• Nenhum resultado encontrado

O projeto filosófico deleuziano consiste em libertar a diferença dos ditames da

Modulações do pensamento da diferença: seu plano diretor.

VI. O projeto filosófico deleuziano consiste em libertar a diferença dos ditames da

representação e da subordinação à identidade, a fim de pensar a diferença em si mesma e tornar viável erigir a ideia de diferença pura. Na formulação do seu conceito

pensamento sem imagem, Deleuze elenca dois conceitos para o pensamento-novo, são

eles: diferença e repetição. Outrora utilizados de forma inversa para assegurar o pensamento representacional. Ovídio de Abreu assevera que “Deleuze diagnostica assim uma mazela filosófica que, ao secretar uma ortodoxia implícita, (...) enfraquece o pensamento, afastando-o de uma vida ativa e de sua potência criadora” (ABREU, 2010, p. 289). Com isso, e por estar “sujeitada a essa imagem, a filosofia exprime uma boa vontade de potência negativa, alimenta transcendências, ilusões propriamente filosóficas, e organiza um sistema de julgamento no âmago do pensamento” (ABREU, 2010, p. 290). O fato é que a representação é uma imagem inofensiva do pensamento, não ameaça a nada! Não derruba nenhuma estrutura, não rompe com nenhuma norma estabelecida; não há confronto no pensamento recognitivo. São justamente as diretrizes desse pensamento o que incomodou Deleuze, para ele o pensamento deve ter um tanto mais de atrevimento. Nessa direção:

O que é preciso criticar nesta imagem do pensamento é ter fundado seu suposto direito na extrapolação de certos fatos, e fatos particularmente insignificantes, a banalidade cotidiana em pessoa, a Recognição, como se o pensamento não devesse procurar seus modelos em aventuras mais estranhas e menos comprometedoras (DELEUZE, 2006, p. 197).

A recusa do status dado para o conceito de diferença é que o mesmo é concebido como um empecilho para o desenvolvimento do intelecto, enquanto deseja o filósofo elevá-lo ao patamar de motor gerador e transformador no percurso do desenvolvimento do intelecto. Para Deleuze, a diferença é por excelência um atributo do intelecto, melhor dizendo, o conceito de diferença em Deleuze encontra-se no campo transcendental por ser um atributo produzido e acontecido no intelecto, podendo apenas ser abarcado pela mente e mostrando-se somente através do movimento de repetição no sujeito que contempla as coisas no mundo imanente. Por isso, utilizando uma frase- síntese de Hume, Deleuze ressalta no início do capítulo A repetição para si mesma que “a repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla: célebre tese de Hume leva-nos ao âmago do problema” (DELEUZE, 2006,

38 p. 111). A diferença destrói a ordem estabelecida, e é potência para recriar um mundo novo; ela destrói para transformar, ela subverte a representação, ela é o ato de revolução. “A potência destrutiva da diferença e da repetição é tal que todas as questões relativas ao fundamento devem ser novamente colocadas, em virtude das metamorfoses que elas fazem o pensamento sofrer” (LAPOUJADE, 2015, p. 51), sendo que as questões que brotam desse descolamento é que são relativas a imagem do pensamento. Questões como: “por onde é preciso começar? O pensamento pode começar autenticamente sem pressupostos? Ou então, quais são os pressupostos necessários que fazem com que ele comece sem já recomeçar?” (LAPOUJADE, 2015, p. 51). Dessa forma a aparição da diferença se dá pelo confronto no processo recognitvo de conhecimento, quando o pensamento não consegue assimilar uma causalidade e nem um efeito para “aquilo que aconteceu”, ou apenas, reconhece o limite da “verdade” sobre determinado caso. Citando Deleuze:

O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio novo, isto é, a diferença, é exigir, no pensamento, forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incógnita nunca reconhecida, nem reconhecível (DELEUZE, 2006, p. 198).

