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CAPÍTULO III – COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA O DESENVOLVIMENTO

3.2 Aspectos paradigmáticos da cooperação internacional

Keohane, analisando de forma profunda as relações internacionais, elaborou uma teoria em torno da cooperação internacional, salientando aspectos de grande importância para o estudo deste tema e que não devem ser desprezados, principalmente quando se busca tal alternativa como resposta ao problema pesquisado.

A biopirataria, como ficou definido no capítulo anterior, precisa ser objeto de criminalização, porém, ao mesmo tempo em que se chegou a esta conclusão, também ficou assentado que tal proposta não irá resolver o problema da apropriação não autorizada da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados em razão da própria complexidade da questão, que apresenta a necessidade de complementariedade da proposta de intervenção penal em âmbito legislativo interno.

Pretende-se neste sentido, complementar a proposta de criminalização com a cooperação internacional para o desenvolvimento, mas antes de se demonstrar de que forma isto pode ser operacionalizado, é importante definir em que tipo de cenário internacional ficaria mais oportunizada a cooperação.

Assim sendo, começa-se esta abordagem, registrando que para Keohane a teoria da estabilidade hegemônica não é um pressuposto à existência da cooperação. No seu pensar, a hegemonia pode até facilitar um tipo de cooperação, mas não é uma condição em si mesma:

[...] hegemonia pode facilitar um certo tipo de cooperação – mas existe pouca razão para acreditar que a hegemonia é nem necessária, nem uma condição bastante para o surgimento de relações cooperativas.299

299 KEOHANE, Robert O. After Hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Estados

Unidos: Princeton University Press, 2005. p. 31, tradução nossa. (... hegemony can facilitate a certain type of cooperation – but there is little reason to believe that hegemony is either a necessary or sufficient condition for the emergence of cooperative relationships)

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O autor, portanto, admite a possibilidade de cooperação, mesmo em um cenário internacional onde não exista uma potência hegemônica, o que, de certa forma, é um afastamento dos princípios clássicos do realismo.

É possível afirmar que Keohane não pretende abandonar o paradigma realista, mas a sua doutrina vai além dos limites teóricos do modelo clássico realista.300 Para este teórico é necessário agregar ao realismo também a ênfase nas instituições internacionais,301 que exercem um papel importante na ampliação do alcance da cooperação entre Estados, entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais afins.

Dessa forma, concordando-se com a idéia de que a cooperação pode existir mesmo sem a figura de uma potência hegemônica, cabe mesmo assim questionar, se como pretende Keohane, o realismo com a suplementação proposta, seria ainda a melhor alternativa para facilitar a cooperação entre os países.

A maior crítica que se pode fazer à escola realista reside justamente no ponto que representa uma ruptura de qualquer vinculação da ação política à exigência de observância de um conteúdo moral nas relações entre os Estados.

Se era correta a postura metodológica de Maquiavel ao promover a cisão da política em face da religião, não se pode dizer a mesma coisa da exclusão da moral do sistema político. Na medida em que se abstrai da política a moral, se acaba legitimando, também, as injustiças. Assim sendo, Mancini foi capaz de detectar esse erro metodológico na doutrina de Maquiavel, comentando o seguinte:

Mas somente porque considerou possível excluir da esfera que é própria e essencial da disciplina política o problema moral e jurídico e dele fazer total abstração, caiu, como pensamos, num erro fundamental que desgasta e corrompe todo o sistema.302

Logo, um sistema político que busque a paz e a harmonia entre os povos não pode sobreviver sem o resgate do seu conteúdo ético.

Em estudo no qual se propõe uma releitura de Maquiavel adequada à pós- modernidade, Emerson Gabardo,303 teoriza que o novo príncipe deve atender a um espírito ético-estatal pautado nos direitos humanos. O autor faz notar que o Estado contemporâneo

300 KEOHANE, Robert O. After Hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Estados

Unidos: Princeton University Press, 2005. p. 16.

301 Id. Ibid., p. 14.

302 MANCINI, Pasquale Stanislao. Direito Internacional. Tradução Ciro Mioranza. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 307.

(Coleção clássicos do direito internacional).

303 GABARDO, Emerson. O pós-moderno príncipe e a busca da tranqüilidade da alma. In: FONSECA, Ricardo

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está passando por um processo rápido e constante de substituição dos valores universais da Ilustração pelos particularismos.

