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As bases para a (des)legitimação da intervenção penal e as limitações da política criminal à intervenção penal na contemporaneidade

CAPÍTULO II – CRIMINALIZAÇÃO DA BIOPIRATARIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

2.3 O sistema penal garantista e a teoria do bem jurídico como referenciais teóricos para a discussão sobre a criminalização da biopirataria

2.3.2 As bases para a (des)legitimação da intervenção penal e as limitações da política criminal à intervenção penal na contemporaneidade

Uma vez definido o que se pretende tutelar através da intervenção penal no caso da biopirataria, já é possível avançar no sentido de se tentar responder uma indagação muito importante para esta pesquisa, qual seja: deve-se, realmente, criminalizar a biopirataria?

Uma das vertentes que pode servir para iniciar esta análise é justamente a discussão acerca do surgimento de um Direito Penal secundário. Figueiredo Dias explica este fenômeno lembrando que o processo de expansão do campo de abrangência do Direito Penal tradicional se deu justamente com a modificação do modelo de Estado, que evoluiu de suas matrizes meramente liberais para um novo modelo de Estado social.233 Nas suas palavras:

[...] o legislador foi se deixando seduzir pela idéias, perniciosa mais difícil de evitar, de pôr o aparato das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de política social. E é o aparecimento, ao lado do direito penal tradicional, de um abundante direito penal extravagante, acessório ou secundário – que porventura melhor ainda se qualificaria de direito penal espacial [sic]234, não fosse a circunstância de tal designativo se encontrar já,

na nossa língua, “dogmaticamente ocupado” direito este que é, em sentido próprio, direito penal administrativo: no preciso sentido que sanciona, com penas, a violação de ordenações da administração e se apresenta assim como direito administrativo, senão segundo a competência, por certo segundo a matéria.235 [grifos do autor]

Como se sabe, o Direito Penal primário, cujas bases foram delineadas no Iluminismo, pretende tutelar, direta ou indiretamente, os “direitos, liberdades e garantias das pessoas”,236 enquanto que o Direito Penal secundário ou extravagante, a seu turno, “se relaciona essencialmente com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à

organização econômica”.237 [grifos do autor]

Assim, como bem esclarece Figueiredo Dias, a diferença fundamental está na tutela de direitos individuais, na modalidade clássica, e na proteção de um interesse social ou econômico, no Direito Penal secundário. Para o autor português, neste último caso, protege-se

233 DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma

do direito penal econômico e social português. In: D’ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder. (Org.). Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 14-16.

234 Depreende-se da leitura do texto e da nota remissiva de rodapé no texto original que, em verdade, houve um

erro de grafia, sendo correto afirmar que o autor se referia a direito penal especial.

235 DIAS, op. cit., p. 16.

236 Id. Direito penal: parte geral, questões fundamentais, a doutrina geral do crime. Lisboa: Coimbra Editora,

2004. p. 115, t. 1.

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o ser humano na sua esfera de atuação social, “como membro da comunidade”.238

Cabe depreender dessa nova acepção para o Direito Penal que agora a tutela não está mais vocacionada exclusivamente para a preservação de bens de interesses individuais do ser humano, enquanto indivíduo que vive em uma sociedade organizada. Surge neste novo cenário, em constante modificação pela própria evolução do modelo de Estado e da ciência ocidental, um Direito Penal que amplia os seus limites tradicionais da intervenção penal, legitimando a preservação também de bens coletivos, que não pertencem mais a alguém considerado individualmente, mas à comunidade. Entra-se em um campo que, à primeira vista, seria de interesse eminentemente administrativo.

Esse movimento de expansão do Direito Penal, explica Figueiredo Dias, veio no rastro de um novo paradigma de sociedade, que pode ser chamada de sociedade de risco, na linha do que defende Ulrich Beck e cujos principais problemas advêm da pós-modernidade e globalização.239

Dentro desse novo contexto, em que os riscos das atividades desenvolvidas pelo ser humano em sociedade adquirem uma dimensão global e difusa, não mais atingindo apenas o indivíduo, o Direito Penal também transmuta o seu paradigma para que se possa proteger a coletividade dos riscos globais, garantindo, também, a proteção de gerações futuras.

Figueiredo Dias, com perfeita lucidez científica, concebe que o Direito Penal, ainda que respeitadas as suas bases tradicionais de cunho liberal, para passar a tutelar os bens jurídicos coletivos em uma sociedade de risco, necessita de uma nova política criminal e uma nova dogmática penal.240 A Escola Coimbrã, portanto, finda por admitir que o sistema criminal na sua acepção tradicional, calcado na individualização do bem, não poderá atender às necessidades que advêm de uma sociedade pós-moderna, já que:

[...] a tutela dos grandes riscos e das gerações futuras passa pela assunção de um direito penal do comportamento em que são penalizadas e punidas puras relações da vida como tais. Não se trata com isto, porém, de uma alternativa ao direito penal do bem jurídico: ainda aqui a punição imediata de certas espécies de comportamentos é feita em nome da tutela de bens jurídicos colectivos e só nesta medida se encontra legitimada.241

Dessa forma, a tutela de bens coletivos que até então não estava no campo de incidência da norma penal passa a se justificar, pois o Direito Penal, se libertando de sua

238 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral, questões fundamentais, a doutrina geral do crime.

