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CAPÍTULO II – CRIMINALIZAÇÃO DA BIOPIRATARIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

2.3 O sistema penal garantista e a teoria do bem jurídico como referenciais teóricos para a discussão sobre a criminalização da biopirataria

2.3.1 O bem jurídico tutelado em caso de criminalização da biopirataria

De uma forma geral, e ainda sem a preocupação nesse primeiro momento de se fazer

212 GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.

55.

213 Id. Ibid., p. 55. 214 Id. Ibid., p. 87. 215 Id. Ibid., p. 96. 216 Id. Ibid., p. 96.

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uma delimitação mais precisa do bem jurídico que deve ser protegido, caso se pretenda criminalizar a biopirataria, é viável admitir que a intervenção penal, na hipótese proposta, visaria a tutela do meio ambiente.

Este asserto, embora contenha uma generalização, remete imediatamente à Constituição, onde se busca encontrar a previsão de tutela do bem jurídico meio ambiente, como um valor relevante que mereça a intervenção penal como meio adequado e necessário à sua proteção.

Quanto a este aspecto não há muita dificuldade de se chegar à conclusão de que o legislador constituinte elegeu o bem jurídico meio ambiente como um direito fundamental que faz jus a uma proteção especial, inclusive penal.

Luiz Regis Prado salienta que em matéria de meio ambiente existe um mandato expresso de criminalização:

Esta última inovação vem gizada no parágrafo 3º do artigo 225 como determinação particular, em que se prevê explicitamente a cominação de sanções penais e administrativas, conforma o caso, aos sujeitos (pessoas físicas ou jurídicas) que eventualmente causem lesão ao meio ambiente.217

[grifos do autor]

O art. 225, § 3º, da Constituição da República,218 não deixa a menor margem de dúvida quando à opção do poder constituinte originário em conferir ao legislador infraconstitucional uma extensa gama de mecanismos jurídicos que possam assegurar a defesa e a preservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras, ainda que para se alcançar esta finalidade se faça necessário a intervenção da tutela penal.

Luiz Regis Prado complementa salientando que todos os casos que o perigo ou lesão recair sobre o bem jurídico meio ambiente “devem ser tidos como penalmente relevantes”.219 [grifo do autor]

É importante deixar assentado que a Constituição e a ordem internacional protegem o meio ambiente de forma especial, orientando o legislador a construir um sólido arcabouço jurídico de proteção, pois se busca um ambiente ecologicamente equilibrado e o

217 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: meio ambiente, patrimônio cultural, ordenação do território

e biossegurança (com análise da Lei 11.105/2005). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 80.

218 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. KINOSHITA, F. (Org.) Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988. Brasília: OAB Editora, 2003. p.168.

[...] § 3. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

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desenvolvimento sustentável.

Atualmente, o direito ao meio ambiente assume uma posição central e precedente na defesa dos direitos humanos. Conservar o meio ambiente é um antecedente lógico necessário à defesa dos direitos humanos, tanto que Edson de Carvalho faz notar que:

Do ponto de vista biológico, pode-se afirmar que existe relação umbilical entre fruição dos direitos humanos e proteção ao meio ambiente, principalmente em relação aos direitos à vida e à saúde. Nenhum direito humano, a começar pelo direito à vida, pode ser exercido fora da plataforma ecológica.220

Assim, existe uma intrincada e complexa relação entre meio ambiente e direitos humanos. Por isso, Juliana Santilli, comentando o art. 225 da Constituição, salienta que o princípio da eqüidade intergeracional está devidamente contemplado no texto: “Pela primeira vez são assegurados direitos a gerações que ainda não existem, e tais direitos restringem e condicionam a utilização e o consumo dos recursos naturais pelas presentes gerações”.221

Além disso, Edson de Carvalho sustenta, com razão, que os desastres ecológicos de grandes proporções, atualmente divulgados de forma ampla pela imprensa, levam à criação de uma consciência ecológica, já que é cada vez mais óbvio à humanidade que o modelo de desenvolvimento que vem sendo praticado poderá comprometer de forma irreversível a vida do ser humano na Terra.222

Recentemente, inclusive, Lovelock declarou fatidicamente que o destino da Amazônia provavelmente já estaria traçado em razão das mudanças climáticas e que entre 50 e 100 anos a região poderá se tornar em uma fina camada desértica.223

Odum e Barrett se referem a um paradoxo no desenvolvimento tecnológico, ponderando que: “Quase todo e qualquer avanço tecnológico que pretende melhorar o bem- estar e a prosperidade tem seu lado ruim e seu lado bom”.224 Os autores ilustram essa

220 CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente e direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2005. p. 163.