Faz-se necessário atentar para o ponto em comum entre os termos: simulacro, diferença e multiplicidade, que no enredo da filosofia deleuziana são mais uma variação poética e linguística da escrita do autor para remeter ao mesmo pano de fundo; para uma heterogeneidade que expressa a mesma questão, qual seja, a única expressão do ser que se diz da diferença e apenas na imanência. Como nos diz Cíntia Vieira da Silva:

A vertente crítica do arranjo conceitual nomeado como “imagem do pensamento”, em Diferença e Repetição, transborda para a concepção de imagem e faz do projeto de um pensamento diferencial o manifesto em favor de um pensamento sem imagem. A função exercida pelas aparições sensíveis – não falo em aparências apenas para não correr o risco de evocar uma eventual oposição com relação às essências –fica, então, a cargo da noção de simulacro, e Deleuze contrapõe o sistema do simulacro ao sistema da representação. A repartição se faz, portanto, entre imagem, concebida exclusivamente como figura representativa, e simulacro, entendido como procedimento que confere visibilidade à diferença (SILVA, 2011, p. 81). O conceito de repetição foi elaborado por Gilles Deleuze através do agenciamento do conceito de “eterno retorno” elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Deleuze considera que “retornar é o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno não faz “o mesmo” retornar, mas o retornar constitui o único Mesmo do que devém. Retornar é o devir-idêntico do próprio devir” (DELEUZE, 2006, p. 73). Em

39 linhas gerais, é constante a experiência empírica com a repetição nas mais diversas maneiras de “fazer o mesmo”. A todo o momento criam-se hábitos que são cotidianamente repetidos. Como pedir sempre o mesmo prato em um habitual restaurante, repetir inúmeras vezes a mesma equação, ou ler o mesmo trecho de um poema a fim de compreendê-lo e memorizá-lo. Entretanto, na concepção deleuziana, é propriamente na repetição do mesmo que habita o diferente. Tal constatação pode soar como insustentável ao questionar onde reside a diferença na repetição da mesma ação. A resposta é que o “diferente” surge como uma intensidade, uma força que atravessa o repetitivo e que o transfigura, trazendo outra percepção sobre o mesmo e não necessariamente como uma mudança imanente; como uma mudança do estado físico do movimento repetitivo. Utilizando o exemplo há pouco citado, pode-se sugerir que na maçante repetição da leitura de um mesmo trecho de um poema, aconteça um novo grau de sensibilidade e de compreensão. Daí o efeito causado no leitor que o leva a ressignificar o trecho com um novo sentido possível que transforma todo o restante do poema. O que Deleuze afirma é o seguinte: no movimento geralmente considerado cíclico da repetição, algo de novo passa entre os intervalos daquilo que é repetido. Entre um passo e outro-mesmo passo, entre uma leitura e a mesma-outra leitura, entre um som e outro-mesmo som, entre um pensamento e outro-mesmo pensamento, verifica-se a transmutação diferencial. É neste intervalo, no entre, que encontramos uma vultosa mudança sobre aquilo que aparenta ser igual.

Para pensarmos a repetição é preciso que, previamente, desconsideremos a sua possível relação com a ideia de generalidade. Para Deleuze esses dois termos são opostos e não há nenhuma complementaridade por parte da generalidade face à repetição. Esclarecendo “toda fórmula que implique sua confusão é deplorável, como quando dizemos que duas coisas se assemelham como duas gotas d‟água (...). Entre a repetição e a semelhança, mesmo extrema, a diferença é de natureza” (DELEUZE, 2006, p. 19). Como forma de melhor compreensão dos termos vale salientar que a generalidade forma-se através do processo de generalização. Processo em que se busca o conhecimento partindo de elementos particulares em prol de formar uma ideia geral, e que obtém no final desse movimento graus de generalidade. Portanto, a generalização é o processo de conceituação que abrange todo um gênero. Estabelece graus de generalidade entre os seus elementos em que mesmo trocando os particulares por outros semelhantes continua, nesse sentido, utilizando a ideia geral como se fosse uma constatação particular. “A generalidade exprime um ponto de vista segundo o qual um

40 termo pode ser trocado por outro, substituído por outro. A troca ou a substituição dos particulares define nossa conduta que corresponde à generalidade” (DELEUZE, 2006, p. 19). O ponto crucial sobre a generalidade para a teoria deleuziana é que ela trata sob dois aspectos os acontecimentos: ou eles são de semelhança ou de equivalência.

