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Os estudos de Foucault acerca do poder pastoral surgem a partir de uma preocupação acerca das questões entendidas como relações de governo. Foucault analisa o que seria essa modalidade de poder que, componente fundamental de uma rede complexa, veio a compor em grande parte as características daquilo que se entende por governo na modernidade e, assim, tendo grande importância também para compreendermos as características do que ele denominou biopolítica. Em outras palavras, o poder pastoral tem importância significativa na medida em que é uma das modalidades de técnicas de governo que compõem a racionalidade governamental moderna. Sua importância reside sobretudo no seu enfoque sobre a subjetividade e individualidade dos governados, posto que a pressuposição destas, ao tomar forma com a ideia da alma que deve ser salva, é imprescindível para o poder pastoral em suas origens mais antigas e será retomado de alguma forma pela modernidade. Esse poder pastoral também corresponde mais a uma relação de governo, na qual a função do pastor é inteiramente voltada para a vida das ovelhas e a sua relação com elas seria da ordem do cuidado, e menos à administração de um território, como é o caso do poder representado pela soberania.

Foucault procura restabelecer a história e as características principais dessa forma de exercício de poder baseada na função do pastor. Para tanto, ele procura uma definição mais

precisa do significado histórico da noção de governo. Por volta dos séculos XIII, XIV e XV, o termo tinha um sentido geral, referindo-se ao plano material, físico, espacial, um sentido de direção, tendo como objetivo avançar a si mesmo sobre um caminho, ou seja, governar referia-se a seguir uma rota ou fazer com que alguém ou algo seguisse uma rota; havia também o sentido de manutenção, de provimento da subsistência. Nesse momento, o governo não se referia ao Estado, ao território, à política, mas, antes, dizia respeito aos homens, se referia ao domínio exercido pelos indivíduos sobre si mesmos e sobre os outros. Ou seja, “quando se fala da cidade que se governa [...] não é a cidade como estrutura política, mas são as pessoas, indivíduos ou coletividades. O que se governa são os homens” (FOUCAULT,

2004b, p. 126, tradução nossa)121.

Foucault, buscando restabelecer a trajetória dessa forma de exercício do poder faz uma remissão do governo dos indivíduos ao oriente pré-cristão e também ao oriente cristão, época e local em que algo semelhante, o poder pastoral, se desenvolvia, modificando-se depois para a forma da direção de consciência e direção das almas. Na antiguidade, destacam- se as presenças de formas de exercício do poder pastoral no Egito antigo, na Assíria, na Mesopotâmia e entre os Hebreus, cada um desses povos sendo representativo de características específicas, mas que remetem ao tema do pastor. Apenas os Hebreus diferiam mais profundamente dos outros povos. Para os egípcios, os assírios e os mesopotâmios o próprio rei desempenha um papel de pastor dos homens, dos seus súditos. Na verdade, Deus o verdadeiro pastor dos homens é Deus, mas o rei desempenha também uma função de pastor, subordinado a Deus, tendo este confiado seu rebanho àquele. O rei é um tipo de representante imediato de Deus, um pastor designado por este para conduzir seu rebanho: “O pastorado é um tipo de relação fundamental entre Deus e os homens e o rei participa de alguma maneira nessa estrutura pastoral da relação entre Deus e os homens” (FOUCAULT, 2004b, p. 128,

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“Quand on parle de la ville qui se gouverne [...] n’est donc pas la ville comme structure politique, mais c’est bien les gens, individus ou collectivité. Ceux qu’on gouverne, ce sont les hommes”.

tradução nossa)122. Já para o povo hebreu, a situação se passa de maneira um pouco diferente. Para os hebreus a relação pastoral limita-se, em geral, a uma relação de obediência a Deus, em que apenas este é pastor, sendo pouco comum a metáfora do rei como pastor que deve conduzir seu rebanho: “A relação pastoral, em sua forma plena e em sua forma positiva, é então essencialmente a relação de Deus com os homens. É um poder de tipo religioso que tem seu princípio, seu fundamento, sua perfeição no poder que Deus exerce sobre seu povo”

(FOUCAULT, 2004b, p. 129, tradução nossa)123. Além disso, diferentemente das concepções

modernas da soberania, que pretendem que o poder se invista sobre um território, o poder pastoral é exercido sobre uma multiplicidade, uma multiplicidade em movimento. Deus é pastor, guia seu rebanho, provê o alimento, a subsistência, e tudo o que for necessário para o bem estar do seu povo. O famoso Salmo de Davi, aqui, parece o melhor exemplo: “O Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitar-me faz em pastos verdejantes; guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma; guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam” (Salmos 23:1-4).