Lisboa: Coimbra Editora, 2004. p. 115, t. 1.

239 Id. Ibid., p. 127. 240 Id. Ibid., p. 128. 241 Id. Ibid., p. 142-143.

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função tradicional voltada à proteção de bens jurídicos individuais e de limitação dos excessos punitivos do Estado, amplia a sua área de atuação original e assume novas pretensões na contemporaneidade, como a prevenção dos novos riscos decorrentes da sociedade pós- moderna, a defesa dos interesses da humanidade e a garantia do bem-estar de gerações futuras.

Feitas essas considerações, percebe-se uma tendência de política criminal direcionada à ampliação das áreas tradicionais de atuação do Direito Penal, cabendo indagar se a criminalização da biopirataria também não estaria inserida nesse novo contexto, como uma exigência de proteção de um bem jurídico merecedor de tutela em um Estado de direito que convive com novos riscos.

Apesar da manifesta vontade constitucional quanto à existência de um mandato expresso de criminalização, como foi visto linhas atrás, tem-se um cuidado especial para não se extrair da referida norma conclusões precipitadas no sentido de que tal comando constitucional acabaria por impor uma obrigação cega ao legislador infraconstitucional de criminalizar todas as condutas que de alguma forma violem o meio ambiente. A discussão que se passa a desenvolver, portanto, visa justificar a intervenção penal, e não, impor a resposta criminalizadora como um mero argumento de autoridade.

Regis Prado assinala que o bem jurídico ambiental ganha especial transcendência e merece especial proteção, mas os princípios constitucionais penais não são afastados, pois:

Afinal, a partir dessa exigência constitucional, impende ao legislador ordinário constituir um verdadeiro sistema normativo penal que defina, de modo certo e taxativo, as condutas puníveis e respectivas penas, em harmonia com os princípios constitucionais penais, como estrutura jurídica mínima, para dar cumprimento ao estatuído na Constituição Federal.242 O citado autor pondera que para se fazer incidir a intervenção penal não é suficiente a violação de um bem jurídico-penal, pois é preciso que exista a necessidade da tutela penal como sendo o meio “absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade”.243

Na obra “Direito penal do ambiente” Regis Prado tece diversas considerações, que são de grande relevância para que se possa definir limites claros quanto à intervenção penal. O autor reconhece que o Direito Penal “só deve atuar na defesa dos bens jurídicos

242 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.

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243 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral, questões fundamentais, a doutrina geral do crime.

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imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens, e que não podem ser eficazmente protegidos de outra forma”.244 Fica evidente a sua opção pela utilização do Direito Penal apenas como ultima ratio, chegando a afirmar o seguinte:

[...] a função maior de proteção de bens jurídicos atribuída à lei penal não é absoluta. O bem jurídico é defendido penalmente só diante de certas formas de agressão ou ataque, consideradas socialmente intoleráveis. Isso explica que apenas as ações mais graves dirigidas contra bens fundamentais podem ser criminalizadas. É o que se denomina caráter fragmentário do Direito Penal. Faz-se uma tutela seletiva do bem jurídico, limitada àquela tipologia agressiva que revela dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e intensidade da ofensa. Esse princípio impõe que o Direito Penal continue a ser um arquipélogo de pequenas ilhas no grande mar do penalmente indiferente.245

Alice Bianchini, em sua tese de doutoramento, ao analisar a função do bem jurídico no processo de criminalização, chega a uma constatação parecida, pois, segundo seu pensamento, o dever de criminalizar deve incidir sobre condutas que “atentem ou exponham a perigo concreto bens jurídicos imprescindíveis a uma qualificada existência do indivíduo em sociedade”.246

A natureza do Direito Penal é, portanto, subsidiária, sendo, dentre os meios de controle social, o que causa maiores gravames aos direitos e liberdades das pessoas. Logo, o Direito Penal só pode intervir “nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular a política jurídica não-penal, se revelem insuficientes ou inadequados”.247 [grifos do autor]. Figueiredo Dias reforça este entendimento, afirmando textualmente que a função precípua do direito penal “reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídicos-

penais”.248 [grifos do autor]

Alice Bianchini, por sua vez, sustenta que o princípio da intervenção mínima pode ser analisado por três perspectivas diferentes, mas complementares entre si: o princípio da necessidade, o princípio da ofensividade e o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos. Pela ótica do princípio da necessidade a intervenção penal só deve ocorrer quando os outros meios de controle social não possam garantir a harmonia social. O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos só admite a tutela penal de bens de elevado valor e importância. Para o princípio da ofensividade, somente lesões graves a bens jurídicos poderão ser objeto de

244 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território

e biossegurança (com análise da Lei 11.105/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 103.

