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CAPÍTULO 2 – Nas tramas do paternalismo: Mulheres e menores como mão de obra

2.4 Associação dos Operários da América Fabril

Desde meados do século XIX, diversas modalidades de práticas associativas foram sendo criadas por trabalhadores, tais como, grêmios recreativos, cooperativas, associações mutualistas, sindicatos, entre outras. Destas, destacaremos as sociedades de ajuda mútua, que tinham como intuito assegurar seus sócios dos riscos que enfrentavam devido às suas condições de trabalho, providenciando ajuda financeira em caso de doença, acidente, invalidez, prisão, velhice e falecimento. Ocorreu também dessas associações ampliarem suas formas de atuação para além do caráter assistencialista e,

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com isso, publicaram jornais e livros, organizaram espaços de ensino, promoveram festas, etc355.

Segundo Ronaldo Pereira de Jesus, as sociedades mutualistas organizavam-se, basicamente, em torno de quatro princípios fundamentais: “liberdade, democracia, independência e solidariedade”356. Na prática, tais princípios se manifestavam na liberdade que cada indivíduo tinha de filiar-se ou desassociar-se; nas decisões serem tomadas após votação considerando que cada sócio teria direito a um voto; na autonomia e identidade própria de cada sociedade frente a outras formas de associação; e no intuito dessas associações não terem fins lucrativos e sim proporcionarem auxílios a um grupo de pessoas que se organizavam em torno desses espaços de ajuda mútua357.

Ainda, de acordo com o mesmo autor, o mutualismo tornou-se um dos principais componentes da “cultura associativa” dos trabalhadores durante a segunda metade do século XIX e o início do XX. Ronaldo de Jesus entende como “cultura associativa” as diversas práticas referentes ao ato de associar-se difundidas entre a classe trabalhadora358.

Apesar da forte presença na cultura da classe trabalhadora, Cláudia Viscardi defende que as mutuais raramente se constituíam em bases igualitárias. Ainda que o objetivo dessas associações fosse a ajuda mútua, eram espaços hierarquizados e excludentes. Havia critérios que afastavam determinados indivíduos da filiação a essas sociedades como os etários, raciais, de gênero, categoria profissional, entre outros. A autora argumenta que tais critérios de segregação se manifestaram, com maior ou menor ênfase, dependendo do país359.

No caso do Brasil, Viscardi identifica quatro categorias de exclusão: profissional, por gênero, etária e por nacionalidade. É importante destacar que a segregação por gênero apresentava-se como a mais visível. Espaços como corporações de ofícios, irmandades, associações mutualistas e demais sociedades constituíam-se em torno de alguns valores, tal como o da masculinidade. As mulheres que, ao longo do século XIX, não participavam massivamente do mercado de trabalho “produtivo”,

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JESUS, Ronaldo Pereira de. Historiografia sobre mutualismo (1875-1914) em Portugal e no Brasil.

Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42, n. 3, 2016. p. 1145.

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JESUS, Ronaldo Pereira de, op cit, p. 1146. 357

Ibidem. 358

Ibidem. 359

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Estratégias populares de sobrevivência: o mutualismo no Rio de Janeiro republicano. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 58, 2009. p. 299.

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enfrentavam ainda barreiras para partilhar desses espaços de sociabilidade e ajuda mútua360.

A partir da segunda metade do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro concentrou o maior número de associações mutuais do país. Número que se ampliou significativamente durante as duas primeiras décadas do século XX, possivelmente, entre 170 e 346 sociedades. Quanto ao número de associados, pode-se afirmar que giravam em torno de 510 a 715 sócios, números considerados altos se comparado com outras cidades brasileiras, mas, proporcional na comparação com algumas capitais no exterior361.

É possível pensar que o recurso a associações de ajuda mútua significou para os trabalhadores, que integraram esses espaços, uma importante forma de manutenção de valores partilhados pela classe trabalhadora, como, voluntarismo, autonomia e respeitabilidade. Os benefícios concedidos pelas mutuais, em casos de necessidade, eram tidos como direitos conquistados e não como favores recebidos362.

Dentre as associações mutualistas formadas por trabalhadores têxteis, destacamos a Associação dos Operários da América Fabril, que apesar de ser constituída por trabalhadores, era oriunda de incentivo patronal e se apresentava como proposta oferecida pela Companhia América Fabril para que seu operariado se beneficiasse de uma rede assistencialista e se afastasse da filiação à União dos Operários em Fábricas de Tecidos, criada em 1917, que apresentava como objetivos, em seus estatutos:

a) Trabalhar para o desenvolvimento moral, intelectual e material da classe, defendendo obrigatoriamente os seus associados nos limites da ordem e do direito; defendendo-os em caso de perseguição e injustiças, e prestando-lhes os recursos morais e judiciários que forem necessários de acordo com o serviço de advocacia.

b) Regulamentar e melhorar as condições de trabalho nas fabricas de tecidos; empregar todos os meios necessários para dirimir quaisquer dúvidas controvérsias e questões sobre o mesmo363.

A União, então, propunha defender a autonomia da classe trabalhadora e contribuir para a conquista das melhores condições de trabalho nas fábricas de tecidos.

