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5 Construção de uma Linha de Riqueza

5.4 Definição da Linha de Pobreza

A estimativa da linha de riqueza requer uma linha de pobreza. Existem diversos métodos para se estimar esta linha, cada qual com suas vantagens e desvantagens. Todos eles refletem o fato de que, em última instância, a definição de pobreza é um juízo de valor e, portanto, está relacionada a circunstâncias históricas, geográficas e culturais específicas.

Há registros de definições de pobreza bastante antigas. No mundo árabe do século XIV, por exemplo, Ibn-Mandhur define pobreza no Lisan al-Arab como a

dependentes. Três séculos antes, Tha’aliby identifica no Fiqh al-Lugha oito níveis

diferentes de pobreza (Gordon & Spicker, 1998:9-10).

Atualmente, pobreza não é um termo de sentido único. Embora o debate acadêmico sobre o assunto seja bastante formalista, a discussão em torno dos conceitos utilizados é, em grande medida, reflexo de escolhas morais e posições políticas dos debatedores. Para fins analíticos, Spicker (1998) agrupa as noções que estão no núcleo das definições modernas de pobreza nas ciências sociais em onze categorias, que podem, eventualmente, ser reagrupadas ou subdivididas: necessidades básicas insatisfeitas, padrão de vida insuficiente, recursos limitados, vulnerabilidade a riscos sociais, direitos não respeitados ou falta de titulamentos, privação múltipla, exclusão social, desigualdade, classe social, dependência de serviços de assistência social e dificuldade moralmente inaceitável. A grande quantidade de categorias e sua diversidade interna indicam que um consenso amplo sobre o tema está longe de existir.

Maior do que a diversidade na definição da pobreza é a quantidade de métodos utilizados para medi-la. A mensuração nas ciências sociais é quase sempre algo sujeito a muitas controvérsias e um tema com forte apelo moral como a pobreza não foge à regra. Problemas que vão desde imprecisões na delimitação do objeto à indisponibilidade de informação coletada fazem com que, muitas vezes, a verificação empírica de teorias baseadas em definições complexas e abrangentes de pobreza tenha que se restringir a mensurações simples e limitadas.

É relativamente comum assumir que as primeiras mensurações científicas da pobreza começam no século XIX. Embora existam evidências de linhas de pobreza anteriores, em geral a apresentada por Charles Booth em 1887, na reunião da Royal Statistical Society inglesa, é tomada como o marco inicial das linhas de pobreza modernas, ainda que a expressão “linha de pobreza” não tenha sido popularizada por ele em seus escritos, mas por Rowntree, em suas medições da pobreza em York publicadas em 1901 (Soltow, 1989; Gilie,1996; Laderchi, 2000).

Por suas características, algumas definições modernas encontram maiores dificuldades de mensuração que outras. Conceitos como o de exclusão, fragilidade e

vulnerabilidade, por exemplo, baseiam-se, respectivamente, nas noções de

“enfraquecimento dos vínculos sociais” (Paugam,1996:15), “desclassificação social” (Paugam,2000:06) e “risco social” (Pizarro, 2001:11; Fitoussi & Rosanvallon,1996:28- 30) e são todos úteis para a análise, mas de difícil mensuração. Definições baseadas em

direitos e titulamentos (Marshall, 1996; Sen, 1981b) são mais fáceis de se operacionalizar, porém raramente existem dados disponíveis para tanto. São as definições de pobreza que se referem à qualidade física de vida aquelas cuja mensuração é mais viável.

A construção de indicadores de bem-estar para a identificação da pobreza não é uma tarefa trivial. Em geral a pobreza é definida como um fenômeno que diz respeito a diversos aspectos da vida humana e, portanto, requer medidas multidimensionais. A partir de meados da década de 1940 diversos esforços vem sendo feitos para avaliar o bem-estar de populações, dando origem a estudos sobre "condições de vida", "bem-estar social", "qualidade de vida", "desenvolvimento humano", etc. (Estés, 1994).

