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CAPÍTULO 3: Dentro e fora das fábricas: dinâmicas do processo produtivo e relações

3.2 Outros desdobramentos do processo produtivo: relação operário/a

3.2.2 Lançadeiras “de chupar” e danos à saúde

Além de acidentes, a relação operário/máquina gerava outras consequências, uma delas eram as doenças, sobretudo, a tuberculose. É importante ressaltar, como já foi mencionado, que o próprio ambiente das fábricas de tecidos poderia acarretar em enfermidades. O dr. Antonio Ferrari, membro da Academia de Medicina, após visitar fábricas de tecidos, elaborou um relatório para a Liga Brasileira contra a Tuberculose, que, entre outras questões, abordava as condições de tais espaços de trabalho:

Visitou algumas fabricas de tecelagem, e viu que a média das horas de trabalho diurno é de nove horas e meia e dez e meia, e de quatro horas de trabalho nocturno, o que representa a média de 13 horas e meia de trabalho exhaustivo, exercidos contra todos os preceitos da hygiene. Entre os operários forçados a trabalho tão violento, contam-se as mulheres e as creanças.

Em algumas salas de trabalho, o dr. Ferrari sentiu penosa sensação, provocada pela confinação do ar atmospherico, saturado de poeiras.

[...]

Em algumas fabricas, os machinismos estão excessivamente accumulados, em uma dellas foi notado que as aberturas eram tão pequenas e tão altamente situadas que mais parecia uma prisão do que uma officina de vida e de trabalho; em outras, devido ao augmento de consumo, fizeram installações sobre o forro, e ahi trabalhavam dezenas de operarios, sob a acção de uma temperatura que em alguns dias, attinge a 43º!466

Dr. Antonio Ferrari argumentou no relatório que as próprias condições das fábricas, com salas fechadas, quentes, com partículas de fios e poeiras no ar; e as condições de trabalho, com extensas horas de serviço nesses ambientes contribuíam para a propagação da tuberculose. Um outro elemento para a disseminação da doença destacado no documento foi a chamada lançadeira “de chupar”. Teve menção, então, a preocupação com a peça que exigia dos/as operários/as a sucção:

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192 Em algumas fabricas de algodão o dr. Ferrari foi encontrar a celebre lançadeira de chupar, instrumento perigosissimo, porque não só é um propagador infallivel da tuberculose, mas tambem da siphilis. Essa lançadeira tem um orifício no qual os operarios collocam os labios, para, por meio da absorpção do ar fazer passar o fio com que tem de trabalhar. Este serviço é feito sempre que ha necessidade de preparar a lançadeira, isto é, inumeras vezes por dia.

De cada vez que a operaria produz que a absorpção do ar, ou por outras palavras, sempre que dá um chupão no ponto da lançadeira por onde ha de passar o fio, absorve poeiras que vão directamente aos pulmões, ao passo que, servindo as lançadeiras para diversos operarios, ellas vão transmittindo as doenças de uns para outros, pelos pontos onde têm que collocar os labios467.

O relatório da Liga Brasileira contra a Tuberculose chamava atenção para os perigos existentes na utilização dessas lançadeiras de chupar nas fábricas de tecidos, visto que se o próprio ato de manusear a peça, absorvendo ar de seu orifício para que o fio pudesse passar, já era nocivo à saúde, em decorrência de que na sucção partículas de poeiras e matérias-primas poderiam ser levadas ao pulmão, ainda deve ser acrescentado a isso as diversas vezes em que tal ato era exigido durante as longas jornadas de trabalho. Deve ser levado em consideração, inclusive, que diferentes operários/as poderiam utilizar a mesma lançadeira, o que determinaria a proliferação de doenças entre tais trabalhadores.