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VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro, op cit, pp. 299-300. 361

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro, op cit, p. 304. 362

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro, op cit, pp. 311-312. 363

Arquivo Nacional. Estatutos da União dos Operários em Fábricas de Tecidos. Fundo: Primeiro Ofício de Registros de Títulos e documentos do Rio de Janeiro. Série: Estatutos de Sociedade Civil. Notação: V- 61. Registro n°.910. 24 de janeiro de 1918, p.1.

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Princípios que, possivelmente, colocariam em conflito a relação patrão/operariado e iriam de encontro com a ordem por meio da disciplina proposta pelos industriais.

Em um período no qual as associações operárias promoveram grandes festivais (1919-1922), a UOFT teve forte destaque entre estas com seu festival operário de maio de 1920. Esses eventos destinados ao público trabalhador e suas famílias, não só aos seus associados, tinham o intuito de promover a união em torno da associação, conseguir novos/as sócios/as e angariar fundos. Como atrações, ocorreram, no festival da União dos Operários em Fábricas de Tecidos em 1920, partida de futebol, luta romana, peças teatrais, espetáculos acrobáticos e discurso do deputado Maurício de Lacerda364.

A implementação da AOAF, em 1919, deve ser compreendida como uma reação da administração da Companhia América Fabril às pressões exercidas pelos/as operários/as por meio de greves e levantes de 1917 a 1919 e como forma de frear, pelo menos em relação aos trabalhadores de suas fábricas, a forte influência que a UOFT estava tendo entre o operariado têxtil. Em cada fábrica havia um comitê composto de operários empregados nestas e filiados à entidade, sendo cada comitê subordinado a uma junta. A sede da associação se localizava próxima à Fábrica Cruzeiro, na Rua Barão de Mesquita, nº 824. A partir de 1920, com a incorporação da Companhia Carioca à América Fabril, a incorporada também formou um comitê.

A AOAF também atribuiu um caráter unificador aos trabalhadores da Companhia América Fabril, pois se esta empresa possuía fábricas distantes umas das outras, localizadas na cidade de Magé e nas zonas sul e norte e na região portuária da cidade do Rio de Janeiro, a junta da associação reunia os comitês fabris sob uma mesma tutela e agrupava suas demandas na reunião geral.

Esta sociedade tinha cunho nitidamente assistencialista e propunha oferecer auxílios financeiros em caso de afastamento temporário de seus associados, mas para se tornar sócio, o/a operário/a tinha que estar em conformidade com a disciplina patronal e preencher certos requisitos, nesse caso, era preciso apresentar atestado de boa saúde e atestados de bons costumes e boa reputação fornecido pelas autoridades policiais. A questão política também era levada em consideração, sendo proibida a associação de

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BATALHA, Claudio H. M. . Cultura associativa no Rio de Janeiro da Primeira República. In: BATALHA, Claudio H. M.; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (Orgs.). Culturas de

classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.

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pertencentes a agremiações de caráter político, partidários do anarquismo, grevistas e expulsos do país de origem365.

Com a criação de tal associação, a companhia implementava uma estratégia para fortalecer mecanismos de integração entre empresa e trabalhadores/as, bem como, procurava afastar seus operários da sindicalização em associação fundada por trabalhadores têxteis. Nesse sentido, apostaram em uma prática de controle extensivo, visto que os critérios de admissão à AOAF restringiam os modos de atuação dos/as operários/as, mas, em contrapartida, procuraram minimizar as précarias condições de trabalho com a concessão de licenças remuneradas em casos de necessidades.

Cláudia Viscardi destaca duas modalidades de estratégias utilizadas pelos trabalhadores pobres como alternativa à pobreza, que não são necessariamente excludentes: a ajuda por parte de alguém que dispõe de bens que podem ser doados, relação que tende a ser verticalizada; e o recurso ao auxílio mútuo, na qual um grupo estabelece redes de colaboração, relação esta que tende a ser mais horizontalizada366. Como a própria autora ressalta, tais modalidades podem coexistir em uma mesma associação e é o que observamos na AOAF. Essa sociedade fora criada por incentivo patronal e suas regras de admissão de sócios estabeleciam relação direta com as normas de contratação da companhia, no entanto, os cargos de direção eram ocupados por trabalhadores do estabelecimento e a gestão da associação ficava por conta de sua diretoria.

A associação também apresentava perfil recreativo e, portanto, promovia bailes regulares; encontros dançantes com orquestras, que aconteciam, principalmente nas fábricas Carioca e Cruzeiro; campeonatos esportivos; peças de teatro formadas pelos trabalhadores, entre outras atividades recreativas367.

No tocante às questões assistenciais, mediante o pagamento de uma mensalidade, os sócios, em geral, tinham direito a auxílio-doença que variava de 30$ a 100$ e auxílio funeral, enquanto as mulheres, além destes, contavam com auxílio de 100$ em caso de parto, casamento, proteção moral e material aos órfãos com menos de 14 anos e para as viúvas inválidas368.