221 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismos e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e

cultural. São Paulo: Peirópolis, 2004. p. 50.

222 Dentre os acidentes ambientais de maiores proporções ocorridos, Edson de Carvalho elenca os seguintes: “os

de Seveso, onde morreram 193 pessoas; o de Minamata no Japão que matou centenas de pessoas; o de Bophal na Índia, onde uma fábrica de pesticidas da multinacional Union Carbide liberou gases altamente tóxicos ocasionando 2.660 mortes e danos em 30 a 40 mil pessoas; o da Sandoz na Suíça, que poluiu o rio Reno e destruiu sua fauna e flora; o acidente com o petroleiro Exxon-Valdez que derramou 11 milhões de galões de petróleo próximo à Costa do Alasca; o de Chernobyl que causou a morte de dezenas de pessoas e deixou 640.000 sob controle médico e 140.000 evacuadas”. (CARVALHO, Edson Ferreira de. Meio ambiente e

direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2005. p. 143-144).

223OTTOBONI, Júlio. Cientista diz que Amazônia tem morte decretada. Disponível em

http:<//noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI1926890-EI8278,00.html>. Acesso em: 17 out 2007.

224 ODUM. Eugene P. BARRETT, Gary W. Fundamentos de Ecologia. Tradução Pégasus Sistemas e Soluções.

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proposição com o exemplo da Revolução Verde que, no seu lado bom, permitiu o aumento da produção de alimentos com menos mão-de-obra e, no seu lado ruim, gerou poluição, desenvolvimento de pragas resistentes aos inseticidas e desemprego na área rural.225

Neste sentido, há uma convicção, hoje, de que a Revolução Verde trouxe mais problemas do que benefícios. Malgrado o aumento na produção de alimentos, a grande maioria da população mundial continua faminta e poucos são os beneficiados dos progressos tecnológicos. O excesso de inseticidas e fertilizantes locupleta as transnacionais e insere os países em desenvolvimento no processo de exploração mundial, tornando-os dependentes dos países desenvolvidos detentores da tecnologia.

Pat Mooney já fazia a advertência de que: “Controlando-se as sementes, caminha-se para o controle de todo o sistema de alimentos: as culturas que serão plantadas, os insumos que serão usados e onde os produtos serão vendidos”.226

Na mesma linha, Vandana Shiva censura a formação de monoculturas e as conseqüências que podem advir do mau uso da biotecnologia como mecanismo de dominação na relação entre Norte e Sul. Vandana Shiva alerta que há um mito de que a biotecnologia iria dar início a uma nova era na agricultura, livrando-a dos agrotóxicos. Em verdade, esclarece, a autora que:

[...] O foco predominante da pesquisa em engenharia genética não é safras sem fertilizantes e sem pesticidas, e sim variedades resistentes e herbicidas. [...] A resistência a herbicidas e pesticidas também vai aumentar a integração sementes/produtos químicos e o controle de grandes empresas transnacionais na agricultura.227

Como se pode notar, é mais fácil criar uma nova variedade de semente, do que criar um novo herbicida. Vandana Shiva estima que “o custo de criar uma nova variedade vegetal raramente chega aos US$ 2 milhões, enquanto o custo de um novo herbicida excede os US$ 40 milhões”.228 Some-se a isso, o risco ainda imprevisível de que essa “estratégia de engenharia genética para criar resistência a herbicidas, que estão destruindo espécies vegetais úteis, também podem acabar criando superervas-daninhas”.229

Diante do quadro descrito, é inevitável concluir que a proteção do bem ambiental

225 ODUM. Eugene P. BARRETT, Gary W. Fundamentos de Ecologia. Tradução Pégasus Sistemas e Soluções.

São Paulo: Thomson, 2007. p. 470.

226 MOONEY, Pat Roy. O escândalo das sementes: o domínio na produção de alimentos. Tradução Adilson D.

Paschoal. São Paulo: Nobel, 1987. p. 51.

227 SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução

Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia, 2003. p. 133-134.

228 Id. Ibid., p. 134. 229 Id. Ibid., p. 137.

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apresenta uma dimensão difusa e está diretamente relacionada à defesa do meio ambiente contra toda sorte de agressões que possam comprometer o equilíbrio ecológico.

Por essa razão, há autores, como Márcia Moraes, que ao analisar o art. 225 da Constituição, se posicionam de forma mais precisa, fixando como bem jurídico legitimado o meio ambiente ecologicamente equilibrado.230

Apesar de todas as observações que foram feitas, a noção de tutela do bem jurídico meio ambiente é ainda uma idéia vaga e fluida, quando se toma como referencial a biopirataria. Dessa forma, é preciso definir melhor os limites do bem jurídico que se pretenderá tutelar para se justificar uma eventual intervenção penal no caso da biopirataria.

