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CAPÍTULO 4 – Da macroestrutura ao dicionário

4.3 Epistemologia terminológica e terminográfica bilíngue a partir de línguas indígenas:

4.3.5 Questões ortográficas e o tratamento dos empréstimos

Coletamos termos formados por meio de empréstimos do Português e que já estão inseridos nos discursos em língua Mundurukú. Como é comum acontecer com os empréstimos, eles sofrem influência da língua que os recebe, acomodando-se à estrutura dela. Os ajustes para acomodá-los à língua aparecem em diferentes níveis, como no nível fonológico por exemplo. E essas acomodações se refletem diretamente na forma como eles são escritos. Por isso, a questão ortográfica dos empréstimos tornou-se um problema a ser resolvido no nosso dicionário.

A primeira questão a ser definida é se usaríamos a ortografia do Português ou do Mundurukú para esses empréstimos “amundurukuzados” oriundos do Português. Optamos pelo uso da ortografia Mundurukú porque isso facilitará a leitura dos termos por parte dos falantes munduruku.

Nos dados de nossa pesquisa, encontramos os seguintes termos oriundos de empréstimos:

(20) cadeira – kadera (21) carta – karta dup (22) cartilha – kartilha dup (23) computador – kõmputado (24) cursista- korsista

(25) cyberbullying – cyberbullying

(26) data show – data show (27) diretor – direto

(28) escola – eskora ’a (29) história – historia (30) impressora – mpresora (31) livro – livro dup

(32) matemática – matematika

(33) mesa – meza

(35) rádio – radio ’a30 (36) secretário – sekretario (37) televisão – televizão (38) turma – oceturma

Para explicar e definir as escolhas ortográficas nos baseamos em Gomes (2006, p. 9), que registra a ortografia do Mundurukú formada pelos seguintes grafemas “(a) Consoantes: b, c, d, h, j, k, m, n,  p, r, s, t, w, x, y, ' (b) Vogais: i,  u, u, e, e, a, ã, o, õ” e explica determinadas correspondências fonológicas de acordo com o seguinte quadro:

Quadro 26– Grafemas e correspondências fonológicas no Mundurukú (GOMES, 2006, p. 9)

Grafemas Correspondências fonológicas c, j correspondem aos fonemas palatais /t/ e /d/, respectivamente.

g corresponde ao fonema //, o qual em fim de sílaba, após vogal nasal, é realizado como [], e após vogal oral, [g]; e, em início de sílaba, [].

' corresponde ao fonema oclusivo glotal //.

m corresponde ao fonema nasal /m/, que após vogal oral é [bm] em final de sílaba e, nos demais ambientes, é [m].

n corresponde ao fonema nasal /n/, que após vogal oral é [dn] em final de sílaba e, nos demais ambientes, é [n].

r corresponde ao fonema alveolar /r/ em qualquer ambiente. w, y correspondem aos fonemas assilábicos /w/ e /y/, respectivamente.

x corresponde ao fonema fricativo palatal //.

o corresponde ao fonema vocálico posterior alto /o/, que varia entre [o] e [u]. u corresponde ao fonema vocálico central médio //.

A primeira acomodação necessária foi relativa à consoante “c” que, no Português junto com as vogais “a”, “o” e “u” representa o fonema /k/, mas que, em Mundurukú, sempre representa o fonema /t∫/. Dessa forma, os termos “cadeira”, “carta”, “cartilha”, “computador”, “cursita”, “escola”, “matemática” e “secretário”, passaram a ser escritos como: “kadera”, “kartadup”, “kartilhadup”, “kõmputado”, “kursita”, “eskora’a”, “matematika” e “sekretario”, respectivamente.

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Embora o "r" aí não seja apical, vamos manter a ortografia usada e conhecida pelos Mundurukú para "rádio", que é "radio 'a ".

A acentuação dos termos “história”, “matemática”, “rádio” e “secretário” também caiu, por não existir em Mundurukú escrito. Também caiu a consoante “r” final dos termos “computador”, “diretor” e “professor”, porque os Mundurukú não a pronunciam (como a maioria dos falantes do Português), ficando registrado como “kõmputado”, “direto” e “profeso”. O ditongo “ei” de "cadeira" não ocorre na pronúncia deles também, ficando registrada a forma “kadera”.