Porém, o movimento da Repetição desvincula-se por completo de tal viés. Ela tem um cunho de subversão e sempre será uma categoria transgressora, pois sua natureza não é de “enquadramento ao modelo estabelecido”. Pelo contrário: ela rompe com as leis gerais. Sua relação não é com os particulares ou com os universais. A Repetição mantém uma relação com o que é único e singular. Quer dizer, “como uma conduta externa, esta repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que anima” (DELEUZE, 2006, p. 20). De fato, por tratar de singularidades não é possível que haja no movimento da Repetição uma substituição dos termos ou mesmo uma universalização. Sua pulsão é outra. Quando repete-se, por mais que aparentemente seja o mesmo, ontologicamente é um outro; o ser não é idêntico ao ser dos instantes passados. Constata Deleuze:

Se a repetição é possível, é por ser mais da ordem do milagre que da lei. Ela é contra a lei: contra a forma semelhante e o conteúdo equivalente da lei. Se a repetição pode ser encontrada, mesmo na natureza, é em nome de uma potência que se afirma contra a lei, que trabalha sob as leis, talvez superior às leis. Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística (DELEUZE, 2006, p. 21).

Aquilo que a repetição realiza no movimento em situação de gerúndio é afirmar o devir. Afirmar o que é singular, sem símile, o que é díspar. O que não se encontra, então, propriamente na matéria física, no retorno do mesmo, mas em um campo quase “extrafísico”. Que mesmo respaldado pela imanência faz surgir um outro: a singularidade – a repetição daquilo que é a mais alta expressão do ser em um indivíduo, ou seja, aquilo que o diferencia e o singulariza dos outros; a singularidade comanda a diferença dos indivíduos. Nessa perspectiva, ela é aconceitual porque ao contrário do conceito não tem função designativa: “a repetição aparece, pois, como a diferença sem conceito, a diferença que se subtrai à diferença conceitual indefinidamente continuada” (DELEUZE, 2006, p. 36). A singularidade encontra-se em um domínio neutro em que ela não pertence e não surge a partir da relação com o indivíduo ou com o coletivo. Ela preexiste ao próprio sujeito. Por isso é “pré-

41 individual” e “não-pessoal”. E sendo ela a expressão da repetição “exprime uma potência própria do existente, uma obstinação do existente na intuição, que resiste a toda especificação pelo contrário, por mais longe que se leve esta especificação” (DELEUZE, 2006, p. 36). A singularidade aponta para a direção da multiplicidade, como “quase-seres” que comandam os corpos e os acontecimentos. Ela é um virtual. Deleuze trata a virtualidade como categoria de determinação da diferença. E por mais que o termo, quando pensado superficialmente, nos remeta a algo sem forma, o filósofo é taxativo ao afirmar que:

O virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual. O virtual possui uma plena realidade como virtual. Do virtual, é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: “Reais sem serem virtuais, ideias sem serem abstratos”, e simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser definido como uma parte própria do objeto real – como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva (DELEUZE, 2006, p. 294).

A realidade do virtual é formada por uma síntese de relações, elementos e pontos que se unem em uma estrutura que emoldura a realidade virtual, ou seja, “em vez de ser indeterminado, o virtual é completamente determinado” (DELEUZE, 2006, p. 295). O filósofo francês exemplifica esse aspecto através do objeto artístico ou obra de arte, dizendo que há em uma obra de arte uma virtualidade em que diversos elementos convivem em estado de maior proximidade do caos, ao mesmo tempo em que há também uma determinação concreta desses elementos que serviram de gênese da produção artística. “Quando a obra de arte exige uma virtualidade na qual mergulha, ela não invoca qualquer determinação confusa, mas a estrutura completamente determinada (...)” (DELEUZE, 2006, p. 295) independente da multiplicidade de elementos na virtualidade. Tais elementos são os que lhe atribuem o diferencial, a singularidade, o “extra”; são eles que impulsionaram o seu princípio. À vista disto, “os elementos, as variedades de relações, os pontos singulares coexistem (...) na parte virtual da obra ou do objeto, sem que se possa assinalar um ponto de vista privilegiado sobre os outros, um centro que seria unificador (...)” (DELEUZE, 2006, p. 295). Há a unidade formada por uma multiplicidade no virtual em que não há um único, mas diversos elementos que o unem e o sustentam.

