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Assim como foi apresentado acerca da criação de conceitos, a arte também forma conexões com os outros meios do pensamento e, às vezes, com meios pouco prováveis a

Pássaros em voo: criação e re-criação do pensamento sob filtro deleuze guattariano

V. Assim como foi apresentado acerca da criação de conceitos, a arte também forma conexões com os outros meios do pensamento e, às vezes, com meios pouco prováveis a

fim de elaborar sua criação. Devido à expansão de suas conexões, ela é capaz de aproximar “cada território, cada habitat, [juntar] seus planos ou suas extensões, não apenas espaço temporais, mas qualitativos: (...) uma postura e um canto, um canto e uma cor, percepto e afecto. E cada território engloba ou recorta territórios de outras

65 espécies” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 219). Mas o maior interesse desse meio de criação não consiste no ponto final, na obra em si. Sua atenção está voltada para os movimentos presentes na obra e nas composições realizadas no processo de criação. A arte não se preocupa com a execução correta de seus experimentos, a própria singularidade pode surgir da união incorreta de duas tonalidades; a “sensação está pois sobre um outro plano diferente daquele dos mecanismos, dos dinamismos e das finalidades (...)” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 249). O plano de composição da arte não é o plano técnico, mas sim o plano estético que tem como característica principal ser “um plano de composição, em que a sensação se conforma contraindo o que a compõe, e compondo-se com outras sensações que ele contrai por sua vez” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 250). Ela não visa necessariamente à técnica (por mais que em alguns casos seja a relação entre o artista e sua técnica que ofereça a diferença na obra) para que sua criação aconteça. A arte vincula-se às composições das mais variadas e possíveis para criar seus blocos. A composição no plano articula tanto a técnica quanto a estética, entretanto o plano estético recobre o técnico de tal modo que afirmar os atores: “composição, eis a única definição da arte” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 227). Eles continuam a argumentação afirmando que “não confundiremos todavia a composição técnica, trabalho do material (...) e a composição estética, que é o trabalho da sensação. Só este último merece plenamente o nome de composição, e nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica” (DELEUZE & GUATTARI, 1922, p. 227); sua criação é composta de sensações.

A sensação estética produzida por uma obra de arte não tem validade, nem fim ou finalidade; ela é eterna. Por sua potência não ser submetida aos ditames do tempo, uma obra de arte não perde a singularidade de sua sensação, ou seja, ela não deixa de ser obra de arte em outro contexto temporal. O registro artístico da sensação estética perdura sem se perder ou deixar de existir. Há na obra uma autosensibilidade que existe e permanece por si mesma independentemente do tempo, do espaço e da presença do seu próprio criador ou do espectador. A obra genuína diz de si mesma e sempre será capaz de expressar sua força intensiva. Vale ressaltar que os autores consideram também a duração temporal do material utilizado na obra (papel que se escreveu os romances, elemento material das esculturas, as tintas e as telas, os instrumentos musicais e etc), porém não são os aspectos materiais que eles elevam ao infinito. Mas, sim, a produção artística realizada a partir desses materiais. O ponto é que enquanto o material se conserva é possível ter repetidamente a experiência com a obra; contudo,

66 como a cada repetição uma nova experiência surge, é a sensação produzida por essa experiência que se guarda no “além mundo”. Citando os autores:

O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou a tal momento. A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si (quid júris?), embora, de fato, não dure mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, tela, cor química, etc. A moça guarda a pose que tinha há cinco mil anos, gesto que não depende mais daquela que o fez. O ar guarda a agitação, o sopro e a luz que tinha, tal dia do ano passado, e não depende mais de quem o respirava naquela manhã (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 193)