No entanto, Ward (1999) aponta que a maior parte dos indicadores multidimensionais de bem-estar (e, por conseqüência, de pobreza) enfrenta diversas dificuldades. Uma delas é estabelecer a ponderação dada a cada uma das dimensões. Sintetizar a informação de vários aspectos da vida humana em um único índice (isto é, criar um indicador sintético) exige a definição de uma regra que atribua peso específico a cada uma dessas dimensões. Embora indicadores sintéticos sejam amplamente aceitos, é muito pouco provável que a comunidade de analistas que o utiliza alcance um consenso razoável se o sistema de ponderação desses índices for colocado em debate. No caso de uma definição controversa como a de riqueza, isto representaria um problema grave a ser enfrentado.

O método proposto para estimar a linha de riqueza exige um indicador conversível em algo que possa ser transferido dos mais ricos aos mais pobres para eliminar a pobreza extrema. O indicador mais eficaz e conveniente, neste caso, é a renda. Assim como na identificação dos ricos, na identificação dos pobres o uso da renda como indicador possui algumas desvantagens em relação a indicadores multidimensionais, como mostram Streeten (1998) e Sen (1997). No caso da pobreza, alguns problemas relevantes dizem respeito ao recorte temporal limitado, à capacidade de consumo de bens não-mercantis ou gratuitos e aos benefícios não monetários recebidos, que podem ser determinantes importantes do bem-estar das pessoas de baixa renda. Essas desvantagens, porém, são compensadas pelas facilidades operacionais que os dados de renda oferecem. Além disso, apesar de suas deficiências, a renda é reconhecidamente um indicador útil para a identificação do status sócio-econômico dos indivíduos e está presente na maior parte das definições de pobreza.

A escolha da renda como indicador não esgota a lista de decisões necessárias para a estimativa da linha de pobreza, pois a mensuração monetária da pobreza pode ser feita por diferentes métodos. Embora alguns métodos produzam linhas múltiplas, faixas de pobreza ou utilizem probabilidades de alguém possuir rendas insuficientes (Laderchi, 2000; Pritchett, Suryahadi & Sumarto, 2000), a construção da linha de pobreza exige a demarcação de um ponto que sirva de fronteira única entre pobres e não pobres. Contando com as contribuições de Goedhart et al. (1977), Hagenaars & Praag (1985), Hagenaars & de Vos (1988), Ravaillon (1996), Gordon & Spicker (1998) e Feres & Mancero (1999) é possível montar a seguinte lista dos métodos de mensuração da pobreza através da renda mais utilizados na literatura:

1.Abordagens Baseadas na Forma da Distribuição da Renda

As abordagens baseadas na forma da distribuição da renda assumem que pobre é aquele que tem menos do que os outros. Em outras palavras essas abordagens estão mais preocupadas com a posição relativa dos indivíduos na distribuição da renda do que com o nível absoluto de renda. Estas abordagens levam a alguns dos métodos mais simples de definição da linha de pobreza, como o método do quantil da distribuição de renda, para o qual são pobres aqueles que se encontram abaixo de um quantil (fração) determinado da renda.

2.Abordagens Baseadas na relação entre Orçamento e Gastos Familiares

Em geral as abordagens baseadas unicamente na relação entre orçamento e gastos familiares não definem a priori os limites para os gastos. São pobres as famílias que têm gastos superiores a seus orçamentos. Em outras palavras, não importa o nível e a composição dos gastos familiares, apenas sua relação com o orçamento familiar.

3.Abordagens baseadas em Julgamentos Declarados

Conhecidas como “Linhas de Pobreza Subjetivas”, as linhas geradas por esse tipo de abordagem buscam transferir, na medida do possível, os julgamentos de valor implícitos na definição da pobreza para os membros da sociedade. Uma das intenções presentes no desenvolvimento dessas abordagens é identificar quais pessoas a sociedade supõe serem merecedoras de assistência (Kapteyn, Kooreman & Willemse, 1988; Hartog, 1988). Neste grupo incluem as definições de público elegível para a assistência social feitas por políticos ou as conhecidas Linhas de Pobreza Leyden, baseadas em pesquisas de opinião (Halleröd, 1994; Pradham & Ravaillon, 1998; Ravaillon & Lokshin, 1999, 2000).