É fundamental que se promova a reavaliação do universalismo, porém é nocivo ao desenvolvimento da sociedade mundial que o subjetivismo consiga continuar ganhando espaço. Dentro de uma concepção universal, é preciso estabelecer um domínio dos direitos humanos para todos os seres humanos, de forma a ampliar as garantias dos povos e assegurar a busca do progresso cultural, social e tecnológico. A conclusão de Emerson Gabardo é que:

O espírito estatal propõe uma “ética política” de inspiração universalista (hegeliana) e socialista (gramsciana). Para tanto, abandona-se o conceito negativo de “virtude” contemplado por Maquiavel, rumo a uma proposta ética positiva: a valorização da dignidade humana.304

O caminho para a transformação do cenário internacional, portanto, é a compreensão pelos atores internacionais de que a política de dominação e a busca desenfreada pelo poder não podem prosseguir, sendo imprescindível que se combata as causas estruturais da violência no mundo, diminuindo os conflitos decorrentes das disparidades sócio-econômicas, implementando a efetiva promoção e proteção dos direitos humanos a todos os povos, enfatizando o respeito à dignidade da pessoa humana e inserindo valores éticos nas relações internacionais.

Dessa forma, a compreensão de que a biopirataria é uma prática que viola direitos humanos deve ser o ponto de partida para uma construção teórica de cunho crítico que busca fundamentos para a definição de um novo caminho a ser traçado nas relações internacionais entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos.

Além dessa abordagem, acredita-se que o paradigma da interdependência traz também, alguns aportes relevantes para a discussão apresentada, revelando outros enfoques do problema.

Quanto ao modelo da interdependência, sua análise de dará como um instrumento teórico que pode contribuir para a compreensão das relações internacionais na atualidade, por meio do favorecimento dos canais de diálogo para a cooperação internacional para o desenvolvimento.

Como ficou demonstrado por Keohane, há espaço para a cooperação mesmo em um cenário internacional que dispense a figura da potência hegemônica, construída sobre as bases do realismo. Logo, ainda que se assuma uma postura de admitir que nenhum dos paradigmas

304 GABARDO, Emerson. O pós-moderno príncipe e a busca da tranqüilidade da alma. In: FONSECA, Ricardo

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elaborados pela doutrina possa explicar de forma satisfatória a complexidade das relações internacionais contemporâneas, no presente item, acolhe-se a teoria da interdependência como um modelo teórico ideal, que pode contribuir de maneira mais adequada ao propósito perseguido nesta pesquisa, que visa a implementação concreta da cooperação internacional para o desenvolvimento em âmbito amazônico, como forma complementar à proteção da biodiversidade nacional e sub-regional, além da criminalização interna da biopirataria.

Raimundo dos Santos Júnior faz uma interessante colocação a esse respeito, que se passa a reproduzir para a reflexão e desenvolvimento da presente linha de argumentação:

No geral, os fenômenos políticos transitam entre uma e outra teoria. Existem, de fato, momentos em que os pressupostos realistas serão mais precisos, mas, na maioria das vezes, a teoria da interdependência apresenta melhores condições de retratar a realidade atual.305

Assim, como já foi dito no item anterior deste mesmo capítulo, o realismo ainda é uma teoria importante para a compreensão de certos fenômenos políticos, como a teoria da dependência também teve sua relevância para explicar os motivos pelos quais muitos países em desenvolvimento, e que chegaram a reunir em um determinado momento histórico as condições necessárias para o crescimento, não conseguiram realizar o almejado salto de qualidade que lhes permitiria ingressar, ainda no século XX, no chamado “Primeiro Mundo”. A teoria da dependência, como se sustenta também nesta dissertação é um instrumento ainda muito valioso para revelar o processo exploratório a que os países da América Latina estão submetidos, quando se tem em foco, no momento presente, a biodiversidade versus empresas transnacionais da biotecnologia.

