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Aspectos sociais e antropológicos: o jeitinho brasileiro e a burocracia

1 ORIGENS, ESCÂNDALO E POSTULADOS ÉTICOS JORNALÍSTICOS: APRECIAÇÕES

1.1 ORIGENS HISTÓRICAS DAS NOÇÕES ÉTICAS BRASILEIRAS

1.1.4 Aspectos sociais e antropológicos: o jeitinho brasileiro e a burocracia

Surgido na segunda metade do século XVIII, o termo "burocracia" foi empregado, no princípio, apenas para designar a estrutura administrativa do Estado, formada pelos funcionários públicos. No século XX, após a criação da União Soviética, define-se como uma crítica à rigidez do aparelho estatal e aos partidos políticos que sufocavam a democracia de base. Nas últimas décadas, adquiriu um sentido negativo usado como propagação de normas e regulamentos facilitadores da ineficiência de empresas públicas e privadas. Max Weber dá novo significado à acepção burocrática, analisando-a como forma organizacional avançada, com base no método racional, científico e uma forma de dominação legítima (CANCIAN, 2007).

Reinhard Bendix (1986) traça um “perfil intelectual” de Weber detalhando os aspectos da burocracia, seu papel essencial, consequências e atributos no Estado Moderno, especialmente na área governamental. No domínio da lei prevalecem as organizações burocráticas governadas por regras administrativas que estabelecem a delimitação do trabalho

em termos de critérios impessoais, ou seja, é inadmissível a interferência das emoções no desempenho dos funcionários.

Outros princípios dizem respeito à separação entre os negócios/renda oficiais e os privados, ou seja, os ocupantes dos cargos não podem se apropriar dos recursos públicos (MAX apud BENDIX, 1986, p.327). Uma comparação é estabelecida entre o sistema burocrático impessoal e o sistema de administração no regime patrimonial, de feições pessoais.

Na dominação legal, o cargo de funcionário burocrático é caracterizado por atributos como a designação e colocação a partir das qualificações técnicas, da competência e meritocracia. Destaca-se a calculabilidade das decisões realizadas de maneira mais completa quanto mais a burocracia se “despersonalizar, isto é, quanto mais completamente ela conseguir a exclusão do amor, ódio, e todo sentimento puramente pessoal, [...] da execução de tarefas oficiais (WEBER apud BENDIX, 1986, p. 329-330). Em outras palavras, a burocracia torna todos iguais, todos um número de processo.

O “ideal da impessoalidade administrativa” distingue-se pela separação entre os negócios e a família, entre o cargo público e seu ocupante. A autoridade é exercida de acordo com regras e todas as pessoas sujeitas a essa autoridade são juridicamente iguais.

A burocracia se desenvolveu com o apoio dos movimentos democráticos que reivindicavam igualdade perante a lei e garantias legais contra a arbitrariedade nas decisões judiciais e administrativas. Como oposição ao sistema vigente de privilégios e poderes arbitrários, essas reivindicações favoreciam claramente um exercício impessoal da autoridade regida por normas e a contratação de funcionários de todos os estratos sociais, com base unicamente em qualificações técnicas. Ao satisfazerem essas exigências, as organizações burocráticas tiveram um efeito nivelador; as pessoas sujeitas à lei e os funcionários que exerciam a autoridade sob a lei tornaram-se formalmente iguais (BENDIX, 1986, p.336).

Vista desta forma, a burocracia tem o papel, assim como as normas de procedimento, de impedir os deslizes, de tornar as coisas justas, o que faz lembrar o pensador americano John Rawls que se dedica ao tema da justiça como equidade (justice as fairness), uma teoria deontológica de gênero ético-político aplicada às instituições sociais e à distribuição dos bens materiais (RAWLS, 1993, § 1 apud PEGORARO, 2008, p.125).

Raws explicita o recurso do “véu da ignorância” para aplicação da justiça igualitária. Assim haveria descarte do conhecimento a respeito da condição social; as ações públicas julgadas pela ignorância de detalhes que diferenciam os participantes. Analisar-se-iam o fato e

o ser sem interferência dos afetos. Essa seria a sociedade ideal e justa, semelhante à igualdade proposta pela burocracia dentro de um estado moderno e competitivo.