Em 1911, a Academia de Medicina, em uma de suas sessões, cobrou providências do governo acerca das péssimas condições sanitárias a que trabalhadores/as estavam expostas em fábricas da Capital Federal. Novamente o Dr. Antonio Ferrari procurou se posicionar acerca dos ambientes insalubres das fábricas da Capital Federal, desta vez, dando ênfase ao trabalho das mulheres e de menores. Aproveitou ainda a ocasião para denunciar o uso da lançadeira de chupar nos estabelecimentos têxteis:

Um grande numero das nossas fabricas ainda obriga seus operarios tecelões ao uso de uma espula obsoleta (determinada lançadeira de chupar), que pelos seus damnos já foram condemados nos paizes da Europa, onde o trabalho é regulamentado, existindo lançadeiras aperfeiçoadas, que facilitam o trabalho e evitam as condições fataes de contagio transmittido pela condemnada espula, a nefasta lançadeira de chupar, ...

A necessidade da substituição desse instrumento está na consciencia dos industriaes, tanto que algumas fabricas já o tem substituído, infelizmente em pequeno numero.

Dr. Ferrari ressaltava que já era do conhecimento dos industriais têxteis que a lançadeira era prejudicial à saúde do trabalhador/a, inclusive, destacava que alguns já

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haviam substituído tal equipamento pelo modelo mais higiênico, contudo, era a minoria que tomara tal iniciativa. Para embasar seu argumento, o médico ainda citou trechos de uma conferência proferida, em 1902, pelo Dr. Domingos Marques de Oliveira, médico da Fábrica Bangu, a pedido da Liga Contra a Tuberculose:

Agora, senhores, vou tratar de um objecto ou pensamento que considero um poderoso auxiliar da tuberculose e que, segundo, creio, ainda não foi considerado como tal: quero referir-me á lançadeira, que vós, tecelões, tanto manejaes, pela necessidade do vosso officio, e que é, em minha opinião, o maior propagador da tuberculose em uma fabrica de fiação e tecidos; pelo menos as minhas observações trazem-me esta convicção. Quasi todos os

tysicos de que tenho tratado nesta localidade, onde clinico ha 6 annos, são ou foram tecelões468.

Assim, percebe-se que desde os anos iniciais do século XX, os médicos, e, neste caso, um médico que trabalhava diretamente com operários/as de fábricas de tecidos, denunciavam que a lançadeira de chupar era um importante fator para o desenvolvimento da tuberculose nos/as trabalhadores/as e, além disso, uma propagadora da doença. Dr. Domingos Marques de Oliveira ressaltava que grande parte de seus pacientes tísicos da região de Bangu, foram tecelões. O trecho destacado não menciona, mas é importante afirmar que o próprio ambiente das salas de fiação e tecelagem e as jornadas exaustivas de trabalho eram fatores determinantes para a proliferação da tuberculose, sendo o uso da lançadeira apenas mais um elemento ao qual os/as operários/as têxteis estavam expostos.

Segundo Esmeralda Blanco B. de Moura, a preocupação com o uso desse tipo de lançadeira também esteve presente nos boletins oriundos das visitas do Departamento Estadual do Trabalho feitas em fábricas de São Paulo. Baseando-se em um relatório de 1914, a autora procurou expor os riscos do uso de tal peça:

“Chupando ou absorvendo o fio, o qual ter-se-á de fazer passar por um olheiro geralmente de porcelana, os operários da tecelagem arriscam-se continuamente a adquirir um sem número de moléstias. Freqüentemente são ainda as lançadeiras trocadas por outras já usadas por outros operários, agravando-se assim o perigo verificado”. Além disso, acha-se “a saúde do tecelão”, nesses estabelecimentos exposta à “absorção de poeiras e de detritos das matérias-primas, quando o fio empregado não for colorido e, quando for tinto, mais” ao “risco da intoxicação, lenta, porém certa”469.

Os inspetores do Departamento Estadual do Estado ainda alertavam para o fato de que, além dos perigos já apontados pelos médicos anteriormente, em virtude da

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Correio da Manhã. 18/08/1911.

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sucção de partículas de fios de algodão, caso estes fossem tingidos, corria o risco de provocar intoxicação, com o acúmulo da substância no organismo.

