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O Direito Penal, em tempos clássicos e neoclássicos, e, suavemente, no finalismo, foi regido pelo dogma causal. Teorias como a equivalência dos antecedentes, da causalidade adequada e da relevância jurídica determinaram e ainda determinam o argumento causal em diversos sistemas penais, inclusive o pátrio.

Outra constatação precisa acerca do sistema penal diz respeito a uma constante histórica: ele tem oscilado entre o ontologismo e normativismo. Movimento pendular que se observa com clarividência no desenvolvimento da teoria do delito: naturalismo, neokantismo, finalismo, e, doravante, funcionalismo. Pode-se dizer que se partiu de um conceito de imputação baseado em critérios empíricos (teoria causal da ação) até chegar a uma concepção fundamentada normativamente (teoria da imputação objetiva)227.

Vê-se, pois, que a imputação objetiva é fruto funcionalista dessa evolução do direito penal. Em meados de 1970, sobremodo com as idéias sobre Política Criminal, de Claus Roxin, inicia-se uma outra perspectiva penal: aquele dogma deixa de ser apenas uma relação material de causalidade, no sentido de atribuir responsabilidade penal ao agente. Eis que aparece a imputação objetiva, não simplesmente dando nova roupagem à causalidade, senão com o fim de construir uma concepção diferente do tipo penal, inserindo neste elementos valorarivos e jurídicos.

O tema em descortino desde seu nascedouro arranca suspiros de admiradores e adeptos dispersos pelo mundo, mas também desperta olhares desconfiados e refratários de estudiosos arraigados às concepções tradicionais. Apesar dessa divisão, o propósito de se suscitar a sua análise não se perde. Justifica-se o mesmo em razão de seu conteúdo respeitar à influência das vítimas nos crimes, mais especificadamente, quando trata do instituto da autocolocação da vítima em risco, heterocolocação em perigo consentida e imputação à vítima. Fatores esses de

227Nessa direção, DÍAZ, Cláudia López. Introducción a la imputación objetiva. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996. p.19 e ss.

estreito liame com o alvo desta pesquisa e também com a anterior concepção explicitada, a vitimodogmática.

Além disso, o estudo à teoria epigrafada é válido, posto que todo agir comunicativo é passível de originar um resultado lesivo, exigindo, minimamente, um presumido autor e uma vítima potencial. Ambos imbuídos de um papel social, suscetíveis de interação e atos recíprocos no correr desta argumentação228. Desse modo, é perceptível, claramente, que o juízo de imputação pode sofrer alguma e relevante alteração, merecedora de uma análise perspectivada por essa nova teoria funcionalista.

Sendo assim, forçoso se apresenta, para se chegar a uma real e justa atribuição penal, uma investigação acerca desse “agir” e do tipo penal propriamente, pressupondo a observância em sua completude subjetiva, seguramente, afirma-se: da conduta do agente e da vítima. Observa-se que a teoria aludida revitaliza o mérito de se estudar não apenas a atuação do delinqüente, mas também da vítima, a qual pode constituir critério negativo para a imputação do evento danoso ao presumido autor.

Em termos simples, assevera-se que a vítima influencia no entendimento do crime, e, por conseqüência, no exame da imputação do curso lesivo ao seu verdadeiro causador, configurando-se, paralelamente à figura do autor, aspecto precioso na relação de causalidade jurídica entre ação e resultado. Logo, examinar a teoria da imputação objetiva, mormente o seu critério atinente à vítima, reflete análise indireta dos postulados vitimodogmáticos. Através dessa visão comparativa entre os principais modelos dogmáticos para a conduta da vítima, será possível a tomada de postura mais adiante.

De se notar que a proposição do instituto em tela pela dogmática jurídico-penal moderna, cuja aceitação, embora freqüente na esfera jurisprudencial e doutrinária alienígenas, no território nacional, por sua vez, ainda encontra muitos óbices. Trata-se, como se adiantou acima, de uma postura presa às tradições dogmáticas, que vislumbram a imputação objetiva como recurso supérfluo. Conforme esses clássicos, a teoria é desnecessária ao deslinde das questões de atribuição da responsabilidade penal, uma vez que bem se poderia resolver os conflitos pelas teorias229 já vigentes nos seus respectivos ordenamentos jurídicos230.

Em oposição, a imputação afigura-se, em não raras interpretações espalhadas por vários sistemas jurídicos do globo, como instrumento de cabedal relevo, inclusive para

228CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Imputação objetiva e direito penal brasileiro. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.9, n.107, p. 7-9, out. 2001.

229 A citação remete-se às teorias acerca da causalidade: da equivalência de condições, da causalidade adequada e da adequação social.

diversos estudiosos brasileiros. Porém, para estes, a teoria ainda se encontra inadequada, mas não pela sua essência, e sim em virtude do sistema jurídico-penal nacional, o fechado (normativo-formal)231, que, em muito, distancia-se do organismo almejado pelos mesmos juristas e considerado apto a, pelo menos, mitigar a crescente e assustadora criminalidade brasileira, qual seja: o sistema aberto232. Este, por seu turno, embasado numa dogmática jurídico-penal relacionada com a política criminal, bem conciliável seria aos postulados da imputação objetiva.

Todavia, ressalta-se que a imputação referida, embora não prevista expressamente na codificação pátria e enfrente as pseudo-incompatibilidades sugeridas, não tem sua aplicação efetivamente vedada pelo ordenamento233, contando com progressiva adesão dos penalistas pátrios, que, interpretando o art.13 do Código Penal, relativo à causalidade, à luz de seus critérios, vislumbram eficazes meios à sua aplicabilidade aos conflitos jurídicos no território pátrio234.