Nesse ambiente de formalismo burocrático surgem as manifestações do “jeitinho brasileiro”, reconhecido nacionalmente, segundo os informantes da pesquisa de Lívia Barbosa (1992) realizada em capitais brasileiras entre 1984 e 1986. Mas o que seria o jeitinho tão conhecido neste país? A autora explica as razões do uso do jeito como forma de sobrevivência ao sistema,

Enquanto a máquina burocrática é teoricamente racional, impessoal, anônima e faz uso de categorias intelectuais, o jeito lança mão de categorias emocionais. Com os sentimentos, estabelece um espaço pessoal no domínio do impessoal. E sua estratégia depende de fatos opostos ao da burocracia como: simpatia, maneira de falar etc. (BARBOSA, 1992, p. 37).

O jeitinho se constitui num modo obrigatório de resolver aquelas situações nas quais uma pessoa se depara com um “não pode” de uma lei ou autoridade. Conforme Roberto DaMatta (1992),Barbosa detecta o centro do jeitinho na nossa notória dificuldade de lidar com um princípio burguês fundamental, qual seja: a igualdade de todos perante as normas, base da isonomia jurídico-política descoberta e instituída pela mentalidade revolucionária no Ocidente europeu.

No Brasil, “o indivíduo é o sujeito normativo das situações”, ou seja, aqui, é muito mais importante conhecer a pessoa implicada, do que a lei que governa uma dada situação (DaMATTA, 1992). Roberto Campos considera o jeitinho brasileiro “não como uma instituição legal nem ilegal, é simplesmente paralegal” (CAMPOS, 1966 apud BARBOSA, 1992, p. 14).

Para os entrevistados da pesquisa de Barbosa, os sinônimos mais comuns do jeitinho são: quebra-galho, malandragem, jogo de cintura, ginga etc.; é usado por toda a sociedade, do “contínuo ao presidente” ou do “faxineiro ao empresário”, portanto, há um uso universal da instituição. Quem não pratica ou é contra, usa argumentos de cunho ético e moral.

Barbosa (1992) esclarece que a burocracia é o domínio, em geral, “do dar um jeito”, conforme os informantes. A técnica do jeitinho é apelar para as justificativas pessoais, para os bons sentimentos e a boa vontade do interlocutor. No universo anglo-saxão, por exemplo, é o oposto, um problema de pressa para conseguir alguma coisa está na esfera privada do cidadão, o outro não tem responsabilidade nenhuma em resolvê-lo.

Já no Brasil, a ênfase é colocada nas relações pessoais, as regras impessoais são difíceis de serem estabelecidas, pois “todos querem ser pessoas e não indivíduos” (BARBOSA, 1992, p. 43). A antropóloga também entende que o sistema burocrático brasileiro é rígido, ineficiente e intransigente; para ela, os próprios executores do sistema regulam as questões com base na vontade pessoal em lugar do “bom senso” ou dos direitos do cidadão.

Analisadas as modalidades da fala sobre o tema, o discurso positivo salienta o jeito como parte do nosso caráter e resume o lado cordial, simpático, alegre e esperto do brasileiro. Além disso, os entrevistados o consideram um elemento que humaniza as relações num mundo rígido, impessoal e frio. Nesse sentido, o jeitinho funciona como uma “cidadania invertida” baseado na necessidade de quem precisa e na compreensão de quem manipula a situação e não “nos direitos e deveres do indivíduo” (BARBOSA, 1992, p. 51). A linguagem negativa, por sua vez, prega mudanças de ordem política, social e legal.

A cordialidade brasileira é assunto expandido por Sérgio Buarque de Holanda (2001), conceito que pode ilustrar este trabalho igualmente a outras características da cultura nacional entendidas como matrizes de uma ética peculiar brasileira. O homem cordial preza as relações de simpatia, é adverso às relações abstratas, às hierarquias ou formalidades típicas e necessárias ao Estado e sociedades modernas. Ademais, tende a reduzir toda e qualquer relação a um padrão pessoal e afetivo, é delicado no trato e hospitaleiro; sofre da dificuldade, “herdada do meio rural”, de separar o público do privado (HOLANDA, 2001).