A periculosidade do uso da lançadeira também foi motivo de denúncia por parte de operários na imprensa. José Gomes da Silva, que assinou artigos na coluna operária do jornal A Epoca acerca das fábricas de tecidos, abordou o risco da lançadeira juntamente com as exaustivas condições de trabalho:

Para haver uma séria propaganda contra a terrivel tuberculose, é indispensavel acabar com o systema de lançadeiras de “chupar”, e o excesso de trabalho dos operarios nas fabricas e officinas, onde elles se acham, por longas horas, em trabalhos fatigantes.

[...]

Esse systema de chupar o fio e absorver o pó do algodão e as venenosas anilinas já devia ter sido abolido em todas as fabricas, para bem da saude publica e felicidade dos operarios.470

José Gomes da Silva chamava atenção, no artigo, de que para dar fim a proliferação da tuberculose em fábricas e oficinas era necessário, além de abolir as lançadeiras de chupar, melhorar as condições de trabalho de operários/as, reduzindo as horas de trabalho, visto que as ocupações nesses estabelecimentos exigiam demasiado desgaste físico.

O Sindicato dos Trabalhadores em Fábricas de Tecidos, em 1914, também se ocupou de denunciar o uso da lançadeira, mas a citou como mais um elemento entre os diversos fatores que contribuíam para a proliferação de doenças em fábricas de tecidos. Os dirigentes do sindicato encaminharam relatório ao Segundo Congresso Operário Brasileiro apontando que o próprio ambiente fabril era nocivo à saúde dos/as trabalhadores/as:

Imajine-se uma caza, onde trabalham centenas de operários, sem janelas, ou, quando as tem, elas não se abrem porque os patrões não querem que os seus escravos percam tempo a olhar para a rua. Si o ar não estivesse impuro com o pó que necessariamente fazem as maquinas ao manufaturarem a fazenda, não seria isso tão prejudicial á saude, embora não fosse precizamente hijienico;mas o ar viciados tanto pelo pó da fabricação como pela respiração recíproca e não renovada de centenas de pessoas, e junte-se a isso a sujidade da oficina, que jamais é lavada, e ainda mais nas lançadeiras que os tecelões são obrigados a chupar (hoje já ezistem lançadeiras que não ezijem esse auxilio bucal, mas não são ainda adotadas aqui, e o não serão enquanto os operarios não obrigarem os patrões a o fazerem), e junte-se ainda a tudo isso um trabalho mortificante e bárbaro, e temos dito, a traços largos, o que são os

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195 matadouros com que os industriais do século XX subjugam os escravos modernos, sujeitos ás suas ordens e ao seu ouro471.

Procurando chamar atenção para os ambientes fechados das fábricas, que tentava impedir o contato com o lado externo com o intuito de evitar a distração do/a trabalhador/a, o trecho do relatório tinha como intuito evidenciar que as próprias organizações das fábricas e suas condições de trabalho prejudicavam o/a operário/a. Ainda estabelece-se uma relação de semelhança entre a condição de escravidão e a do trabalhador livre que enfrentava situações degradantes para trabalhar na indústria no início do século XX. Nesse relatório, bem como no discurso do operário José Gomes da Silva, é ressaltado o desgaste físico em virtude das longas horas de trabalho em atividades exaustivas.

Tais condições degradantes de trabalho também foram evidenciadas por médicos para discutir a proliferação da tuberculose em estabelecimentos fabris. Contudo, em suas visitas a fábricas com o intuito de compor um relatório para a Liga contra a Tuberculose, o Dr. Antonio Ferrari percebeu que tal exploração assumia contornos específicos no caso das mulheres que iam além da incidência de tuberculose. Assim, em 1909, o médico expôs no relatório:

As operarias, entre as quaes muitas ainda na puberdade, obrigadas a um trabalho intensivo e de pé, é prohibido ter junto das machinas um pequeno banco ou cadeira, onde possam repousar da fadiga natural em posição estatica permanente, e dahi a frequencia do aborto entre gestantes.

Numa fabrica, soube que todas as operarias tinham abortado num dos mezes em que o trabalho se prolongou das 6:30 da manhã até as 10 horas da noite, representando um trabalho intensivo de 13 horas e meia. Muitas dessas mães pagaram com a vida a imposição e a imprevidencia das nossas leis.