Parece óbvio afirmar que a tutela, ainda no caso da biopirataria, sempre irá recair sobre o meio ambiente, mas acredita-se que o bem estará mais bem delimitado, no caso da biopirataria, com a especificação de que a tutela visa proteger, essencialmente, a biodiversidade ou os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Em outros termos, protege-se o patrimônio genético da biodiversidade e os conhecimentos que as populações tradicionais adquiriram ao longo de muitos anos sobre a manipulação desse patrimônio.

Assim, no caso da biopirataria, ainda que em última análise sempre se vise proteger o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a tutela incidiria mais precisamente sobre o patrimônio genético da biodiversidade e/ou sobre os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, elementos que, evidentemente, integram o conceito bem ambiental em seu aspecto amplo e difuso.

Não é por outra razão que na presente dissertação, já visando essa discussão quanto à necessidade de se buscar uma especificação ou precisão do bem que se pretende tutelar para justificar a intervenção penal, procedeu-se, logo de início, a análise dos aspectos conceituais da biodiversidade.231 Assim sendo, como ficou assentado no Capítulo I, a biodiversidade apresenta uma dimensão material e outra dimensão imaterial. A primeira corresponde à variabilidade de espécies e a segunda representa os conhecimentos tradicionais, ou seja, os saberes dos povos tradicionais acerca do uso da biodiversidade.

Na oportunidade, deixou-se consignado, também, o entendimento de Juliana Santilli,

230 MORAES, Márcia Elayne Berbich de. A (in) eficiência do direito penal moderno para a tutela do meio ambiente na sociedade de risco (Lei n. 9605/98). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 71. Frise-se que

autora em sua obra se posiciona no sentido de que a previsão constitucional quanto à criminalização de condutas que atentem contra o meio ambiente se deveu mais a pressões externas do que à uma vontade do legislador constituinte originário e, ainda, salienta que normas penais que visem garantir um ambiente ecologicamente equilibrado assumem forte caráter político, simbólico e promocional, se mostrando cética quanto ao abandono de um direito penal clássico. Vide, especialmente, p. 193-198 da obra citada.

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segundo o qual os componentes tangíveis e intangíveis da biodiversidade estão intimamente ligados e que a criação de um sistema jurídico que vise a proteção desses bens não pode dissociá-los.232

Esses conceitos, obviamente, foram aprofundados no Capítulo I e por isso não haverá necessidade de serem novamente esquadrinhados neste momento. Uma conclusão, porém, extraída já naquela fase inicial, se apresenta como fundamental para que se possa avançar nesta pesquisa. Naquela ocasião, analisando-se a Medida Provisória nº 2.186-16/2001, o que se verificou foi que a regulamentação recai estatal sobre o acesso ao patrimônio genético da biodiversidade e sobre o acesso aos conhecimentos tradicionais associados a esse patrimônio genético.

Desenvolvendo um pouco mais esse raciocínio, pondera-se que a norma, em verdade, regulamenta a informação relativa à biodiversidade, pois o patrimônio genético não é um conjunto de bens materiais, mas sim, um conjunto de informações.

Por outro lado, também no Capítulo I foi visto que por biopirataria se entende a apropriação dos recursos genéticos da biodiversidade de um país ou dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, sem que exista autorização do país detentor desses recursos ou da população detentora do conhecimento tradicional.

Dessa forma, fica patente que ao se pretender criminalizar a biopirataria o tipo incriminador deverá tutelar o bem jurídico biodiversidade. Isto significa que a conduta que se objetiva coibir é a apropriação indevida das riquezas naturais que integram o patrimônio do País e também os conhecimentos dos povos tradicionais referentes à biodiversidade. Abarca- se, logicamente, todo o conjunto de informações referentes à biodiversidade, ou seja, o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais que recaem sobre este patrimônio genético.

Nessa esteira, uma norma penal para criminalizar a biopirataria visaria punir o acesso à biodiversidade ou ao conhecimento tradicional associado fora dos casos autorizados por norma regulamentar. Logo, o que se objetiva é punir a apropriação da biodiversidade sem o consentimento de quem de direito, que no caso é o próprio Estado. Neste sentido, só haveria biopirataria quando o acesso às informações sobre o patrimônio genético da biodiversidade se der de forma não autorizada, porque, neste caso, inviabilizada estaria a repartição dos benefícios pela exploração econômica dessa riqueza.

232 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismos e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e

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2.3.2 As bases para a (des)legitimação da intervenção penal e as limitações da política

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