O “jeitinho” pode servir para amenizar a exigência da presença do indivíduo. Seu discurso erudito/teórico critica as instituições sociais, a realidade econômica e avalia o conceito do Brasil como nação. É também um discurso de denúncia da nossa situação política, da corrupção e impunidade dos homens públicos, ambos sem credibilidade. Os respondentes da pesquisa de Barbosa (1992, p. 60) avaliam que nos países de colonização anglo-saxã, as regras são percebidas com maior proximidade da prática social e o povo mais disciplinado e ordeiro, enquanto que aqui “[...] nada funciona, as coisas não são sérias”.

O brasileiro na pele de sofrido e trabalhador é percebido, publicamente, na fala de teor liberal; privadamente, é visto como mal-educado, picareta, pouco sério etc. Todos procuram tirar vantagem de tudo “a começar pelo próprio Estado brasileiro que, na pessoa de seus governantes, oferece o pior exemplo que qualquer sociedade poderia ter” (BARBOSA, 1992, p. 61-62). Essa avaliação encontra eco nos juízos de valor moral, na conduta ética do brasileiro sintetizada na “Lei de Gérson” interpretada como procedimento desonesto, egoísta,

impunitivo, a face do “querer se dar bem,” independente dos limites sociais e reconhecimento dos direitos alheios.

Na apreciação da linguagem teórica ou erudita, observa-se a contradição daquele que desrespeita as regras, mas se expressa como distanciado de tais práticas sociais. Fala-se aqui, muitas vezes, como um cidadão americano perplexo diante das atitudes de um brasileiro, tais como o comportamento no trânsito ou o uso de influências, prestígio e relações pessoais quando surge a ocasião (BARBOSA, 1992).

Seguindo o raciocínio desse complexo de terceira pessoa, Renato Janine Ribeiro (2002) reforça a questão quando admite que há uma forte tendência entre nós de pensar que apenas o político não é ético. Afirma que muitos que discutem ética no país ficam só na indignação, não definem uma alternativa viável. Ele percebe que de um lado, o discurso professado se apresenta como um discurso altamente ético e moralizante, mas, de outro lado, a prática – de todos nós, não só dos políticos – “é um Deus nos acuda”. Esse quadro é particularmente agudo na política (RIBEIRO, 2002). Para o professor de Filosofia e Ética, a maioria daqueles que discute ética, no Brasil, exalta a reclamação, a crítica, porém é necessário ir além dessa indignação fácil. É preciso estabelecer quais são os valores que as pessoas estão prontas a assumir; as escolhas pessoais, em termos éticos, não podem ser dispensadas, advoga.

Duas dessas opções éticas são bastante conhecidas no país: “você sabe com quem está falando?”19 e o “jeitinho brasileiro”.20 Barbosa (1992) compara as características das duas éticas atuantes no Brasil, avaliando que ambas expressam um modelo de relações subjacentes à nossa sociedade e uma maneira de transformar indivíduos em pessoas.

A primeira demonstra a vertente brasileira hierárquica e autoritária, estabelecendo uma relação negativa. A segunda demonstra o lado cordial, faz uso da barganha e da argumentação; aglutina e estabelece uma relação positiva, e geralmente usa argumentos individualistas. As características dos dramas expostos, para a antropóloga, configuram aspectos nacionais singulares e expressões das vertentes ideológicas – o individualismo e a hierarquia, conformados como as duas éticas centrais do nosso sistema sociopolítico.

Discutir o princípio burocrático é algo extremamente necessário no estudo da ética. A ideia da burocracia, como ideia de um estado moderno, quer tornar público e transparente o

19 Estudado por Roberto DaMatta.

20 Objeto da tese de doutorado de Lívia Barbosa, defendida em 1986, que teve como orientador Roberto

que antes era privado. O ambiente impessoal difere do ambiente onde vigora o jeitinho, prática interpretada, por conseguinte, como uma disfunção ou a sustentação de um conceito não moderno que o brasileiro ainda conserva.

O jornalismo usa estratégias burocráticas nas suas rotinas produtivas na tentativa de criar procedimentos com base em regras, a exemplo de ouvir fontes divergentes, de utilizar aspas, ancorar no real; trata-se de uma ação procedimental para preservar essa ideia de transparência, de objetividade e tratamento indistinto.

O que Renato Janine fala acima sobre a dissonância entre o discurso e a prática ética no Brasil, assim como escolha de valores a assumir, envolve naturalmente o jornalismo, que como diria Chaparro (2007), como espaço público de embates discursivos e linguagem confiável de relatos, cumpre papel cada vez mais importante nos processos da construção democrática.