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2. O DOM: DAR, RECEBER E RETRIBUIR OU APENAS TROCAR

2.1 As famílias: sistema de trocas e de cuidados

2.1.2. A assimetria das trocas

Se as trocas e as práticas de entreajuda podem ser entendidas como estratégias de reprodução social, também o são outros aspectos, já que os apoios não são dados indiferenciadamente, antes revelam uma forte assimetria, sobretudo a relacionada com o sexo já atrás referido.

Tanto os estudos europeus como os realizados em Portugal não deixam dúvidas (Vasconcelos, op.cit.) que a força das relações de parentesco intergeracionais é entre progenitores de descendência imediata, sendo igualmente forte a participação feminina ou por via feminina nas ajudas. A grande maioria das ajudas é dada pela família da mulher, pelo que a solidariedade flúi mais pelo lado feminino da família. Pitrou destaca também esta assimetria afirmando que “os apelos à solidariedade familiar, em particular nos cuidados aos doentes, às crianças ou às pessoas idosas,

endereça-se sempre mais ou menos implicitamente às mulheres” (1994:218). Guerreiro partilha e reforça esta opinião. Segundo refere esta socióloga nas notas de informação sobre a sociedade portuguesa na obra de Saraceno e Naldini (2003), os apoios dados, em caso de necessidade, decorrem sobretudo dos recursos possuídos mas, estão de forma significativa estruturados ao redor das redes femininas de parentesco. Segundo afirmam as autoras do livro “nas redes contemporâneas de parentesco, as mulheres parecem mais colocadas no centro das trocas, como tecedoras das próprias redes” (ibid.:116) parecendo que o dever de comunicação e mediação entre grupos, famílias e linhas de parentesco tal como a pertença familiar e a identificação com uma continuidade intergeracional são melhor comunicadas e garantidas através das mulheres. E nestas redes construídas sobretudo por mulheres, mães, avós, filhas, noras e sobrinhas presta-se todo o tipo de cuidados informais não remunerados capazes de assegurar as lacunas da rede de cuidados formais (Perista, 1999).

Neste sistema de entreajuda e trocas presta-se toda uma variedade de serviços, e dão-se bens, que passam pelo apoio ao trabalho doméstico ou à manutenção da habitação, a guarda de crianças e cuidados a idosos. “Tudo se troca na família, todas as transacções que aí se operam são o suporte de relações afectivas intensas e só tem significado relativamente a estas […]. A interdependência afectiva é um dos fundamentos da continuidade familiar” (Bourguignon in Segalen, op.cit.:108).

Com efeito nas sociedades contemporâneas a afectividade parece ser o código das trocas de parentesco. Mais do que um elemento complementar das trocas familiares, a afectividade constitui a sua razão de ser ou causa e a sua legitimação ideal, como referem Saraceno e Naldini que explicam: da mesma forma que nas sociedades contemporâneas desenvolvidas a única maneira de conceber o casamento é por amor, também se deve amar os parentes pelo menos os mais próximos. E isto porque “as formas de obrigatoriedade social da rede de parentesco enfraqueceram e de algum modo os parentes, mesmo por afinidade também são escolhidos como relação” logo em termos sociais não é permitido “não os amar e não se pode deixar

de esperar afecto da sua parte” (op.cit.:112). É portanto nesta partilha de afectos, mais do que no dever, na obediência ou controlo da transmissão patrimonial que se baseia a continuidade das gerações e de pertença a um grupo de parentela. E a expectativa e o valor da afectividade são tão fortes que quem os protagoniza tende a esquecer o valor prático, social e económico das trocas que se realizam.

Quem protagoniza estas formas de afectividade intensa parece desprezar os aspectos instrumentais do parentesco. Como se “o barulho do dinheiro tivesse sido banido da família” (Pitrou, op.cit.:220). E este aspecto assume uma relevância particular quando associado às trocas afectivas está todo um conjunto de actividades de cuidado que é necessário desenvolver aos elementos da família por perda da sua autonomia, uma vez que as relações que se estabelecem são produto de uma longa história de transmissões ascendentes e descendentes, articuladas na circulação das dividas. A ajuda no seio das relações familiares, sobretudo a que diz respeito aos cuidados e à educação, pode então ser considerada como um empréstimo ou investimento sem que se tenha a certeza de que este é a fundo perdido (ibid.).

A explicação de Godbout (op.cit.) não se distancia muito desta. Tal como refere, a família é o núcleo do dom moderno e, sendo assim, os valores monetários são imergidos no valor do laço. E essa experiência de dádiva intensa à qual estão associadas as trocas afectivas, ainda que difícil, assume no seio familiar um valor próprio, onde entram em conta outros, mas nenhum sobreponível ao valor do laço. Estes aspectos fazem com que as trocas na família, para além de desiguais em relação ao sexo, o sejam também em termos de retribuição, caracterizando-se antes de mais por uma apreciação subjectiva, mas também ela associada à contingência da oferta e da procura, o que na terminologia dos economistas pode ser considerado como um mercado totalmente imperfeito.

Perante tal facto Pitrou (op.cit.) questiona até que ponto será necessário exigir uma contrapartida para as intervenções de ajuda e solidariedade nas famílias, adiantando que a principal diferença que caracteriza a solidariedade familiar, por oposição às regras que regem as ajudas acordadas por instâncias públicas, parece ter duas especificidades: por um lado a entreajuda familiar inclui uma carga afectiva

indiscutivelmente ligada aos aspectos materiais, como foi já sublinhado neste texto; por outro lado as entreajudas no seio das famílias situam-se na “suavidade” de uma norma imprecisa, que apesar de ser constrangedora carece de regulação escrita ou legalmente definida.

Embora Pais (1998) sublinhe, como já foi mencionado, poderemos estar a assistir “à desintegração do sistema tradicional de valores” que poderá levar as pessoas a procurar novas éticas de orientação de vida, a família permanece um local de afectividade intensa e no seu interior as relações não são neutras, privilegia-se o lado materno segundo uma lógica que opera por proximidade geográfica, afinidades ligadas ao sexo dos interessados e segundo a história das relações no decorrer das etapas criticas da vida (Fernandes, 1997), cujo resultando é a permanência das mulheres como os principais agentes das trocas tanto no plano das afectivas como simbólicas.

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