compromissos entre capital e trabalho que estão na base do Welfare State de países desenvolvido destacados por Esping-Andersen (1990), Przeworsky & Wallerstein (1988), Lipietz (1992) e Clarke (1991), impedindo que, no Brasil, as políticas sociais atuem como um mecanismo eficiente de redução das desigualdades sociais.

Rueschenmeyer & Evans (1985), Weir & Skocpol (1985) e King (1988) enfatizam a importância da burocracia na elaboração de políticas que vão de encontro às lógicas tanto de mercado quanto de instituições sociais como as do Estado nos países em que a máquina burocrática, por um lado, tem maior autonomia em relação à classe dominante e ao governo e, por outro, compartilha valores políticos simpáticos aos interesses da população em geral. No Brasil, porém, a máquina burocrática voltou-se para a defesa de seus interesses corporativos, mesmo nos períodos em que o autoritarismo do Estado foi reduzido (Malloy, 1979:81-3; Draibe, 1989:10-3). Neste sentido, o regime de proteção social brasileiro não se caracterizou por um “compromisso” amplo entre trabalhadores e capitalistas mediado por uma burocracia vinculada aos primeiros mas, antes, por pactos restritos à burocracia e às elites que acabaram limitando o caráter distributivo das políticas sociais.

Desde a institucionalização dos programas de seguridade social, a extensão de benefícios aos trabalhadores foi limitada, fazendo com que a seguridade social se aproximasse mais de um sistema de redistribuição horizontal (dentro de um mesmo grupo) do que de redistribuição vertical (entre diferentes grupos) sendo, portanto, incapaz de romper a inércia das desigualdades (Barcellos, 1983). Embora o modelo de desenvolvimento da década de 1970 tenha criado uma série de pressões para modificações no perfil do sistema de proteção social, sem a pressão de movimentos de

trabalhadores e com uma burocracia corporativa, o sistema de políticas sociais tornou-se regressivo, transferindo recursos para os estratos de maior renda e até fins da década de 1980 o caráter distributivo do sistema esteve limitado a um conjunto de programas assistenciais com patamares mínimos muito baixos (Martine, 1989:100-7; Draibe,1989:10-5, 1998:302; Huber,1996:150; Fagnani,1997:214).

Embora a Constituição de 1988 e a legislação complementar posterior tenham introduzido uma série de alterações no quadro legal das políticas sociais brasileiras, mudanças institucionais mais expressivas vão ocorrer apenas em meados da década de 1990 (Fagnani,1997:223; Draibe, 1998:309). A universalização do acesso e gratuidade dos serviços estatais foram passos importantes para tornar o sistema mais abrangente, o reforço da importância de critérios de seletividade e os processos de descentralização e redução do estatismo por sua vez, relevantes para a diminuição do particularismo e clientelismo. No entanto, há indicações que o perfil dos gastos sociais brasileiros é ainda muito pouco igualitário.

Os estudos de Ramos (2000) e Amsberg, Lanjouw & Nead (2000), por exemplo, mostram que, no final da década de 1990, boa parte das políticas sociais estão focalizadas nos estratos superiores da distribuição de renda. A estimativa de Barros & Fogel (2000:718) é de que apenas 13% do gasto social atinja os pobres. As políticas públicas de creche, pré-escola, ensino básico, merenda escolar, distribuição de livros didáticos e saúde beneficiam prioritariamente os estratos mais baixos da sociedade. Elas representam, porém, uma fração pequena do gasto social total. A maior parte deste gasto, distribuída entre aposentadorias e pensões, apresenta caráter regressivo, destinando-se à população de renda mais alta.

No Brasil a fragmentação da sociedade e dos atores do Estado em pequenos grupos de interesse autônomos e o personalismo das instituições públicas são obstáculos a reformas de caráter igualitarista mais expressivo nas políticas sociais. Ambos dificultam tanto formação de movimentos de base capazes de pressionar por mudanças quanto a reforma do regime por iniciativa das lideranças políticas e da burocracia (Weyland,1996:17,29,184). Como nem um nem outro foram radicalmente alterados no final da década de 1990, não há razão para crer que as políticas sociais devessem adquirir perfil mais eqüitativo nos últimos anos, embora seja possível a ocorrência de mudanças no futuro.

No caso específico das aposentadorias e pensões, diversas tentativas de reforma no sistema de previdência social foram tentadas na última década. Nenhuma delas, porém, foi capaz de modificar seu caráter regressivo. O primeiro obstáculo para a reforma do sistema, após a promulgação das cláusulas claramente igualitaristas da Constituição de 1988, foi a política de ajuste fiscal seguida pelo Governo Federal. Segundo Weyland (1996:142), para atingir as metas de ajuste estabelecidas em acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Ministério da Fazenda (MF) e a Secretaria de Planejamento (SEPLAN) lançaram mão dos fundos previdenciários para cobrir outras despesas, consumindo, no curto prazo, recursos que poderiam ser utilizados para alterar algumas características do sistema de seguridade social. O uso desses recursos para outros fins bloqueou os planos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) de reduzir os valores-base de contribuição de modo a permitir a inclusão dos trabalhadores de baixa renda no sistema, o que o tornaria, senão mais igualitário, ao menos mais abrangente.

À medida que disputava com o MF e a SEPLAN por apoio no Congresso, o MPAS foi incapaz de controlar a generosidade dos parlamentares em relação ao lobby das corporações politicamente organizadas e, como resultado, diversas vantagens foram concedidas apenas aos estratos mais ricos dos beneficiários. Ainda assim, em 1993 a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) focaliza medidas de assistência entre os idosos e deficientes da população mais pobre não coberta pelo sistema. Porém, devido às pressões fiscais, os valores estabelecidos para os benefícios foram mínimos, limitando os efeitos redistributivos da legislação. Tentativas posteriores de reforma do sistema previdenciário que poderiam resultar em redistribuição encontraram resistência política, por um lado, dos servidores públicos civis e militares, que temiam perder vantagens adquiridas e, por outro, dos setores da sociedade que acreditavam que isso abriria espaço para reformas que tornariam o sistema ainda mais regressivo (Weyland, 1996:142-149).

7.6

A Renda dos Ricos e as Aposentadorias e Pensões