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CAPÍTULO 4 – Da macroestrutura ao dicionário

4.3 Epistemologia terminológica e terminográfica bilíngue a partir de línguas indígenas:

4.3.1 Aspectos morfológicos da língua Mundurukú

Esta pesquisa, por seguir os pressupostos teóricos da TCT (cf. 2.1.2.2), concebe a linguagem de especialidade como parte da língua natural e não como uma língua à parte.

Portanto, as unidades terminológicas também partilham dos elementos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos da língua natural na qual estão inseridas. Será por meio da pragmática e do discurso que essas unidades serão diferenciadas, realizando-se como unidades terminológicas dependendo do valor adquirido no uso. Desse modo, é fundamental analisar as unidades terminológicas nos textos, pois é na comunicação que elas se apresentam. Assim o conhecimento especializado pode estar vinculado desde os níveis fonológicos até os discursivos.

A língua Mundurukú, pertencente ao tronco Tupí, família Mundurukú, é classificada dentro das tipologias morfológicas como uma língua polissintética; línguas polissintéticas são “(...) caracterizadas por uma morfologia complexa capaz de colocar numa única palavra muitos morfemas que seriam palavras independentes em muitas línguas analíticas” (PETTER, 2005, p. 61). Já o Português é classificado morfologicamente como uma língua flexional, ou seja, língua “(...) em que raízes se combinam a elementos gramaticais, que indicam a função das palavras e não podem ser segmentadas na base de ‘um som e um significado’, ou um afixo para cada significado gramatical, como nas línguas aglutinantes” 28 (PETTER, 2005, p.61).

As línguas não apresentam exclusivamente uma tipologia, mas sim uma tendência maior a uma delas. Por isso, as tipologias morfológicas não apresentam vantagens ou desvantagens linguísticas, mas influenciam e refletem nas terminologias encontradas nas línguas. É possível identificar um desses reflexos ao analisar morfologicamente os termos em Mundurukú, pois boa parte deles corresponde a uma sentença em Português. Exemplos:

(1) Aprender ► je-we-mu-taybin {voz média-reflexivo-causativo-verbo saber}

‘literalmente, fazer alguém saber algo por si mesmo e em si mesmo.’ (2) Educador ► i-mu-aysan-'uk-at {3ª pessoa-causativo-pensamento de

alguém- habitual-nominalizador de agente}

‘literalmente, aquele que tem o hábito de fazer amadurecer o pensamento de alguém. ’

(3) Aluno ► etaybin-bin-at {saber-reduplicação-nominalizador de agente} ‘literalmente, aquele que tem o hábito de aprender. ’

28 Nas línguas aglutinantes “(...) as palavras combinam raízes (elementos irredutíveis e comuns a uma série de

Fica evidenciado que os termos em Mundurukú carregam os mesmos elementos e seguem os mesmos processos de formação lexical existentes na língua, e que, devido à tipologia polissintética, é possível perceber que o próprio termo já traz informação de uma primeira explicação sobre o que é o termo, aproximando-se de uma “acepção preliminar”.

Outra característica importante é que, em um dicionário terminológico, as entradas são registradas na forma como elas aparecem no uso e não na forma canônica como aparecem nos dicionários lexicográficos (Cf. 2.2.1). Por isso, o registro dos termos que contêm prefixos é sempre lematizado, diferentemente dos dicionários de língua geral, que podem optar pela lematização ou não, por pressupor que o usuário já conhece seu uso. Na língua Mundurukú, existe o prefixo {i-} que, de acordo com Gomes (2006), é um ‘relacional de não- contiguidade’ e refere-se à 3ª pessoa. “Esse prefixo indica que a palavra na qual ele ocorre só existe com relação a outra palavra; em alguma medida, é usado como fator de indeterminação, ou melhor, de indefinição, tendo em vista que a 3ª pessoa acaba por assumir esse papel na língua” (GOMES & FERREIRA, 2012, p. 73). Por carregar esse fator de indeterminação referente à 3ª pessoa, torna-se um prefixo bastante produtivo nas terminologias, o que nos fez refletir sobre a escolha ou não da ordenação alfabética como forma de organização macroestrutural no dicionário, uma vez que a grande maioria dos termos em Mundurukú inicia-se pela letra “i”. Porém, a opção pela ordenação alfabética se deu, em primeiro lugar, por ser através desse modo que a grande maioria dos dicionários é organizada, e os alunos do ensino médio já têm contato com dicionários dessa natureza; em segundo lugar, como o curso de magistério é dado por professores não índios e que utilizam material impresso em Português, isso faz com que costumeiramente o primeiro contato com o termo se dê em Português, e para esta língua a ordenação alfabética é bastante produtiva. Outro fator que influenciou na escolha da ordenação alfabética é que uma ordenação por subárea ou qualquer outro critério de classificação e agrupamento dos termos poderia levar o usuário a gastar um maior tempo na busca da entrada, desestimulando o uso do dicionário.

O fato de se encontrar nos termos formações morfológicas prototípicas da língua Mundurukú reforça o pressuposto de que a linguagem de especialidade faz parte da língua natural. Mais um aspecto morfológico existente no Mundurukú encontrado nos termos são os nomes em função classificadora (NFC), que segundo Gomes (2006, p.178) são “(...) nomes inalienáveis que podem ser usados em função classificadora, mas não uma classe morfológica que desempenhe exclusivamente essa função”. Ainda segundo Gomes (2006), todos os NFC em Mundurukú são nomes de partes e referem-se à forma do objeto designado, de posse inalienável. Nos termos do magistério, encontramos os seguintes exemplos contendo NFC:

Quadro 8 – Exemplos de termos com nome em função classificadora em Mundurukú NFC Significado primitivo Significado derivado Termo em Mundurukú Termo em Português

-dup ‘folha’ Formato

foliforme Livrodup ou taperadup Livro Taperadup ou kartilhadup Cartilha Taperadup Caderno ou a própria folha do caderno -a ‘cabeça’ Formato arredondado ou edificação Etaybinbinap’a ou imutaybinbinap’a ou eskora’a Escola

-ip ‘pau’ Formato de bastão Bararakap’ip Lapiseira

O termo referente à "escola" em Mundurukú traz um uso extendido do NFC {-'a}, que não está mais restrito à forma arredondada, sendo usado também para qualquer edificação. Essa motivação se deu muito provavelmente porque as casas (uk ’a) Mundurukú

apresentavam originalmente o formato arredondado, assim como as demais edificações. Portanto, hoje, as edificações das casas ou das escolas, mesmo não apresentando necessariamente a forma arredondada, recebem o NFC -‘a por extensão semântica.

É possível identificar também a estreita relação dos NFC em Mundurukú com os empréstimos do Português. Gomes (2006, p. 198) expõe que:

O fato de empréstimos receberem um tratamento diferenciado em uma língua não é um fato novo nas línguas do mundo, sendo, possivelmente, uma forma de marcar o diferente, o estrangeiro. Essa possível marcação diferenciada de empréstimos em Mundurukú é identificada em outra parte de sua gramática: todos os empréstimos são tratados como nomes alienavelmente possuíveis.

Assim, os empréstimos parecem gozar de um tratamento diferenciado, tanto em relação à tendência de se combinar com um NFC, quanto em relação à sua inclusão em uma classe específica de nomes, a dos alienáveis.

Com os exemplos dados, verificamos que os NFC constituem um rico sistema de produção morfológica na língua Mundurukú e, por consequência, também estão presentes na terminologia dessa língua.