245 Id. Ibid., p. 103-104.

246 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002. p. 51.

247 Id. Ibid., p. 121. 248 Id. Ibid., p. 122.

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criminalização.249

Juarez Cirino, de igual sorte, destaca que a natureza fragmentária do Direito Penal obsta qualquer tentativa de se querer proteger todos os bens jurídicos previstos na Constituição, cabendo apenas tutelar250 “parcialmente os bens jurídicos selecionados para a proteção penal”.

Sendo assim, fazendo-se a atualização do discurso de política criminal, poder-se-ia afirmar que a tutela do meio ambiente realmente ingressaria naquele campo que se passou a denominar Direito Penal secundário e que, por sua vez, admite a proteção de bens coletivos, como decorrência de uma sociedade que convive com riscos globais.

Mesmo dentro desse novo contexto, cabe frisar que Figueiredo Dias não afasta, apesar da introdução do que chama o topos da sociedade de risco no Direito Penal, o postulado clássico de que a intervenção penal só se justifica para a tutela de bens jurídicos. Segundo o penalista português, existem “autênticos bens jurídicos sociais, trans-individuais,

transpessoais, colectivos”251 [grifos do autor]. Esses bens, que poderiam ser chamados também de supra-individuais, embora se refiram a interesses da coletividade não deixam de se relacionar com interesses individuais, como bem expõe Figueiredo Dias:

O caráter supra-individual do bem jurídico não exclui a existência de interesses individuais que com ele convergem: se todos os membros da comunidade (ou de uma certa comunidade) se vêem prejudicados por condutas pesadamente poluidoras, cada um deles não deixa, individualmente, de sê-lo também e de ter um interesse legítimo na preservação das condições vitais.252

Assim, a criminalização de condutas que envolvam a tutela de bens coletivos só se tornam legítimas se, segundo os dados das ciências empíricas, o comportamento individual, somado a conduta de outros indivíduos, torne provável a lesão ao bem que se quer proteger. É o que Figueiredo Dias chama de tipos aditivos ou acumulativos, podendo-se transcrever a seguinte passagem para melhor compreensão do pensamento do autor:

Tratar-se-á então patentemente de um delito acumulativo que todavia, em nome de um bem jurídico colectivo de indiscutível referência jurídica- constitucional, é digno de pena; e se, ademais, os aludidos dados das ciências empíricas revelarem a necessidade da sua protecção, nada mais será

249 BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002. p. 51.

250 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 5. 251 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral, questões fundamentais, a doutrina geral do crime.

Lisboa: Coimbra Editora, 2004. p. 136, t. 1.

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necessário para a validade/legitimidade da incriminação.253

Dessa feita, a aceitação do Direito Penal para tutelar o meio ambiente não se faz sem a flexibilização dos princípios e institutos tradicionais, já que os desafios e necessidades são diferentes. No caso da poluição, não é difícil concluir que o processo de degradação ambiental não ocorre com a ação isolada de um poluidor, mas advém de um processo cumulativo. Daí porque para incidir o Direito Penal neste campo não será possível levar em consideração a ação individual, pois não se saberá em que medida cada poluidor contribuiu para um dano ambiental. Alarga-se o Direito Penal para se admitir, sem muito apego ao princípio penal fundamental da vedação da responsabilidade objetiva, a proibição de comportamentos sociais que acarretem lesões “mais do que possíveis, indubitavelmente previsíveis e muito prováveis, para não se dizer certas”.254

Logo, não se pode deixar de registrar que o abandono dos moldes clássicos do princípio da culpabilidade se torna uma exigência para que se alcance, também, a responsabilização da pessoa jurídica, às vezes o único poluidor que se possa identificar.

Assim, mesmo que se aceite essas transposições para atualizar o Direito Penal a uma sociedade de risco, a questão suplementar que se coloca é analisar de que forma a criminalização da biopirataria poderá, a partir de uma política criminal inerente a um Estado de direito democrático, assegurar a tutela de um bem jurídico ambiental. Em outros termos, a tutela penal da biopirataria é necessária? Será que a inclusão da biopirataria no campo de incidência do Direito Penal alcançará os fins a que se propõe, proteger o patrimônio genético decorrente da biodiversidade e os conhecimentos tradicionais que recaem sobre a biodiversidade?

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