E mesmo conservada como sensação a obra de arte é capaz de trazer sempre uma nova sensação no processo repetitivo. Ou seja, o que traz de novo são as novas sensações acerca de novos perceptos e afectos instaurados em um novo bloco de sensibilidade que permite a interação sensível com a obra artística. O que não implica pensar que o que está presente na arte é uma demonstração dos sentimentos humanos em uma forma material, transformando o “sentir” em um material estético e essa pulsão variasse de tempos em tempos de acordo com a forma de expressá-la. Se há transformações de vanguardas artísticas, elas ocorrem “porque a arte só pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios, retornos, linhas de partilha, mudanças de níveis e de escalas (...) nenhuma arte, nenhuma sensação jamais foram representativas” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 228). Daí que em diálogo com a obra Diferença e Repetição, e com a crítica à representação, compreendemos que para Deleuze a representação estratifica o pensamento uma vez que dentro do movimento repetitivo dos acontecimentos ela captura apenas o que se repete e não o que difere e, por isso, nega o devir. Postura inversa à da invenção artística, que sempre teve em sua invenção o cunho provocativo entre a norma e o novo, ou então, entre o que está estabelecido e a ruptura do mesmo. A busca artística tem foco na originalidade, e por isso se dispõe a romper com as regras vigentes e com os modelos prontos. Antes de qualquer outra característica a arte é invenção do novo, é manifestação da originalidade; arte é a criação de novos mundos possíveis.

Por conter uma força intensiva a sensação contrai as vibrações em seu entorno, e de tanto contrair transfere essa intensidade no material expresso. Há excitação de vibrações no interino da sensação que se desencadeiam continuamente sem haver uma pausa longa entre uma vibração e a outra que lhe sucede: “a sensação contrai as

67 vibrações do excitante sobre uma superfície nervosa ou um volume cerebral: a precedente não desapareceu ainda quando a seguinte aparece. É sua maneira de responder ao caos” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 249). É propriamente a intensidade vibratória o que dá consistência à sensação para ela enfrentar o caos e ser tão potente para o pensamento quanto qualquer outra área de criação; sendo, também, pelo movimento de vibração e contração que ela atravessa o caos e o enfrenta. Uma vez que “a sensação vibra, ela mesma, porque contrai vibrações. Conserva-se a si mesma, porque conserva vibrações: ela é um Monumento. Ela ressoa, porque faz ressoar seus harmônicos. A sensação é a vibração contraída, tornada qualidade, variedade” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 249). Tal consistência da sensação forma o cérebro8 da arte. Um cérebro que “não é apenas o “eu concebo” do cérebro como filosofia, é também o “eu sinto” do cérebro como arte9. A sensação não é menos cérebro

que o conceito” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.249), ao contrário, ela é tão cérebro quanto o conceito. Só que seu paradigma é outro. O cérebro da arte se movimenta na instancia verbal do sentir, e o pensamento novo que ela faz surgir é um pensamento que sente e que se constitui por sensação. Visto que os autores franceses rompem com a dicotomia corpo e mente, pensar e sentir são unos em um mesmo corpo que pensa-sente com o cérebro, com o braço, com o fígado, com os olhos, com a pele, enfim, com qualquer uma das composições corporais.

Para melhor especificar o capítulo, encontramos no pensamento de Deleuze, e depois em seu pensamento junto com Guattari, uma argumentação teórica acerca da criação na arte que poucos pensadores contemporâneos trabalharam com tanto rigor como eles; argumentando desde a relação sobre a invenção na arte, como sobre aquilo que concerne à produção artística. Para os autores, a arte em sua especificidade, assim como a filosofia, tem o seu próprio meio de criar, sua própria produção e produto de criação. Dividida também em uma tríplice divisão veremos no desenvolver deste capítulo que ela cria monumentos artísticos sobre o plano de composição estética

8 “A filosofia, a arte, a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado, mas os três aspectos

sob os quais o cérebro se torna sujeito, Pensamento-cérebro, os três planos, as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p.247).

9Se o cérebro da arte é um cérebro de sensação, a sensação é o preceito para o conhecimento. Por isso,

não se deve confundir sensação enquanto um meio para o conhecimento, com sensibilidade dada pela percepção acerca de algo. Quando buscar-se reconhecer “algo” através das informações sensível que obtemos do objeto, ou pela maneira como podemos descrevê-lo ou enquadrá-lo no processo recognitivo do conhecimento, fazemos isso através do acordo entre aquilo que nos apresenta, o objeto, em comparação sobre como nos colocamos diante dele, o pensamento. Esse acordo somente serve para classificarmos, para formarmos opinião baseada apenas na primeira impressão.

