• Nenhum resultado encontrado

2. O DOM: DAR, RECEBER E RETRIBUIR OU APENAS TROCAR

2.1 As famílias: sistema de trocas e de cuidados

2.1.1. Solidariedades familiares, trocas afectivas e cuidados

A ideia de que a família nuclear sobrevive separada das famílias de origem e que existe uma ruptura dos laços de parentesco, não passa portanto de uma ideia aparente. Vários sociólogos têm estudado a questão das solidariedades nos últimos anos, confirmando não só a sua existência, mas também o papel fundamental que estas representam na satisfação das necessidades das famílias, sobretudo quando destas fazem parte pessoas que necessitam de apoios especiais e cuidados por doença ou perda de autonomia. Agnès Pitrou refere que existe mesmo uma “rede subterrânea e invisível de solidariedade familiar” que passa por um conjunto de ajudas que de um modo geral não são contabilizadas (Fernandes, 1997). Sousa Santos já referido anteriormente confere, também ele, uma importância especial à questão das trocas e do seu reconhecimento, referindo que no nosso país existe uma “sociedade providência” que ele define como “as relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, através dos quais pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil” (Joaquim, 1998:178). Mais recentemente um trabalho

coordenado por Anália Torres para além de confirmar a existência das redes de solidariedade familiar, confirma também, que estas são o principal recurso das famílias quando de trata de cuidados a pessoas com necessidades especiais. “Na verdade, os idosos dependentes que precisam de cuidados especiais estão em sua própria casa ou em casa de familiares e são ajudados pela sua família” (Torres, 2004:107).

E estes cuidados especiais que a família presta aos seus, ainda que possam revestir-se de aspectos potencialmente satisfatórios, “fontes subtis de satisfação (…) resultantes da história passada e presente” bem como do envolvimento afectivo com a pessoa cuidada” (Brito, 2002:46), são também fonte de dificuldade, associada a exigências de vária ordem. No conjunto das dificuldades identificadas no estudo de Luísa Brito, destacam-se sobretudo as associadas à duração da situação de prestação de cuidados, e as que se relacionam com a ausência de ajuda regular e ainda o deficiente apoio profissional. Ainda no mesmo estudo, quem apresenta maior escolaridade tende a manifestar menos dificuldades, tanto nas exigências de ordem física como nos aspectos relacionais a que os cuidados obrigam (ibid.).

Em matéria de solidariedades (ou de cuidados) a questão da afectividade reveste-se de uma importância fundamental. Pitrou (1994) sublinha que a imbricação das afinidades e das solidariedades é muito forte, sendo mesmo uma evidência qualquer que seja o domínio considerado. Conforme justifica, ninguém pede ou presta um serviço a uma pessoa por quem a afinidade seja fraca ou nula. A não ser que se pretenda cumprir um dever excepcional, porque o elemento subjectivo que preside à escolha dos elementos de troca, e que varia com a natureza do que é trocado, revela uma relação de estatuto e lugar no quadro da parentela.

Inscrita no tempo e espaço do tecido familiar, modificando-se com as etapas da vida e história das relações no interior da família, descontínua segundo os momentos, a intensidade das necessidades e das ofertas e ainda segundo os espaços e papéis, a extensão das trocas constitui de forma inequívoca uma questão vital em matéria de solidariedades, mesmo que por vezes possa parecer pontual,

nomeadamente a que se relaciona com os membros que se juntam por recomposição familiar ou que se excluem por divórcio ou ruptura (ibid.).

Parece então que as trocas familiares, uma vez que desprovidas do seu carácter de permanência e de continuidade não se diferenciam das de outros contextos como os de vizinhança ou de amizade. Mas se as suas características, nomeadamente a permanência, obrigação moral e intergeracionalidade podem estar modificadas, a extensão e a normalidade com que ocorrem estas obrigações não poderá ser questionada, porque o seu lugar de ancoragem é o espaço familiar apesar deste poder incluir parceiros mais episódicos.

La normalité des obligations inhérentes aux liens de parenté, encore, si fortement inscrite dans les mentalités, ne serait pas forcément remise en cause pour autant, mais plutôt modifiée dans son extension, en incluant des partenaires plus épisodiques, tout en restant fortement ancrée comme nous avons vu dans le lien biologique (Pitrou, op.cit.:217).

