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CAPÍTULO 4 – Da macroestrutura ao dicionário

4.3 Epistemologia terminológica e terminográfica bilíngue a partir de línguas indígenas:

4.3.4 Variação

A variação é aceita e registrada em nosso dicionário porque seguimos os aportes teóricos da Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT) (Cf. seção 2.1.2.2) e também dialogamos com a Socioterminologia (Cf. seção 2.1.2.1), e ambas tratam a linguagem de

especialidade como parte da língua natural e, por isso, também a consideram passível de variação.

A relação do Mundurukú com os empréstimos do Português é produtiva. Vale ressaltar que, além da questão ortográfica que será abordada na secção 4.3.5, esses empréstimos sofrem influencia direta da língua que os acolhe. Como já exposto na seção 4.3.1, encontramos uma forte influencia no aspecto morfológico, fazendo com que esses empréstimos oriundos do Português em determinados casos recebam um nome em função classificadora (NFC) típico da língua Mundurukú. Em 12 e 13, encontramos o NFC dup 'foliforme' com os empréstimos "kartilha dup" e "livro dup"; em 14, o NFC 'a 'arredondado; edificação' ocorrendo com o empréstimo "eskora 'a":

(12) cartilha ► tapera dup/ kartilha dup (13) livro ► taperadup / livro dup

(14) escola ► etaybinbinap ’a; imutaybinbinap ’a / eskora 'a

Por se tratar de um dicionário bilíngue e por buscar dar espaço para a língua Mundurukú nos ambientes técnicos e científicos da sociedade não indígena, nos preocupamos primeiramente com as variantes competitivas. De acordo com Silva (2012, p. 472), “a variante competitiva é aquela que relaciona significados entre itens lexicais de línguas diferentes, quer dizer, itens lexicais de uma língua B preenchem lacunas de uma língua A”.

As variantes competitivas são registradas no dicionário, pois respeitamos a existência de empréstimos, sobretudo os já cristalizados. Porém, quando não há um equivalente imediato, incentivamos a criação de um neologismo e não a adoção direta de um empréstimo, pois temos como objetivo valorizar a língua Mundurukú e ampliar seu espaço discursivo frente ao Português. Assim, ao registrar uma variante competitiva, tomamos o cuidado de verificar se não existe uma variante concorrente em língua Mundurukú, e, caso exista, ela será registrada primeiro, e a variante competitiva, oriunda do empréstimo, será registrada como última alternativa.

Todas as variantes concorrentes são registradas na entrada do verbete e no campo do equivalente. Quando se constituem de itens lexicais distintos, usamos barra inclinada (/) para separá-las e, para variantes gramaticais (fonológicas, morfológicas, etc.), usamos ponto-e- vírgula (;) para separá-las. Vejamos mais alguns exemplos:

(15) auxiliar administrativo/ apoio administrativo ► ibuywatat /ikukat puywatat (16) cadeira ► abikap; abikbikap/ xik iap/ kadera

(17) disciplina/matéria ► etaybinap

Podemos observar que a variação ocorre tanto em Português quanto em Mundurukú. Apesar de registramos toda variação na entrada e equivalência, é preciso salientar que todas computarão uma entrada, porém apenas a variante mais frequente carregará as informações completas do verbete; as outras serão registradas. Adotamos o uso de remissão cruzada, em que indicamos a consulta da outra variante.

Dentre as variantes concorrentes, destacamos a ocorrência de variantes geográficas nos seguintes casos:

(18) apagador ► imu'umu'umap/ imupirmrmap

(19) escola ► etaybinbinap’a; imutaybinbinap’a; mutaybin ap’a/ eskora'a

No exemplo 18, descobrimos que, no alto Tapajós, usam esses termos para "apagador de quadro escolar, de luz e de lanterna"; porém, no médio Tapajós, não se usa “imupirmrmap” para quadro, pois é utilizado no sentido sexual de "apagar o fogo de alguém". Daí, explicitamos essa questão no campo "nota" e também utilizamos aspas (“ ”) para a expressão idiomática citada. Já o exemplo 19 registra que, na aldeia Praia do Mangue, utiliza-se frequentemente o termo “etaybinbinap’a” para “escola” e, na região do rio das Tropas, utiliza-se “mutaybin ap’a”. Esse tipo de variação foi identificado, pois coletamos os dados com colaboradores distintos e aproveitamos ao máximo o seu registro, sobretudo os registros de uso, pois boa parte da variação identificada aparece no momento em que são dados exemplos durante as oficinas terminológicas em nossos trabalhos de campo.