Como ressaltam Kinoshita e Tânia Mota, a dependência é uma leitura a partir dos “dominados” e que explica o “‘subdesenvolvimento’ como conseqüência direta e proporcional da manutenção do desenvolvido”.306 Os autores alertam, também, que a interdependência, enquanto teoria elaborada pelos países centrais para negar a dependência, deve ser examinada sob uma perspectiva crítica, não desprezando as desigualdades nas relações internacionais e a prejudicialidade que possa advir nesse contexto aos Estados não

305SANTOS JÚNIOR, Raimundo Batista. Diversificação das relações internacionais e teoria da

interdependência. In: BEDIN, Gilmar Antônio. et al. Paradigmas das relações internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 218. (Coleção relações internacionais e globalização, v. 1).

306 KINOSHITA, Fernando; MOTA, Tânia. Uma análise contemporânea da crítica à teoria da dependência,

desde a perspectiva brasileira. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, ano 27, n. 54, p. 25, dez. 2007. No prelo.

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“hegemônicos”.307

Tomando como fundamentais essas considerações para a análise da teoria da interdependência, passa-se ao exame do novo modelo teórico, salientando que o surgimento da interdependência se deu em face das inúmeras mudanças ocorridas nas relações internacionais, que apresentam como marco histórico o término da Segunda Guerra Mundial.

A fase do pós-guerra, embora em um primeiro momento tenha se norteado pela estabilidade hegemônica das grandes potências militares vencedoras da conflagração mundial, o que durou até o término da Guerra Fria, serviu também como meio propício para o surgimento de várias organizações internacionais. Essa transição, estimulada por vários fatores, mas principalmente pela globalização, aos poucos foi acrescentando outros atores no cenário internacional, fazendo ruir a posição de supremacia dos Estados como os únicos interlocutores nas relações internacionais.

Com os ventos da globalização a sociedade internacional se tornou cada vez mais complexa. As relações internacionais antes eram marcadas pelos postulados teóricos do realismo político, dentre os quais: a segurança, a militarização, a alternativa ao uso da força, os Estados como únicos atores internacionais e a predominância da high politics. Esses postulados passaram, então, por grandes transformações.

A globalização, notadamente econômica, exigiu maior integração entre os Estados, amplificando-se as relações internacionais, que agora ocorrerem, não necessariamente pela via interestatal, como esclarece Raimundo dos Santos Júnior, pois:

[...] uma relação transnacional compreende que os Estados não são os únicos atores significantes em política mundial. Bancos, corporações empresariais, ONGs, entre outras, são instâncias que atualmente, assim como a unidade estatal ou seus componentes funcionais, a alteram significativamente.308

Assim, a interdependência acarreta, também, uma considerável mutação nos temas de política internacional, não havendo mais hierarquia nos assuntos de política externa, o que faz perder o sentido a divisão entre high politics e low politics. O uso da força deixa de ser a alternativa mais viável para assegurar a realização do poder. Neste ponto, aliás, convém ressaltar que, segundo Raimundo Santos Júnior, o emprego da força se tornou extremamente

307 KINOSHITA, Fernando; MOTA, Tânia. Uma análise contemporânea da crítica à teoria da dependência,

desde a perspectiva brasileira. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, ano 27, n. 54, p. 26, dez. 2007. No prelo.

308SANTOS JÚNIOR, Raimundo Batista. Diversificação das relações internacionais e teoria da

interdependência. In: BEDIN, Gilmar Antônio. et al. Paradigmas das relações internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 219. (Coleção relações internacionais e globalização, v. 1).

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complexo. O autor aponta dentre os fatores desestimuladores do uso da força o resultado devastador que o emprego de armas nucleares poderia causar, a ineficiência do uso de armas convencionais contra populações socialmente mobilizadas e a necessidade de uma ponderação profunda em face das conseqüências negativas que o uso da força representa.309 Assim sendo, segundo o autor, o uso da força só se justifica como alternativa possível nos casos em que o problema assuma “proporções perigosas para a segurança ou a economia”.310

Os teóricos da interdependência assinalam, ainda, que a dependência mútua entre os Estados não se limita a situações de benefícios recíprocos,311 pois a interdependência se desenvolve de forma complexa e assimétrica, o que significa que não obrigatoriamente haverá uma redução dos conflitos e que a assimetria nas relações também implica em diversos níveis de dependência, abrindo-se a possibilidade, segundo André Meireles, de “atores menos dependentes se aproveitarem das relações de interdependência como fontes de poder, ou seja, como formas de imposição de suas necessidades ante as negociações com os demais atores”.312