E esta espécie de selecção, mais ou menos exclusiva das relações privilegiadas que são as relações de parentela, parece ser contraditória. Sendo a incondicionalidade a qualidade fundamental do espaço familiar e a que as pessoas designam quando são interrogadas, como refere a mesma autora, opõe-se às relações de amizade que são escolhidas. Escolhem-se os amigos mas não se escolhe a família. E é justamente essa incondicionalidade o cerne e fundamento da segurança do espaço familiar, já que a escolha dos parceiros para as trocas parece revelar-se bem mais frágil. Importa ainda referir que, se as solidariedades já não são prescritas de forma rigorosa senão pelo passado, pelos lugares e pelas categorias dos tecidos sociais, elas não são ténues, antes pelo contrário, permanecem fortes e apresentam grande vitalidade.

Pitrou menciona ainda que, quando uma pessoa é solicitada para prestar um serviço de carácter temporário ou duradoiro a um dos seus parentes e que acredita ser obrigada a fazê-lo, procura acreditar também nos pretextos legítimos para não o fazer sem dar a entender que o não faz por livre vontade ou por não valorização dos

deveres familiares. É que, estes pretextos para poderem ser “legítimos” devem de certa forma relevar deveres sociais julgados prioritários tais como o afastamento não voluntário, o trabalho e as obrigações familiares concorrentes (ibid.).

Saraceno e Naldini reforçam esta ideia sublinhando que a família contemporânea vive a numa rede densa de relações e trocas entre parentes, num entrelaçado de relações com uma pluralidade de direcções, que são fundamentais afirmando mesmo que, “quem não está numa rede tem recursos mais escassos”. De resto acontecendo algo de semelhante a quem experimenta a sua obrigatoriedade com pouca reciprocidade, estando mais disposto aos riscos e à falta de cuidados e assistência quando doente, na velhice ou em outras quaisquer circunstâncias que exijam auxílio (op.cit.:107). Contudo as redes de entreajuda familiar não existem no vazio social, estas dependem antes de uma série de características que as estruturam e que decorrem do posicionamento relativo dos grupos familiares no espaço social ou seja na classe social das famílias.

A troca de serviços, quer sob a forma de ajuda no trabalho doméstico e de ajuda nos cuidados a prestar às crianças e aos doentes, quer de ajuda na manutenção da casa, do automóvel, etc. seria predominante na rede de parentesco das classes menos abastadas na medida em que estas têm menores recursos de capital económico e social para redistribuir (Saraceno e Naldini, op.cit.:107-108).

Já que nas famílias de classe média o fluxo das trocas parece ser unidireccional com as famílias de origem relacionando-se esta com o auxílio para encontrar trabalho quer mobilizando influências quer conhecimentos, ou ajuda para aquisição de casa ou automóvel, recebendo em troca apoio afectivo, e reconhecimento de continuidade de pertença (ibid.).

Vasconcelos tem opinião idêntica referindo que as trocas obedecem a lógicas estatutárias. Enquanto que as mais materiais e em serviços estariam associadas a classes mais baixas, numa forma de solidariedade para a subsistência, a solidariedade para a promoção social, com trocas mais simbólicas e de dinamização para a

mobilidade social ascendente estariam presentes nas classes médias e altas. Desta forma as práticas de entreajuda e solidariedade familiar podem ser também entendidas como práticas estratégicas ao longo da trajectória social, que ao fazerem uso do parentesco, “são elas mesmas estratégias de reprodução social que em vários âmbitos de acção possível (tantos quantas as maneiras de prestar apoio na família), visam a reprodução biológica dos grupos primários onde se inscrevem os indivíduos – as famílias” (Vasconcelos, 2002:511).

Pelo descrito, as trocas familiares, longe de assentarem numa exigência de reciprocidade imediata surgem diferidas no tempo e como um encadeamento de actos (Segalen, op.cit.). Como se efectivamente se tratasse de um jogo a vários tempos que mantêm uma assimetria de posições entre os actores da troca, parecendo enquadrar- se na lógica da dádiva, na concepção de Mauss já descrita, entendida como prestação total que pressupõe o acto de dar, a obrigação de aceitar e de retribuir. “Cria-se uma atmosfera de obrigação e ao mesmo tempo de liberdade, de tal modo que a dádiva aceite e não retribuída torna inferior aquele que a aceitou” (Fernandes, op.cit.:73).

Documentos relacionados