68 através da interferência de figuras estéticas; sendo a especificidade única da área a capacidade de estimular sensações ao prolongar os instantes da experiência estética diante dos mundos que a arte produz. Sobre a temática da criação artística encontramos no dicionário Le vocabulaire de Gilles Deleuze um interessante traçado sobre o feito teórico dos autores contemporâneos na obra O que é Filosofia?, precisamente no capítulo sete, percepto, afecto e conceito, quando trataram detalhadamente a criação artística, ou poderia dizer, a criação estética, ou então a “pedagogia da arte” e dos procedimentos envolvidos nesse processo. Trecho que nos é muito útil na medida em que esclarece o interesse teórico dos autores e nos introduz nos pontos-chave do capítulo. Sasso e Villani, os autores do dicionário, nos dizem que:

Em Qu’est-ce que la philosophie?, o capítulo 7 é intitulado “Percepto, afecto

e conceito”. Esse capítulo formula uma estética: a arte não é matéria nem de conceitos, nem de percepções, nem de afecções, mas de perceptos e afectos, independentes de um corpo que os experimentaria (o do artista, o do espectador), não subjetivos, não humanos, não submissos ao tempo. Para Deleuze e Guattari, a estética nada tem a ver com a percepção, mas tem tudo a ver com a sensação, singular (porém não individual), mista de percepto e afecto. A sensação está no material (...). O papel da obra de arte é extrair das percepções e afeições um bloco de sensações, arrancar-lhes perceptos e afectos (SASSO; VILLANI, 2003, p. 31, tradução nossa).10

Pensando juntamente com os autores a tríplice divisão da invenção artística, o que envolve a sensação lhe dando uma espécie de delimitação mesmo que flexível além de ser o plano estético em que a arte cria, na especificidade dessa teoria é nomeado como Plano de Composição Estética. Vale destacar de que é no Plano de Composição Estética que se cria o monumento artístico potencializado que se sustenta e conserva a si mesmo. Para tanto, é este também o grande questionamento da arte: a relação entre o plano e o monumento. Ora, “o problema na arte consiste sempre em encontrar que monumento erguer sobre tal plano, ou que plano estender sob tal monumento, e os dois ao mesmo tempo” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 231). Pois, é a variedade de cada artista ao criar sua obra que traz consigo outras diversas possibilidades dos fazeres artísticos. Formando uma gama de universos e de obras nas quais busca-se encontrar o plano suficientemente interessante e satisfatório para uma obra de arte específica.

10

Dans Qu’est que La philosophie?, le chapitre 7 est intitulé “Percept, Affect et concept”. Ce chapitre

formule une esthétique: l‟art n‟est affaire ni de concepts, ni de perceptions ni d‟affections, mais de percepts et d‟affects, indépendants d‟un corps qui les ressentirait (celui de l‟artiste, celui du spectateur), non subjectifs, non humains, non soumis au temps. Pour Deleuze et Guattari, l‟esthétique n‟a rien à voir avec la perception, et tout avec la sensation, singulière mais non individuelle, mixte de percept et d‟affect. La sensation est dans le matériau (…). Le role de l‟oeuvre d‟art est d‟extraire un bloc des sensation aux perceptions est affections, de leur arracher des percepts et des affects (SASSO, VILLANI, 2003, p. 31).

69 Mesmo considerando que essa produção artística pode ser um universo em si mesmo que se sustenta independentemente das ligações efetuadas com outros mundos ou com outras obras ou até mesmo com outros planos, “é sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam, de modo que o plano pode ser único, ao mesmo tempo que os universos são múltiplos irredutíveis” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 232). Ou seja, quantos planos cabem ao universo da arte ou quantos universos cabem em um mesmo plano, é uma questão para a arte.

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