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CAPÍTULO 3 - PROFESSOR: UM DOS AGENTES DA POLÍTICA DOS 9 ANOS

3.2 ASPECTOS RELATIVOS À FORMAÇÃO

Ao se cotejar os dados sobre a formação profissional dos professores das duas primeiras etapas da Educação Básica, percebe-se que os simpatizantes e defensores do ingresso antecipado da criança no Ensino Fundamental têm na questão da formação um forte argumento, uma vez que nesse nível de ensino a criança terá maior probabilidade de ser ensinada e/ou educada por um professor habilitado. Aqui, mais uma vez, pode haver distinção entre a educação recebida pelas crianças das camadas populares e médias. Apesar de não haver dados a esse respeito, é menos provável que em escolas particulares (com altas mensalidades) se encontrem professores sem formação e/ou habilitação específica, como ocorre em algumas redes públicas e em muitas instituições privadas sem fins lucrativos na oferta da Educação Infantil.

Por outro lado, sabe-se que habilitação não é sinônimo de uma formação inicial adequada ao que será demandado àquele professor, seja em função dos conteúdos a ministrar ou em função da etapa de educação que ele venha a assumir.

Outrossim, concorda-se com Kramer (2006, p.804) quando ele refere ser esta uma trajetória que está sendo iniciada, pois: “Formar professores para lidar com crianças pequenas é uma tarefa nova na história da escola brasileira e, para muitos, desconhecida e até mesmo, menos nobre; ter crianças com menos de 7 anos na escola parece surpreender ou impactar gestores e pesquisadores.”

Afora as inúmeras questões relativas à formação profissional, como o distanciamento entre teoria e prática, crítica comum aos cursos de nível superior;

nas duas últimas décadas cresceu a oferta de cursos em formatos novos, semipresenciais ou à distância, que em muitas situações se traduzem em cursos aligeirados ou de consistência duvidosa (ARELARO, 2005).

Em outra frente, a definição de um novo perfil docente passou a ser explicitada nas reformas educacionais da década de 1990, expressas tanto na LDB (BRASIL, 1996), como em documentos orientadores do MEC referentes ao Ensino Fundamental e à Educação Infantil, e em documentos referentes à implementação de programas de avaliação externa. Segundo Freitas (2003), observando o documento “Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica em cursos de Nível Superior” (BRASIL, 2000) e Caldas (2007) em relação ao Parecer CNE/CP no 09/01, que instituiu as Diretrizes para a Formação de Professores da Educação Básica (BRASIL, 2001a), nota-se que se fala apenas do que é esperado do professor, sem haver pronunciamentos sobre o que será oferecido a eles, sobre quais mudanças em termos de condições de trabalho ou de carreira estão previstas.

Campos (1999), comentando a proposta curricular em estudos no MEC em 1997, que previa a mesma formação para professores de Educação Infantil, séries iniciais do Ensino Fundamental, educação de jovens e adultos e educação especial, indica a importância e necessidade de uma reavaliação, a fim de que contemple alguma flexibilidade para “que os futuros professores pudessem montar seu currículo a partir de um módulo básico e de disciplinas especializadas que os preparassem para o trabalho com diferentes tipos de alunos.” (p.138). A autora segue discutindo a existência de uma lacuna importante na formação de professores em diferentes loci institucionais e em diferentes países: “seria muito importante que fosse contemplado um aspecto que costuma ser totalmente negligenciado nesses

cursos: a formação para o trabalho com pais e comunidade.” (CAMPOS, 1999, p.139).

Campos já se preocupava, em 1999, com a proposição de um debate mais ampliado sobre formação e carreira docentes, afirmando que se teria “muito a lucrar com a contribuição da literatura e das experiências práticas na área de educação infantil, que até agora não têm circulado muito fora dessa especialidade.” (1999, p.128). Por essa razão propôs a adoção da expressão “professores de crianças de 0 a 10 anos”, no sentido da prescrição da LDB, “ao definir o mesmo tipo de formação para os professores que atuam na educação infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental.” (p.128).

Freitas (2003) também acolhe algumas preocupações e proposições explicitadas por Campos. Para esta autora é necessário formar professores/educadores afinados com uma nova concepção de trabalho escolar que tenham:

- a capacidade de romper com a fragmentação disciplinar e avançar para outras formas de trabalho com as crianças, na direção da unidade metodológica, do trabalho coletivo e interdisciplinar; - as condições de auto-organização dos estudantes na gestão democrática da escola; a participação dos pais, da comunidade e dos movimentos sociais na vida da escola; - a formação para a participação ativa na gestão democrática do projeto pedagógico da escola, na solidariedade com os colegas, no compromisso com a emancipação de nosso povo por meio da participação em suas entidades associativas – científicas, acadêmicas e sindicais –, que possibilitem sua formação integral, multilateral. (FREITAS, 2003, p. 1117).