O pastorado visa fundamentalmente o bem estar das ovelhas. Sua razão de ser é fazer o bem, o pastor deve ser benevolente. Mas, se para os hebreus o pastorado deve prover o bem estar do rebanho, a partir de um dado momento, e mais especificamente na tradição do cristianismo, sua função passará a ser também a de zelar pela salvação do rebanho. Isso se aproxima da forma do poder de soberania, já que o objetivo do soberano seria a “salvação” da pátria. Entretanto, no poder pastoral, esta salvação toma um sentido específico, que consiste fundamentalmente na subsistência, mas também na salvação eterna do rebanho: o pastor é

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“Le pastorat est un type de rapport fondamental entre Dieu et les hommes et le roi participe en quelque sorte à cette structure pastorale du rapport entre Dieu et les hommes”.

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“Le rapport pastoral, dans sa forme pleine et dans sa forme positive, est donc essentiellement le rapport de Dieu aux hommes. C’est un pouvoir de type religieux qui a son principe, son fondement, sa perfection dans le pouvoir que Dieu exerce sur son peuple”.

aquele que alimenta conduzindo aos bons pastos e assegurando que o rebanho coma de maneira a satisfazer suas necessidades e, além disso, aquele que orienta, que aconselha. O poder pastoral é um poder caracterizado pelo cuidado do pastor com suas ovelhas, para que elas não pereçam. Na verdade, é justamente isso o que diferencia um bom de um mau pastor. O pastor genuíno, à altura da missão confiada por Deus, é aquele que, de maneira autoabnegada, faz tudo pelo seu rebanho, dedica sua vida a suas ovelhas: “o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (João 10:11).

Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? Comeis a gordura, e vos vestis da lã; matais o cevado; mas não apascentais as ovelhas. A fraca não fortalecestes, a doente não curastes, a quebrada não ligastes, a desgarrada não tornastes a trazer, e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza. Assim se espalharam, por não haver pastor; e tornaram-se pasto a todas as feras do campo, porquanto se espalharam. As minhas ovelhas andaram desgarradas por todos os montes, e por todo alto outeiro; sim, as minhas ovelhas andaram espalhadas por toda a face da terra, sem haver quem as procurasse, ou as buscasse (Ezequiel 34:2-6).

Toma ainda para ti os instrumentos de um pastor insensato. Pois eis que suscitarei um pastor na terra, que não cuidará das que estão perecendo, não procurará as errantes, não curará a ferida, nem apascentará a sã; mas comerá a carne das gordas, e lhes despedaçará as unhas. Ai do pastor inútil, que abandona o rebanho! A espada lhe cairá sobre o braço e sobre o olho direito; o seu braço será de todo mirrado, e o seu olho direito será inteiramente escurecido (Zacarias 11:15-17).

“O pastor está a serviço do rebanho, ele deve servir de intermediário entre ele e as pastagens, o alimento, a salvação, o que implica que o poder pastoral, em si mesmo, é sempre

um bem” (FOUCAULT, 2004b, p. 132, tradução nossa)124. Nesse sentido, importante para a

compreensão do poder pastoral é também o que Foucault denominou paradoxo do pastor. O paradoxo do pastor consiste no fato de que este deve velar por todos e por cada um. Para dizer as coisas mais claramente, o pastor deve procurar garantir a salvação do rebanho todo, mas, para isso, precisa garantir a salvação de cada ovelha individualmente. Foucault menciona o exemplo de Moisés. Mas a parábola do novo testamento parece captar bem a ideia: “Qual de

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“Le pasteur est au service du troupeau, il doit servir d’inteermédiaire entre lui et les pâturages, la nourriture, le salut, ce qui implique que le pouvoir pastoral, en lui-même, est toujours un bien”.

vós é o homem que, possuindo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto, e não vai após a perdida até que a encontre? E achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo” (Lucas 15:4-5). O paradoxo reside justamente no fato de que, ainda que isso coloque em risco a salvação do rebanho, o pastor deve buscar a salvação de cada ovelha individualmente e vice-versa. O paradoxo se resumiria então assim: “sacrifício de um pelo todo, sacrifício do todo pelo um, que vai estar absolutamente no coração da problemática

cristã do pastorado” (FOUCAULT, 2004b, p. 133, tradução nossa)125. Foucault utiliza-se da