A virtualidade oferece uma criação singular, única e insubstituível. Por isso ela pertence à repetição e não à generalidade. Na união de diversos elementos que formam a potência criadora é possível constatar o caráter da repetição como uma “universalidade do particular” no qual houve um primeiro momento em que o

42 acontecimento se deu; ou seja, a parte objetiva e as inúmeras derivações que daí partiram. Sobre a singularidade da repetição na obra artística nos mostra Deleuze:

Repete-se uma obra de arte como singularidade sem conceito, e não e por acaso que um poema deve ser aprendido de cor. A cabeça é o órgão das trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição. (É verdade que a repetição diz respeito também à cabeça, mas precisamente porque ela é seu terror ou seu paradoxo.) Pius Servien distinguia, com razão, duas linguagens: a linguagem das ciências, dominada pelo símbolo de igualdade, no qual cada termo pode ser substituído por outro, e a linguagem lírica, em que cada termo, insubstituível, só pode ser repetido. Pode-se sempre “representar a repetição como uma semelhança extrema ou equivalência perfeita. Mas passar gradativamente de uma coisa a outra não impede que haja diferença de natureza entre as duas (DELEUZE, 2006, p. 20).

Explanando melhor os limites dos conceitos virtual/real e sujeito/objeto juntamente com diferença/repetição recordamos a frase do pensador contemporâneo: “A repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla” (DELEUZE, 2006, p. 112). Deleuze demonstra com essa frase que mesmo havendo uma repetição empírica, num movimento continuo e verificável por experiências primaria, como que pela simples observação, a diferença acaba residindo como acontecimento inscrito no campo transcendental, pois é uma diferença de afetação sensível que converte o entendimento. Com maior detalhamento, os encontros verificados na repetição são ao mesmo tempo o “mesmo” e, também, os próprios potencializadores do diferencial que pode transfigurar os encontros em encontros intensivos. A possível mudança nos encontros consiste nas novas impressões que a repetição suscita na mente que a contempla, contraindo as novas possibilidades advindas desse atravessamento. Enfim, percebe-se o diferencial na repetição através da força de contração (força unificante do passado e do presente dos acontecimentos) em um tempo fugaz em que ela se faz e desfaz tornando possível notar a mudança de um estado a outro. Na contração da repetição pelo sujeito pensante reside à diferença, a repetição se revela não como “aquilo de que se “extrai” uma diferença, nem aquilo que compreende a diferença como variante, mas o pensamento e a produção do „absolutamente diferente‟” (DELEUZE, 2006, p. 142). Seu intuito é “fazer que, para si- mesma, a repetição seja a diferença em si-mesma” (DELEUZE, 2006, p. 142). Como se a repetição e a diferença se unificassem em um determinado ponto, e dali expandisse a possibilidade de um novo pensamento, de um pensamento sem imagem. Há o deslocamento do categórico “diferença/novo/mudança”, anteriormente atribuído ao objeto, para a “diferença/novo/mudança” no sujeito. Nesse descolamento a diferença

43 deleuziana não se encontra no mundo empírico, mas em uma nova impressão sobre o mundo. Assim sendo,

Considerando a repetição no objeto, permanecemos aquém das condições que tornam possível uma ideia de repetição. Mas, considerando a mudança no sujeito, já nos encontramos além, diante da forma geral da diferença. A construção ideal da repetição implica, portanto, uma espécie de movimento retroativo entre estes dois limites. Ela se tece entre os dois (DELEUZE, 2006, p. 113).

Outline

Documentos relacionados