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WEID, Elisabeth von der; BASTOS, Ana Marta Rodrigues, op cit, p.188/190. 366

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro, op cit, p. 293. 367

PIMENTA, Ricardo Medeiros. Retalhos de memórias: trabalho e identidade nas falas de operários têxteis do Rio de Janeiro. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação de Memória Social, 2005. pp. 23-24.

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Assim, a companhia por meio de tal associação procurou disciplinar sua mão de obra e em contrapartida os/as sócios/as recebiam uma ajuda financeira em ocasiões de afastamento. No caso das mulheres, estas poderiam receber o auxílio para: custear o casamento e manter o vínculo com a fábrica para regressar mesmo depois de casada; dar à luz, se afastar por um breve período e retornar ao trabalho com o recém-nascido já que a Fábrica Cruzeiro passou a possuir creche a partir de 1923; manter órfãos menores de 14 anos; se manter, se fossem viúvas inválidas.

É importante mencionar o interesse da companhia na afiliação de suas operárias, com a concessão de licenças remuneradas exclusivas para elas. Cláudia Viscardi argumenta que, em torno do valor da masculinidade, as sociedades associativas discriminaram a participação das mulheres durante a segunda metade do século XIX e décadas iniciais do XX369. Contudo, sendo o setor têxtil um ramo com considerável emprego de mão de obra feminina e a AOAF, uma associação de incentivo patronal, era interesse para a companhia que o maior número de operários se filiasse a tal associação, o que incluía as mulheres trabalhadoras.

Nesse sentido, tal recurso assistencialista funcionou como uma forma de tornar atrativa para as operárias a permanência no trabalho das fábricas da CAF, mesmo depois do casamento e da chegada dos filhos. Sendo assim, utilizamos o livro de atas das reuniões da AOAF e destacamos alguns trechos:

Comite Cruzeiro – dezenove admissões sendo os seguintes Joanna Pereira Miranda, Olvino Henrique Amaral, Catharina Jesus Silva, Maria da Silva Amarini,Eulina Tavares, Maria Bento Barboza, Maria da Silva, Maria de Lourdes Andrade, Bayleu Baptista de Almeida, Alzira Costa Brites, Jose Augusto Vasconcellos, Arlinda Vieira, Francisco Balthazar,Paulo Simoni, Santos Domingos, Virgilio Lima de Oliveira, Antonio Martins, sendo todos aceitos. [...] Comite Carioca _ sete requerimentos para admissões sendo os seguintes, Philomena Garcia, Hilda Ferreira, Alzira Ferreira, Perpetua Simões, Maria Joaquina da Silva, Nezia Maria das Dores, sendo todas aceitas, dois ditos para readmissões sendo os seguintes, Porphirir Barboza e Azazarias Ferreira Campos, também reaceitos, [...]370.

Ressaltamos esse trecho como um exemplo de que as operárias dessas fábricas aderiram consideravelmente à associação como uma forma de conseguir licença remunerada em virtude de casamento, parto, doença, etc. A seguir, apresentamos alguns exemplos de requerimentos das operárias:

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VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro, op cit, pp. 299-301. 370

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Livro de Atas da Associação dos Operários da América Fabril. 1926-1929. 19/05/1926. p. 6.

150 Acta da sessão da Directoria realizada aos doze dias do mez de maio de mil novecentos e vinte e seis, [...]. Comite Cruzeiro – Um requerimento para auxilio de casamento de Octavia Justiniam, despachado com cem mil reis. Um dito de Julieta Braga para parto despachado, com cem mil reis. Trez ditos por doença sendo os seguintes, Alzira de Andrade despachado com cincoenta mil por mez. Elvira Alvez despachado com cincoenta mil reis por mez. [Armmda] Jose Penna despachado com sessenta mil reis por mez.

Acta da sessão da Directoria, [...] aos dois dias do mez de Fevereiro de mil novecentos e vinte e sete.[...] Comite Carioca – Maria Cerrulo, pedindo auxilio por doença, despachado com trinta mil reis (30$000). Guilhermina Teixeira, Emilia Penetilho, Hercelina Pereira Pinto, Laura Orminda do Nascimento e Paula Maria de Carvalho, pedindo auxilio em virtude parto, despachados com 100$000 (cem mil reis) cada um. Francisca Bendia, pedindo auxilio para casamento, despachado com 100$000 (cem mil reis)371.

Nesses trechos podemos perceber que as operárias se utilizaram dos diversos auxílios prestados pela associação, como, para casamento, parto e doença. Este último variava de acordo com a doença, visto que uma operária recebeu 50$ e outra 60$. Em certas sessões, o auxílio para parto foi consideravelmente solicitado, como no segundo exemplo, em que 5 trabalhadoras o solicitaram na mesma reunião.

Assim, ao passo que a AOAF procurava limitar os modos de reivindicação de seus associados, proibindo o acesso de grevistas, partidários do anarquismo e integrantes de associações de caráter político e requisitando atestado de boa conduta, também inseria seu operariado em uma rede assistencialista que oferecia alguma segurança para a força de trabalho da Companhia América Fabril no caso de doença, invalidez ou falecimento e procurava ainda assegurar que as operárias retornassem ao trabalho depois do casamento e de dar à luz.