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Em sua genealogia, Foucault procura escapar a uma teoria geral do poder, buscando evidenciar a complexidade, o entrelaçamento, as implicações recíprocas de fenômenos particulares existentes na realidade em vez de reuni-los todos sob um princípio unificador. Tudo isso, como vimos, através da avaliação das práticas, do que foi levado a cabo em dado momento histórico. Mesmo quando se trata de analisar um corpus teórico, como o filósofo faz com o liberalismo em seu curso de 1978-1979 (FOUCAULT, 2004a), o que se procura é compreender a complexa relação que aquelas teorias mantinham com seu pano de fundo histórico, como aquelas teorias se ligavam a problemas mais gerais colocados por aquela sociedade e como as tentativas de soluções a esses problemas estavam imbricados com as ações empreendidas naquele momento. Ou seja, não há uma sobredeterminação da teoria

regimes políticos, sistemas econômicos, ambiente de competição internacional), como as dinâmicas internas e as disputas de poder interiores ao próprio campo (prestígio acadêmico, teses inovadoras, publicações...) e de sua interação.

em relação às práticas, nem o inverso acontece; o que há são teorias e práticas funcionando e se alimentando mutuamente num contexto específico. Nessa medida, também é difícil, por exemplo, localizar Foucault precisamente em um domínio disciplinar, já que suas análises procuram abordar aspectos mais diversos de um mesmo assunto, de um mesmo problema. Assim, a genealogia seria uma “espécie de empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torná-los livres, isto é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico” (FOUCAULT, 1999, p. 15).

A filosofia de Foucault, através de sua abordagem das relações de poder, toma um caráter eminentemente político. Contudo, no que diz respeito às coisas que habitualmente são tratadas como sendo da política, não há em seus textos algo que se encontra geralmente ao longo da história da filosofia: a busca do fundamento e legitimidade do exercício do poder político. Não há a tentativa de formulação de um fundamento atemporal que caracterize o exercício legítimo do poder, que estabeleça as bases para um justo exercício do poder, um ideal a ser perseguido. Desde Platão tem havido uma busca constante do estabelecimento da

justiça94 e, por conseguinte, do que seria um justo ordenamento político. Esta tradição, passando pelos teóricos modernos que procuraram, em grande medida, localizar a soberania política em um contrato estabelecido entre as diferentes partes envolvidas, chega até, por exemplo, John Rawls, que, retomando e alinhando-se à teoria contratualista, tenta estabelecer quais deveriam ser os princípios orientadores de um ordenamento político justo fundando-os sobre sujeitos originários, anistóricos, sobre princípios como que localizados fora do espaço e

do tempo95. Foucault, diferentemente, apesar de não negar a necessidade de se pensar em

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Para uma exposição das principais teorias acerca da justiça, Cf. MAFFETTONE; VECA, 2005.

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Rawls, em um texto do início da década de 1970 e considerado já clássico, Uma teoria da justiça, procura estabelecer os princípios que deveriam ordenar uma sociedade justa. Para tanto, lança mão de várias noções, dentre elas a ideia do véu de ignorância, que consiste numa situação hipotética na qual os sujeitos, numa situação de desconhecimento em relação às suas posições/disposições no campo social no momento do estabelecimento do contrato e das conseqüências advindas de suas escolhas, definiriam os princípios que deveriam reger o ordenamento social, as instituições etc. (RAWLS, 2002). São interessantes as observações críticas de John Rajchman sobre a persistência do “sujeito mítico da psicologia transcendental” na filosofia

termos de justiça ou da elaboração de alguma noção que sirva para orientar nossas escolhas políticas, não se detém em pensar essas categorias, pois não pretende desempenhar o papel de “filósofo legislador” ou “conselheiro”: o que ele busca é pensar a política a partir das experiências forjadas pelos indivíduos e grupos, a partir de experiências ensejadas por

problemas colocados em lugares e épocas específicos; é restabelecer as práticas em sua

efetividade, mostrar como a política funcionou (e tem funcionado) historicamente, a fim de nos situarmos e então podermos orientar nossa ação presente. Se ele faz suas escolhas morais, na medida em que seu posicionamento em cada circunstância de seu engajamento pessoal é em maior ou menor medida identificável, não as prescreve como panaceia. Sua genealogia, nesse sentido, seria uma ferramenta intelectual capaz de orientar-nos politicamente através da crítica para que pudéssemos estabelecer resistências, outras experiências políticas, a partir do conhecimento do estado em que estamos; não oferece os critérios que devem orientar as escolhas, mas apenas os instrumentos conceituais que podem servir para orientar o diagnóstico. Nota bene: Foucault procura fornecer meios para orientar a ação, mas não na forma de princípios baseados em considerações abstratas; ao contrário, esses instrumentos são forjados a partir da construção de narrativas que capazes de descrever o caminho percorrido pelos objetos em questão, denodando as teias discursivas e eventuais que conduziram ao estado atual de coisas. Como escreveu Jean-Pierre Faye (2009, p.152) em seu livro sobre as