Quanto a este aspecto, Keohane é taxativo ao afirmar que a cooperação não significa uma ausência de conflito313 e que, ao contrário, é uma reação ao conflito ou potencial conflito:

A cooperação ocorre somente em situações em que os atores percebem que suas políticas estão de fato ou potencialmente em conflito, não onde existe harmonia. A cooperação não deve ser vista com a ausência de conflito, mas preferivelmente como uma reação ao conflito ou potencial conflito. Sem o espectro do conflito, não há necessidade de cooperar.314

Patrícia Alves observa, ainda, que se o grau de assimetria na relação de interdependência for muito acentuado é provável que se tenha não mais uma relação de

309 SANTOS JÚNIOR, Raimundo Batista. Diversificação das relações internacionais e teoria da

interdependência. In: BEDIN, Gilmar Antônio. et al. Paradigmas das relações internacionais: realismo, idealismo, dependência, interdependência. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 224. (Coleção relações internacionais e globalização, v. 1)

310 Id. Ibid., loc. cit.

311 DI SENA JÚNIOR, Roberto. Poder e interdependência: perspectivas de análise das relações internacionais na

ótica de Robert O. Keohane; Joseph S. Nye. In: OLIVEIRA, Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno. (Org.).

Relações internacionais: interdependência e sociedade global. Ijuí: Unijuí, 2003. p.188. (Coleção direito,

política e cidadania, v. 10).

312 MEIRELES, André Bezerra. Dependência e interdependência: variantes em uma “mesma” realidade. In:

OLIVEIRA, Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno. (Org.). Relações Internacionais: interdependência e sociedade global. Ijuí: Unijuí, 2003. p.340. (Coleção direito, política e cidadania, v. 10).

313 KEOHANE, Robert O. After hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Estados

Unidos: Princeton University Press, 2005. p. 53.

314 Id. Ibid., p. 54, tradução nossa. (Cooperation takes place only in situations in which actors perceive that their

policies are actually or potentially in conflict, not where there is harmony. Cooperation should not be viewed as the absence of conflict, but rather as a reaction to conflict or potencial conflict. Without the specter of conflict, there is no need to cooperate.)

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interdependência, mas de dependência.315 Por isso, é imprescindível que se tenha especial atenção quanto às assimetrias que existem nas relações internacionais, pois se por um lado é este desequilíbrio que gera um espaço para o conflito e também para atitudes concretas de cooperação, por outro lado, a assimetria entre os atores não pode ser a tal ponto desigual que um dos envolvidos não tire benefícios dessa relação. Nesse sentido, André Meireles faz as seguintes constatações:

São as assimetrias de poder político e econômico que existem entre os países, entretanto, que dão capacidade de negociar da melhor maneira possível para a obtenção de seus interesses e é aí que se encontra o paralelo dialético entre os paradigmas da dependência e da interdependência. A interdependência pode ser retratada como uma disputa em que sempre haverá assimetria entre seus atores, uma zona de conflitos e de cooperação onde há sempre perdas e ganhos, maiores e menores conquistas. Nenhum dos envolvidos, contudo, pode deixar de ganhar, não podendo haver uma perda total de seus objetivos, sob o risco de se transformar em uma relação de dependência.316

Assim, uma vez definidas as bases da interdependência, não é difícil ponderar que este modelo é um importante instrumento teórico para explicar as relações internacionais na contemporaneidade. Mesmo que não se admita quaisquer dos modelos como suficiente para a compreensão das complexas relações que se desenvolvem entre os atores internacionais, como já ficou asseverado neste trabalho, a interdependência traz aportes valiosos para a discussão do tema das desigualdades entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como para criar um espaço de diálogo dentro desse campo conflituoso, que vise garantir mais cooperação e, em última análise, realização dos direitos humanos em nível individual e coletivo que culmina com o próprio desenvolvimento do Estado.

No item a seguir, se pretende mostrar o nível de desigualdade em que o Brasil e os países da América Latina se encontram, de forma que, uma vez se conhecendo esta realidade, seja possível identificar um cenário internacional de interdependência entre os Estados e os demais atores internacionais, onde exista um dever de cooperação para que se possa atingir o desenvolvimento mundial.

3.3 Crítica ao modelo atual de cooperação internacional e sua necessária relação com o

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