Outro exemplo interessante de variação está relacionado ao aspecto temporal. Ao discutir nas oficinas terminológicas sobre o termo “giz”, encontramos o termo “wida jo'iat”, que, segundo os nossos colaboradores, não é mais usado (pelo menos nas comunidades a que eles pertencem); "wida jo'iat" se refere a uma pedra que parece argila. Nesse caso, encontramos parônimos na língua Mundurukú, pois i) “wida” pronunciado com o tom baixo significa 'argila', ii) em contraste com “wida” pronunciado com tom larigalizado, o qual significa ‘onça’, e ainda iii) “wida” pronunciado com tom alto, significando 'calcanhar'. Mesmo os nossos colaboradores informando que "wida jo'iat" está em desuso, registramos

essa informação em uma nota, pois não pretendemos perder informações relativas à língua Mundurukú, uma vez que o trabalho também objetiva documentá-la. Também registramos, na nota, os parônimos. Nesse caso, não conseguimos diminuir o grau de tecnicismo na nota, e tivemos de falar em tipos tonais.

Quadro 22 – Registro de uma variante temporal (wida jo'iat) e de parônimos

giz

kodepap 'ip/wida jo'iat

s.m. R.D.

Pequeno bastão usado para escrever

no quadro na escola; pincel. O giz quebrou.

Kodepap ’ip oyopcuk. O pincel quebrou.

Kodepap ’ip oyopbag. <Nota: O termo wida jo'iat não é mais usado e se refere a uma

pedra que parece argila. Nesse caso, wida significa 'argila' com tom baixo em

contraste com wida 'onça' (tom laringalizado) e wida 'calcanhar' (tom alto).>

quadro; pincel.

Outro termo que encontramos uma variante antiga é o termo “televisão”, também acrescentamos a informação em uma nota.

Quadro 23 - Registro 2 de variante temporal

televisão

etabixiririk/ televizão

s.f. R.D.

Material didático capaz de

transmitir imagem e som gerados ao vivo ou gravados. <Nota: etabixiririk é uma

palavra antiga, que significa "algo que chegou na minha vista, uma luz".>

material didático.

Também encontramos variação em relação à fala de homem e de mulher. Quadro 24 – Registro de variante de gênero

aprovação

ikapap; imukapap

s.f. O.P.

1. Reconhecimento de que o

estudante domina um conteúdo e tem determinadas habilidades e competências. 2.

Vencer um desafio. Todos os alunos passaram de ano. Etaybinbinay soat okap ijop

ekoato; A aprovação do meu filho me alegrou. Okpot kapap omucokcok.

(homem falando)

<Nota: Para um índio Mundurukú, ser aprovado é vencer o desafio proposto.>

Neste caso, registramos entre parênteses que a fala é de homem.

Em relação aos termos coocorrentes, que segundo (SILVA, 2012, p. 471) “(...) ocorre quando uma mesmo referente recebe duas ou mais denominações e desencadeia a sinonímia terminológica”, também foi possível identificá-los, sobretudo no momento de discussão nas oficinas terminológicas. Ressaltamos que nossos termos em Mundurukú foram coletados por meio do discurso e reflexões geradas nas oficinas, pois nossa pesquisa se insere em uma abordagem comunicativa da Terminologia, valorizando as terminologias inseridas no uso da linguagem de especialidade. Segue um exemplo:

Quadro 25 – Exemplo de variantes coocorrentes

rádio/aparelho de som

yaijoap'a; yaijojoap'a/ yaõkareyreyat'a/

yaxixi'a/ radio'a

s.m. R.D.

Material didático que reproduz sons diversos, como

músicas e vozes.

O professor usou o aparelho de som para dar uma boa aula.

Mutaybinbin’ukat yaxixi’a oya kuk xipan je awla um am.

O professor tem um rádio.

Mutaybinbin’ukat yajojoap a’e. O rádio está barulhento. Radio’a ya’õkarey.

<Nota: A palavra yaõkareyreyat'a é usada pelas mulheres mais velhas para reclamar do som dos mais novos; já a palavra iaxixi'a é considerada uma palavra recém-criada>  gravador, rádio.

Nesse exemplo, temos que “yaijoap'a” e “yaijojoap'a” são sinônimos, variando morfologicamente (no segundo, ocorre a reduplicação do verbo de base), mas “yaõkareyreyat'a” e “iaxixi'a” não, pois se referem a outros usos, feitos por pessoas específicas e com valoração diferente do aparelho; logo, temos um conjunto de equivalentes que constituem uma rede conceitual para o termo "rádio". Para esse caso, explicamos em uma nota que “yaõkareyreyat'a” é usada pelas mulheres mais velhas para reclamar do som dos mais novos, e “iaxixi'a” é considerada uma palavra recém-criada.

Por fim, nos deparamos com casos de polissemia em nossos dados. Encontramos o termo “tapera dup” que, em Mundurukú, pode ser tanto “cartilha”, “cartaz”, “cartolina” ou “livro”. No caso do uso de “taperadup” referente a cartaz ou cartolina, o termo em Mundurukú fica “tapera dup xixi dup”, pois recebe o modificar “xixi” que significa ‘grande’.

O registro de todos os termos e suas variantes que apareceram em Mundurukú está presente no dicionário não só por reconhecermos a variação na terminologia como aborda

nossa corrente teórica, mas, sobretudo, para não perdemos nada da língua, uma vez que um dos objetivos do dicionário é também a documentação da língua Mundurukú.