Atualmente, sob a vigência da lei sobre o Fundamental de 9 anos, tais proposições parecem se colocar como possibilidades quanto ao projeto de continuidade pedagógica entre as duas etapas da Educação Básica, assegurando-se em assegurando-seu interior as especificidades pedagógicas de acordo com as faixas de idade das crianças.

O primeiro documento oficial publicado pelo MEC sobre o Programa de ampliação do Ensino Fundamental (BRASIL, 2004) se posiciona fazendo alusão à necessidade de “assegurar ao professor programas de formação continuada, privilegiando a especificidade do exercício docente em turmas que atendem a crianças de seis anos.” (p.24). Na sequência do texto, mantém-se a mesma defesa dos documentos oficiais referenciados anteriormente ao se afirmar:

A natureza do trabalho docente requer um continuado processo de formação dos sujeitos sociais historicamente envolvidos com a ação pedagógica, sendo indispensável o desenvolvimento de atitudes investigativas, de alternativas pedagógicas e metodológicas na busca de uma qualidade social da educação. Não há nenhum modelo a ser seguido, nem perfil ou estereótipo profissional a ser buscado. (p.24).

Entende-se que há uma preocupação em se propor uma ação partilhada e coletiva em termos de formação em serviço, quando se lê no referido documento:

[...] é uma atitude gerencial indispensável para o desenvolvimento de um trabalho pedagógico qualitativo [...] é decisivo o papel que o profissional da educação realiza no dia-a-dia da escola. Esse fazer precisa ser objeto de reflexão, de estudos, de planejamentos e de ações coletivas, no interior da escola, de modo intimamente ligado às vivências cotidianas. (p.25).

Em relação a essa questão, ao explicitar os modos de participação, o texto tem redações inequívocas, são os “encontros sistemáticos e coletivos para estudos e proposições”, que permitem “articulação indissociada entre teoria e prática” e democratizam “as relações intra-escolares, na medida em que oferece oportunidades semelhantes ao grupo de profissionais da escola” (BRASIL, 2004, p.

26). Contudo cabe o questionamento sobre como, mediante as complexidades do contexto escolar e da atividade docente em si, assegurar esses espaços na diversidade de instituições educacionais que fazem parte das redes de ensino públicas? Quem assumiria essa responsabilidade?

Ao persistir a falta de vontade e/ou de possibilidade de os gestores escolares assegurarem qualquer trabalho institucional coletivo a esse respeito; mantém-se a questão na esfera individual. O professor fica sendo o responsável pela sua própria formação, por buscá-la e assim assumir a competitividade que acaba se colocando como inerente aos parâmetros contemporâneos. Ao invés da cooperação e solidariedade sonhadas, do “caráter coletivo, solidário e partilhado de que se reveste o trabalho educativo e pedagógico de formação de nossa infância e juventude”

(FREITAS, 2003, p. 1111); prevalece a ação individualizada e solitária de alguns.

Para Gasparini, Barreto e Assunção (2005, p.191) os professores acabam sendo “compelidos a buscar, então, por seus próprios meios, formas de requalificação que se traduzem em aumento não reconhecido e não remunerado da jornada de trabalho.” Espera-se que o professor assuma como um dever pessoal, individual, sua formação continuada, que, em última instância, deve assegurar-lhe o pleno exercício das atividades docentes.

O relato de Zibetti e Souza (2007) sobre a análise da prática pedagógica de uma professora alfabetizadora evidenciou o contrário, que: fruto da vivência profissional e das experiências formativas, “O diálogo com formadoras, com colegas de profissão e com a pesquisadora também ocupou um lugar de destaque”, permitindo que ela

[...] ampliasse sua compreensão das questões pedagógicas que envolviam seu trabalho por meio da mediação de outros que compartilhavam as mesmas dúvidas ou com parceiras mais experientes, permitindo uma compreensão mais ampla da situação em análise. O que confirma as afirmações de Vigotski (1991) para quem a aprendizagem é sempre um processo mediado por outros. (p.260).

O que se percebe é que ainda tem-se um longo caminho a percorrer no sentido de tornar a escola, além de locus para o exercício profissional, em locus educativo, formativo, não apenas para os estudantes, mas também para o professor.

É provocativo o modo como Arroyo (2003) discute a relação entre fracasso escolar e falta de preparo do professor, entendida por ele como uma simplificação perigosa. O autor intitula seu artigo do seguinte modo: “Quem de-forma o profissional do ensino?”. Nele faz um resgate sobre o papel da instituição escolar nessa (de)formação: - existem problemas que se originam na organização do trabalho escolar; as condições de trabalho são muitas vezes desmotivadoras - burocracia, relações hierárquicas, salários baixos, infraestrutura precária, falta de autonomia, relações de trabalho desqualificadoras, entre outras. Kramer e Nunes (2007), tendo entrevistado professores de Educação Infantil de várias redes municipais do Estado do Rio de Janeiro, indicam que por um lado:

[...] as práticas de formação são caracterizadas por iniciativas esporádicas, descontínuas, e acabam por imprimir um modelo de formação no qual teoria e prática aparecem cindidas, sendo o professor concebido como um sujeito tutelado nas práticas de formação que a ele se destinam. De outro lado [...]