Dr. Ferrari apontava que as atividades executadas nas fábricas eram tão desgastantes fisicamente que prejudicavam as operárias gestantes, provocando abortos nessas trabalhadoras. O médico ainda destacava a ausência de uma legislação que procurasse estabelecer normas específicas no caso de trabalhadoras gestantes.

Em outra oportunidade, ao discursar em uma sessão da Academia de Medicina, ocasião na qual procurou focalizar as condições do trabalho das mulheres e das crianças em fábricas da Capital Federal, o Dr. Antonio Ferrari chamou atenção, mais uma vez, para a incidência dos abortos:

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196 Algumas das fabricas de tecelagem desta capital, obrigam seus operarios a um trabalho excessivo, de treze horas e meia, trabalhando creanças e mulheres, desde ás 6:30 da manhã até ás 10:30 da noite, salvo as horas de refeição.

A mulher operaria é privada de ter um assento (banco ou cadeira), junto das machinas, onde possa repousar por alguns instantes, apezar de ser o ganho proporcionado ao trabalho.

Essa medida deshumana tem contribuido para determinar o aborto freqüente e graves enfermidades da mãe operaria.

[...]

O orador refere o depoimento expressivo de uma operaria que o veiu consultar:

“Teve 11 abortos depois que entrou para a fabrica. Nem um filho vingou mais; só tem um que já possuía quando entrou para o trabalho. Todas as suas

companheiras eram assim...”

Perguntando o dr. Ferrari por que ellas não levavam um banco para descansar nas fabricas, a operaria respondeu que já tinha havido quasi uma gréve, por ter uma assim feito, pelo que foi mal tratada pelo gerente – e dahi o motim472.

É possível pensar que Dr. Ferrari tenha exagerado quanto a referência ao número de abortos sofridos pela suposta operária que teria se consultado com ele, tal recurso pode ter sido utilizado para atrair a atenção dos demais médicos, presentes na sessão, para as condições de trabalho a que estavam submetidas as mulheres em fábricas. Torna-se importante mencionar ainda que após a longa de jornada de trabalho efetuado de pé, as mulheres operárias davam início à segunda jornada de trabalho, nesta etapa, executando as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos em casa. Assim, é digno de nota que a exploração feminina no trabalho não se esgotava em sua esfera produtiva, ou seja, nas fábricas, exercendo a mesma jornada que homens e menores, mas, acrescente-se a isso, a segunda jornada efetuada em sua esfera reprodutiva.

Segundo Mary Del Priore, no início do século XX, a preocupação sobre a natalidade apresentou-se como questão de interesse geral, tal problema estava diretamente relacionado ao desenvolvimento nacional e teve espaço nos debates dos homens públicos do período. Representantes da medicina e da política se articulavam na tentativa de prescrever normas para o comportamento reprodutivo, nesse sentido, “o aborto entrou na mira das autoridades”473.

É relevante atentar para o que aponta Margareth Rago de que o discurso do poder médico e jurídico incide para a construção da imagem feminina como naturalmente destinada à maternidade, o que tem forte eficácia na tentativa de excluir as

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Correio da Manhã. 18/08/1911.

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mulheres da organização do trabalho e do próprio espaço público474, já que tais espaços poderiam ser nocivos à constituição feminina e à capacidade reprodutiva. Nesse sentido, o médico Antonio Ferrari procurava chamar atenção de que na execução das tarefas nas fábricas, visto que a jornada era exercida de pé, sem pausas para descanso, sem poder sentar e com atividades que, muitas vezes, exigiam movimentação, as operárias gestantes poderiam ter a gravidez ameaçada por exercerem trabalhos exaustivos fisicamente.

Por outro lado, é preciso levar em consideração que para as mulheres trabalhadoras em difíceis condições financeiras e que tinham vários filhos, impedir o aumento da família poderia ser uma preocupação, já que a chegada de outro rebento poderia dificultar ainda mais as condições de sobrevivência. Assim, o recurso ao aborto por parte de operárias poderia representar uma tentativa de se afastar de condições mais precárias de vida.