O uso do “ss” oriundo do Português também não se faz necessário, pois em Mundurukú o grafema “s” sempre tem o som de /s/. Assim, “impressora” e “professor” passam a ser “impresora” e “profeso”.

Os encontros consonantais advindos dos empréstimos em “impresora”, “livro dup”, “profeso”, “sekretario” foram mantidos. Em Mundurukú, há uma ligeira inserção vocálica nos encontros consonantais também: livurudup, porofeso. A vogal ouvida ligeiramente é a mesma da sílaba em que se está o encontro consonantal. Dado que essa vogal não é plena, mantemos ainda o registro escrito com o encontro consonantal.

Alguns grafemas também foram inseridos na ortografia para lidarmos com empréstimos como o “lh” em “kartilha dup”, e o “z” e o "l" em “televizão” e "meza". Essas palavras já estão plenamente incorporadas no uso. Porém, no caso de "escola", que passou a ser “eskora’a”, registramos o seu uso com “r”.

Outra questão importante é referente aos termos “computador” e “impressora”, que grafamos "kõmputado" e "", pois existe uma regra fonológica na língua Mundurukú em que, após vogal oral, consoante nasal é apenas consoante nasal (õm = [õm]); mas, após vogal oral, a consoante nasal é pré-oralizada no mesmo ponto de articulação: om [obm]; an [adn]; ag [ag]. Tanto a pronúncia de "computador" quanto de "impressora" em Mundurukú é nasal apenas e com realização da consoante [m]. Logo, na forma escrita nessa língua, optamos por colocar o til nas vogais nasais e manter o "m": "kõmputado" e "".

Já com relação a termos como cyberbullying e data show, optamos por mantê-los escritos assim mesmo. Esses termos vieram do inglês, via Português, e são assim conhecidos por todos, não tendo passado por mudanças escritas nem mesmo em Português, língua-fonte do empréstimo para o Mundurukú. O itálico marcará a sua característica de estrangeirismo.

Um aspecto morfossintático interessante de registrar é o fato de que o termo “professor”, oriundo de empréstimo, traz consigo a morfologia de gênero do Português, apresentando-se como “profesora” também quando se referindo a uma mulher. Esse é um empréstimo gramatical do Português na língua Mundurukú. Com o plural, porém, isso não ocorre, sendo usado o plural do Mundurukú:

(39) professor; professora ► wuymutaybitbitukat; wuymutaybinipiat/ profeso; profesora

É importante perceber que o trabalho envolvendo as escolhas ortográficas para os empréstimos serviu para discussão e reflexão com os próprios índios acerca do lugar ocupado pelo empréstimo. Dessa forma, decidimos que ele seria apresentado como última opção, como no exemplo acima, em que existe um termo concorrente em Mundurukú para o empréstimo, o qual virá em primeiro plano, visando incentivar o uso da língua materna.

Com esse trabalho sobre a ortografia e sobre os empréstimos, temos consciência de que o ideal seria o uso do termo em Mundurukú, mas reconhecemos que, em muitos casos, o termo mais usado é o empréstimo do Português. Com isso, refletimos que alguns termos, principalmente os neologismos criados e incentivados para concorrer com os empréstimos, podem acabar por não ser usados. Mas, ao mesmo tempo, essa forma de reflexão sobre o assunto apresenta aos indígenas uma pesquisa com uma etnografia colaborativa, mostrando que os dois lados podem coexistir no dicionário. Logo, a pesquisa é também formativa em metodologia e não só em essência. Neste momento, fugimos de uma normatização romântica, abrindo espaço para as escolhas dos usuários do dicionário.

4.5 Considerações finais do capítulo

Neste capítulo foi apresentada a estrutura macroestrutural e microestrutural do protótipo do dicionário, assim como as reflexões geradas por meio das análises dos dados. Assim, a primeira seção abordou a macroestrutura do dicionário e os elementos que a compõem. Na segunda seção, tratamos da microestrutura dos verbetes, abordando os itens obrigatórios e não obrigatórios. Já na terceira seção, tratamos da epistemologia terminológica e terminográfica bilíngue a partir de línguas indígenas, refletindo sobre desafios encontrados e propondo soluções para o dicionário, analisando questões referentes a aspectos morfológicos, a equivalência, as definições, a variação e aspectos ortográficos.

CAPÍTULO 5 – Os verbetes do protótipo do dicionário