4.Abordagens de renda para satisfação das necessidades básicas

As abordagens pela via das necessidades básicas consideram pobres aquelas pessoas que não possuem rendimentos suficientes para adquirir uma quantidade mínima de bens e serviços definidos como essenciais. São influenciadas pelos julgamentos de valor dos especialistas que estabelecem que bens e serviços são considerados essenciais e os meios de convertê-los em preços. As mais comuns usam métodos que se baseiam de alguma forma em cestas básicas de bens e serviços.

5.4.2 Definições e Métodos Mais Utilizados no Brasil

No Brasil as definições e métodos utilizados em estudos sobre a pobreza envolvem desde a abordagem das necessidades básicas, a partir de indicadores multidimensionais, a linhas de insuficiência de renda estabelecidas de modo totalmente arbitrário. Com o estabelecimento de um sistema regular de pesquisas domiciliares na década de 1970 o IBGE desenvolve uma série de estudos sobre indicadores sociais no país que foram fundamentais para se conhecer melhor as condições de vida da população brasileira, mas não levaram a um debate sistemático sobre as necessidades básicas, seus limites e sua ponderação em índices sintéticos. Mesmo trinta anos depois da implementação do sistema existe pouco consenso acerca dos critérios que devem utilizados para definir, por exemplo, habitação adequada.

Ao longo das décadas de 1970 e 1980 a maioria dos estudos sobre incidência da pobreza no Brasil utilizava algum múltiplo do salário mínimo como linha de pobreza. Os limites utilizados para definir a insuficiência de renda referiam-se tanto à renda total familiar, em geral dois salários-mínimos por família, ou à renda dividida pelo número de pessoas na família, meio ou um quarto de salário-mínimo per capita (Rocha, 1997:314; Gordon & Spicker, 1998:18). Trata-se de uma opção contestável, pois, os valores estabelecidos para os salários mínimos não refletem unicamente o custo de atendimento de necessidades básicas e os sucessivos procedimentos de atualização dos valores não levam em conta apenas critérios utilizados por definições de pobreza.

Com a disponibilidade, na década de 1980, de novos resultados de pesquisas sobre o consumo da população, tornaram-se mais comuns as estimativas de linhas de pobreza por meio de cestas alimentares observadas. Abordagens desse tipo calculam, em geral, duas linhas: uma de indigência, definida como o valor necessário para se

adquirir uma cesta de alimentos, e uma de pobreza, múltiplo da linha de indigência. Para acompanhar as flutuações regionais nos custos de vida, essas linhas foram estimadas para diversos subespaços geográficos e alguns procedimentos para sua atualização no tempo foram desenvolvidos.

Nos últimos anos, grande parte das linhas utilizadas no país é definida a partir da insuficiência de renda, com os limites definidos ora por frações do salário-mínimo per

capita, ora por métodos que utilizam cestas de alimentos. Apesar de, por um lado, a

legislação brasileira de assistência social utilizar frações do salário-mínimo per capita como parâmetro na focalização de políticas e, por outro, linhas baseadas pelo método da razão do custo dos alimentos serem regularmente estimadas pelo IPEA, utilizando, para isto, dados do IBGE, não existe, atualmente, uma linha oficial de pobreza no Brasil.

Ao invés de uma linha amplamente aceita, há uma razoável disparidade nos resultados de cálculos de linha de pobreza no país, mesmo quando um único método é utilizado. Na abordagem da razão do custo dos alimentos, por exemplo, antes da estimativa final da linha de pobreza são tomadas diversas decisões que influenciam diretamente os resultados. Já no momento do cálculo das necessidades energéticas da população, que antecede a definição da cesta de alimentos, existem discrepâncias entre estudos que implicam valores diferentes para as linhas estimadas (Rocha, 1993, 2000; Lustosa & Landen, 1999). Várias escolhas que devem ser feitas, como as que se referem a fontes de dados, atualização de preços, definição do grupo de consumo de referência, multiplicador da linha de indigência, entre outras, fazem com que, em diferentes estudos nas últimas duas décadas, linhas estimadas a partir do custo de cestas de alimentos na renda familiar total raramente coincidam (Rocha, 1988, 2000, 2001).