Percebe-se também que o processo de formação fragmentado, marcado pela dissociação teoria e prática, episódico, caracterizado pelo sistema de

“repasses” consecutivos, desapropria o professor da autonomia sobre o seu fazer, reduzindo-o a executor de políticas sobre as quais ele não tem qualquer ingerência. (KRAMER; NUNES, 2007, p.436-437).

Arroyo (2003, p.114-115) destaca que “o problema a ser aprofundado é se as condições a que é submetido o trabalho educativo não tendem a torná-lo

“deseducativo e deformador” e complementa afirmando que “o problema da educação dos educadores não é exclusivo de quem trabalha nos centros de sua formação, mas também e, sobretudo, dos proprietários e administradores de ensino que submetem esses profissionais a processos e relações de trabalho deformadoras.” Entre outros aspectos, o ponto mais crítico na visão do autor se refere ao fato de exigir-se que a maioria dos professores sejam habilitados e qualificados somente para executar o que é definido e concebido por outros. “Essa função de pensar, conceber, decidir sobre sua prática pode estar na unidade escolar

ou distante nas Delegacias de Ensino, nas Secretarias, no MEC, ou no especialista, na direção, na Mantenedora e até no livro didático.” (p.116). Ao mesmo tempo em que dizem respeito à organização do trabalho escolar, esses aspectos impactam na formação, seja a inicial ou a continuada, uma vez que o espaço para o exercício criativo e intelectual do professor vai-lhe sendo usurpado, denegado.

Souza (2006, p.489) corrobora a denúncia de Arroyo sobre a desconsideração ou subestimação da “importância das condições concretas de trabalho sob as quais os professores realizam sua prática docente, em escolas concretas, portanto com condições variadas”, destacando que vários autores fazem referência a tais aspectos. E ainda “propõem que nos voltemos para as complexas relações interpessoais que dão existência concreta à escola em termos de reprodução, contradição, conflito ou transformação social.”, bem como entendem ser imprescindível “conhecer melhor a cultura escolar e a cultura docente, além de se enfrentar a burocracia, os entraves administrativos”, repensando além da formação inicial, “a carreira docente e as políticas salariais.” (SOUZA, 2006, p.489).

Retomando os dados coletados por Kramer e Nunes (2007) em entrevistas com profissionais (professores e técnicos) das redes municipais de educação vê-se que eles

[...] revelam que a tendência centralizadora ainda é muito forte na cultura da escola e do sistema educacional dos municípios. A participação plena – quando o professor toma parte das decisões políticas, pedagógicas e administrativas da escola, entre as quais, a elaboração do projeto pedagógico, a construção do calendário escolar, a destinação dos recursos financeiros – ainda não constitui prática comum no dia-a-dia, muito marcado por uma concepção de que o secretário e o diretor são os únicos

“responsáveis” pela escola.

As autoras concordam com Arroyo (2003) e Souza (2006), no sentido de advogar que “não se trata de imputar a responsabilidade unicamente aos docentes, pois os fracassos da escola são decorrentes também de fatores ligados à política

educacional (salário, formação, acompanhamento do trabalho, coordenação, infra-estrutura e serviços etc.).” (KRAMER; NUNES, 2007, p.443).

Em relação aos contextos pesquisados, as escolas a que as professoras entrevistadas estavam vinculadas, percebeu-se um cotidiano contraditoriamente marcado pela autonomia e pela centralização. De um lado, cabia às professoras gestarem sua ação de ensinar, de outro lado e ao mesmo tempo, era esperado que as mesmas as submetessem à coordenação e prestassem contas e/ou partilhassem com a coordenação e/ou com outras professoras o processo de trabalho por elas planejado e encaminhado.

Penna (2007), tendo pesquisado professores das séries iniciais do Ensino Fundamental em São Paulo, também obteve depoimentos semelhantes aos do trabalho de Kramer e Nunes (2007), no que diz respeito à falta de autonomia no cotidiano escolar; acrescida da sobrecarga de tarefas e da necessidade de efetivação de projetos advindos de instâncias superiores à própria escola.

Entende-se que a complexidade da ação de ensinar excede qualquer norma administrativa voltada a prescrever e circunscrever as práticas educativas, uma vez que orientações, normas, prescrições não têm a capacidade de captar a dinâmica do cotidiano escolar, os possíveis problemas e as soluções necessárias e viáveis a esse cotidiano.

Como já fora assinalado anteriormente, a partir das diferentes fontes consultadas, o contexto institucional, com suas condições concretas, com suas demandas e devido às atribuições impostas ao professor, irá influenciar toda a sua trajetória profissional. São principalmente as condições cotidianas de trabalho que interferirão nas identidades singulares, nos modos de apropriação e construção de conhecimentos dos professores.

3.3 PODEM AS CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO DO PROFESSOR