expressão omnes et singulatim, o todo e cada um, a coletividade e o indivíduo (Cf. LEWIS; SHORT, 1879). É do que o pastor precisa cuidar: da salvação do rebanho como um todo e de cada uma de suas ovelhas. Com a disseminação do cristianismo no ocidente, Foucault afirma que a Igreja cristã foi a responsável pela introdução do poder pastoral e sua consequente institucionalização, no sentido em que a política como pastoral é uma forma específica que surgiu com o domínio romano e a correlativa instauração do cristianismo como religião oficial do império, transferindo a salvação eterna dos homens e o cuidado dos assuntos terrenos (complexamente relacionados, variando conforme a época) aos cuidados de alguém que o faz em seu lugar, que se sacrifica por ele mediante sua obediência completa, compreendida como um bem: “Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil” (Hebreus 13:17).

A metáfora do pastor, apesar de não ausente entre os gregos, era uma concepção marginal dentre as diferentes visões acerca da política. Havia uma ideia presente nos pitagóricos, por exemplo, para os quais a norma (nomos), tendo uma relação com o pastor (nomeus), tinha por consequência fazer com que o magistrado, aquele que tinha o poder decisório, fosse tido como um pastor que devia conduzir seu povo por um bom caminho. Há

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“sacrifice de l’un pour le tout, sacrifice du tout opur l’un, qui va être absolument au coeur de la problématique chrétienne du pastorat”.

também a referência ao tema do pastor na República de Platão, onde Trasímaco evoca a metáfora do pastor – dando a ideia de que fosse algo comum em seu tempo –, mas afirmando que o pastor seria aquele que age em função de seu egoísmo, em busca de obter vantagens. Já no diálogo O político Platão se recusa a caracterizar o homem político como pastor, mas, diferente disso, compara-o ao tecelão. A figura do pastor existe, as atividades de pastor existem, e podem ser atribuídas a diversas situações diferentes, como é o caso do médico ou do pedagogo, por exemplo; entretanto, é uma tarefa que não pode ser atribuída ao rei, cujas funções demandam outras competências, mais importantes. Além disso, do ponto de vista daqueles que são governados, para os gregos, a obediência, diferentemente do que acontece no cristianismo, por si mesma jamais poderia ser capaz de constituir um bem, sendo admissível no máximo como um meio para se alcançar a saúde (no caso do médico), o controle de si mesmo (no caso do mestre) etc.

Em resumo, para Foucault o pastorado começou no oriente pré-cristão, desenvolvendo-se no interior do cristianismo e sendo incorporado politicamente nas

instituições cristãs126. Evidentemente, cristianismo refere-se a uma multiplicidade de práticas,

muito diversas entre si, ao longo da história. O que Foucault quer dizer é que o pastorado como matriz de procedimentos de governo dos homens, isto é, o pastorado como pano de fundo sobre o qual começará a se esboçar a nova racionalidade governamental que moldará os Estados modernos nascentes começa com um processo

[...] pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como Igreja, isto é, como uma instituição que pretende governar os homens em sua vida cotidiana com o pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso à escala não somente de um grupo definido, não somente de uma cidade ou de um Estado, mas da humanidade inteira. Uma religião que pretende assim governar cotidianamente os homens em sua vida real sob pretexto de sua salvação e à escala da humanidade, é isso a Igreja e não se tem nenhum outro exemplo na história das sociedades. Creio que se forma aí, com essa institucionalização de uma religião como Igreja, se forma

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SANTOS (2010) faz uma análise detida da discussão proposta por Foucault em torno do poder pastoral. Ali pode ser encontrada, com minúcias, uma exposição detalhada do problema.

aí, e devo dizer muito rapidamente, pelo menos em suas grandes linhas, um dispositivo de poder como não se encontra em nenhuma outra parte, um dispositivo de poder que não cessou de se desenvolver e de se refinar durante quinze séculos, digamos depois dos séculos II e III depois de Jesus Cristo até o século XVIII de nossa era. Esse poder pastoral, absolutamente ligado à organização de uma religião como Igreja, a religião cristã como Igreja cristã, esse poder pastoral, sem dúvida é consideravelmente transformado no curso desses quinze séculos de história. Sem dúvida ele foi removido, deslocado, transformado, integrado a formas diversas, mas no fundo ele não foi jamais verdadeiramente abolido. E quando me coloco no século XVIII como fim da idade pastoral, é provável que eu me engane ainda, pois de fato o poder pastoral em sua tipologia, em sua organização, em seu modo de funcionamento, o poder pastoral que é exercido como poder é sem dúvida alguma coisa da qual nós não nos libertamos ainda (FOUCAULT, 2004b, p. 151, tradução

nossa)127.