Ademais, dentre os pontos controvertidos da teoria da imputação objetiva, realça-se falta de uniformidade nos pensamentos dogmáticos sobre a mesma, já que inúmeros autores, ao defenderem-na, acrescentam-lhe critérios pessoais de interpretação, impossibilitando a sua “padronização”. Em vista disso, é importante que se delimite o campo a ser aqui abordado: limita-se à análise das constatações de Claus Roxin, de forma muito perfunctória a alguns traços das lições de Günther Jakobs e, ao final, a exposição de Manuel Cancio Meliá, rememorando que o estudo aos mesmos restringe-se tão somente ao assunto conduta da vítima, sem o mérito de discutir a amplitude de suas posturas a respeito do sistema penal.

Como se não bastasse, a metodologia para seu aproveitamento e sua determinação também lhe trazem outra dificuldade de aceitação pacífica, na medida em que trata da análise de casos concretos. Faz-se uso do método indutivo, verificado de acordo com a problemática suscitada por determinadas situações, baseando-se, assim, num juízo teleológico ou racional- final. A respeito disso, acredita-se na sua maior amplitude e viabilidade científica, se

231Trata-se de um sistema que tem como limite os sentidos da própria lei, dedutíveis por meio de uma lógica estritamente formal, não atendendo às questões de criminalidade contemporâneas (A esse respeito, Ibid., s.n). 232 Adotando-se o sistema aberto, atingir-se-ia uma tipificação mais precisa e adequada, uma vez que este permite o acréscimo de fatores outros na análise da imputação do fato ao presumido agente (Cf. Ibid., loc.cit.). 233Em momento algum o ordenamento determina que o tipo objetivo deve se limitar à causalidade. Apenas enuncia que a causalidade é condição necessária, mas não suficiente à imputação. A insuficiência da causalidade material é constatada pelo §1º do art. 13, limitando a teoria da equivalência através de considerações valorativas. Com base no dispositivo surgiram as inúmeras classificações de concausas, as quais seriam desnecessárias com a adoção da teoria da imputação objetiva. (GRECO, In:ROXIN, op.cit., nota 181, p.171).

234Cf. ZANONI, Fernando Henrique. Aspectos dogmáticos da(s) teoria(s) da imputação objetiva. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 973, 1 mar. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8021&p=4. Acesso em: 10 mar. 2006. p.2-3.

comparada com a teoria da equivalência das condições (conditio sine qua non), da causalidade adequada e da adequação social, no que tange a institutos de solução mais apropriados à precisa definição da imputação em si mesma, tais como: a criação do risco permitido, o incremento ou diminuição do risco, o princípio da confiança, a proibição de regresso, os cursos causais hipotéticos e a influência da vítima (com auto-colocações em risco, heterocolocações, através de provocações e do consentimento) e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Outrossim, não obstante os sobreditos fatores controversos e os seus vários opositores, a imputação objetiva tem sido recepcionada por inúmeros doutrinadores na Alemanha235, Espanha, Portugal, Argentina, Colômbia, Chile, Brasil etc.236, influindo na teoria do delito e gerando as correntes funcionalistas ─ assim denominadas por defenderem que a dogmática e a técnica jurídica devem ceder espaço para os fins superiores do direito penal e sua função de regular os comportamentos sociais, promovendo verdadeiramente a justiça237.

Sobre o aspecto da recepção da teoria da imputação objetiva Luís Greco238 afirma que ela se mostra uma grande oportunidade, mas ao mesmo tempo um grande desafio. Assim, ter- se-á de se acostumar ao fim das hegemonias (construção técnico-jurídica de HUNGRIA; depois o finalismo aceito pela maioria dos manuaus pátrios), à coexistência de vários paradigmas, de vários pontos de partida e de várias soluções, ao pluralismo.

Além disso, refutando, inclusive, um de seus argumentos contrários, De forma geral, pode-se dizer que a teoria da imputação objetiva busca a formulação de mecanismos normativos que descrevam em que consiste uma conduta típica e que sejam aptos a delimitarem a responsabilização objetivamente de seu autor, considerando, para tanto, o comportamento vítimal. Oferece, assim, uma nova maneira de se interpretar o nexo causal, por meio da qual o resultado juridicamente relevante só será imputado ao agente quando este for criador de um risco não permitido no ordenamento, afastando-se dos meios causais irregulares de imputação e da visão simplista do direito penal, pois insere a colaboração da vítima para a ocorrência do resultado lesivo, como prejudicial à referida imputação.

Pelo exposto, propõe-se o abandono da perspectiva penal reducionista e da clássica postura acerca da relação de causalidade (natural) ─ exaustivamente criticadas neste debate ─, para se atingir uma discussão construtiva do assunto citado. Crê-se, pois, que as idéias abaixo

235Sobre a adoção da teoria da imputação objetiva na Alemanha, ver HIRSCH, Hans Joachim. Acerca de la teoria de la imputación objetiva. In: Derecho Penal. Obras Completas. Libro Homenaje. t.1. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni Editores, p. 37.

236 Sobre a recepção da imputação objetiva, ver GRECO, op.cit., nota 181, p.77. 237ZANONI, op.cit., nota 215, p.10.

explicitadas prescindem de radicalismo científico-jurídico, atraindo, contrariamente, um olhar visionário, discursivo-dialético ─ que põe em foco tendências funcionalitas ─, visto que diz respeito às transformações sociais em curso e propenso à aquisição de percepções críticas e valorativas das novas vertentes resolutivas de conflitos da seara jurídico-penal, sobretudo as relativas a critérios de política criminal.

3.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICO-CONCEITUAL DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA: BREVES