política, e especificamente na filosofia política de tradição analítica, em detrimento do tipo de análise histórica como a empreendida por Foucault: “[Na tradição analítica] Existem numerosas correntes que defendem não ser ‘a mente’ central para a ‘epistemologia’ e rejeitam o que Strawson chamou ‘o sujeito mítico da psicologia transcendental’. De fato, é frequentemente atribuído a Frege o início do paradigma analítico, precisamente porque depurou a filosofia do ‘psicologismo’ e dirigiu-a para uma análise formal da linguagem e da lógica. [...] entretanto, os filósofos, ao banirem ‘a mente’ da reflexão epistemológica, preservaram as finalidades intelectuais básicas de Kant, ao mesmo tempo que as subtraíam às implicações éticas. No final das contas, ninguém se surpreende por encontrar o sujeito kantiano em filosofia moral; ninguém critica o ‘sujeito mítico da psicologia transcendental’ na discussão de Rawls sobre uma posição original em que os sujeitos fazem um contrato mútuo sem saber quem são. Assim, a ‘purgação’ da ética do sujeito realizada por Foucault, que encontra a liberdade não nas obrigações mútuas de agentes racionais de obedecerem a leis morais universais, mas em nossa real capacidade de mudar as práticas em que somos constituídos ou nos constituímos como sujeitos morais, parece irracionalista até mesmo para aqueles que compartilham do desejo de Foucault de livrar a epistemologia do sujeito transcendental”(RAJCHMAN, 1987, p. 90). Para uma discussão das obras de Foucault e de Rawls e uma avaliação crítica da contribuição de ambas para a política, além de uma comparação e mesmo aproximação entre os autores, Cf. MOSS, 1998.

linguagens totalitárias: “E eis o que importa: pelo relato que dá conta da maneira pela qual se fez aceitável a opressão, começa a libertação”.

Privilegia-se, portanto um trabalho analítico, uma analítica do poder em

detrimento de uma teoria96 do poder. Do ponto de vista da analítica do poder não há algo

como o poder, com propriedades substanciais. O poder não é algo que existe por si só na realidade e que se detém ou que se cede em favor de outrem ou do bem próprio e/ou coletivo,

não é algo com existência independente97. Diferentemente, o filósofo concebe o poder como

tensão, como relações. O poder consiste em relações de força que se estabelecem entre sujeitos. Procura-se, portanto, não analisar “[...] o Poder com um ‘P’ maiúsculo, nem mesmo as instituições de poder ou as formas gerais institucionais de dominação, mas estudar as técnicas e procedimentos pelos quais se empreende conduzir a conduta dos outros”

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Conforme já mencionado sobre o ceticismo e o nominalismo de Foucault. Ele rejeita uma leitura totalizante, abrangente, ressaltando sempre o caráter parcial, provisório e não universalizável de seus conceitos. Assim, “para ele, toda teoria é provisória, acidental, dependente de um estado de desenvolvimento da pesquisa que aceita seus limites, seu inacabado, sua parcialidade, formulando conceitos que clarificam os dados – organizando-os, explicitando suas inter-relações, desenvolvendo implicações – mas que, em seguida, são revistos, reformulados, substituídos a partir de novo material trabalhado. Nesse sentido, nem a arqueologia, nem, sobretudo, a genealogia têm por objetivo fundar uma ciência, construir uma teoria ou se constituir como sistema; o programa que elas formulam é o de realizar análises fragmentárias e transformáveis” (MACHADO, 2007, p. XI). Contudo, parece-nos, como nota Terrel (2010), entre outros (Cf. ADVERSE, 2010; GORDON, 1991; BONNAFOUS-BOUCHER, 2001), apesar da recusa de estabelecer uma teoria do poder, as análises contidas nos cursos de 1978 e 1979 conteriam um forte caráter teórico, revelado por certa definição filosófica do poder e sua correlativa reflexão em torno da liberdade orientada pelo diálogo travado com determinado corpus teórico, o que, como notam aqueles autores, o inseriria numa tradição de reflexão característica da filosofia política. Quer dizer, sua crítica histórico-filosófica da razão política se fundamentaria numa concepção de poder que, ela mesma, assumiria uma forma mais geral, como revela sua definição tardia do poder como condução de condutas (FOUCAULT, 1995a). Há portanto a recusa (filosófica) de uma forma de abordar os problemas em termos transcendentes, apoiados em sujeitos situados fora da história e em uma concepção do poder de tipo substancialista, apesar de não parecer que Foucault se distancie completamente de uma teorização sobre a política nesse momento. Trata-se de uma teoria historicamente fundada.

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Foucault afirma então que “o poder não é da ordem do consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns (o que não impede que o consentimento possa ser uma condição para que a relação de poder exista e se mantenha); a relação de poder pode ser o efeito de um consentimento anterior ou permanente; ela não é, em sua própria natureza, a manifestação de um consenso” (FOUCAULT, 1995a, p. 243). Complementa Machado que “[...] suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2007, p. X).

(FOUCAULT, 2009, p. 5, tradução nossa)98. Ao conceber o poder em termos de exercício e não em termos de substância ou essência, Foucault caracteriza-o como a possibilidade de se empreender ações sobre as ações dos outros. O poder não exclui a possibilidade de um contrato ou de um consentimento, utilizando-se de fato muitas vezes desses recursos, embora não se restrinja a essas formas; também não é da ordem da violência simplesmente. No livro

Surveiller et punir [Vigiar e punir] Foucault ressalta que analisar o investimento político dos

corpos e a microfísica do poder supõe uma renúncia no que concerne ao poder como essência e à oposição violência-ideologia, à metáfora do poder como propriedade, ao modelo do contrato ou da conquista e, no que concerne ao saber, uma renúncia à oposição entre o que é interessado e desinteressado, ao modelo do conhecimento e ao primado do sujeito (FOUCAULT, 1975, p.32-33).

O filósofo evita também tratar a questão do poder em termos de repressão: as relações de poder são muito mais complexas do que simplesmente repressivas. Elas podem também assumir a forma da repressão, mas não se reduzem jamais a ela. Foucault tratará especificamente dessas questões em vários momentos, e procurará sempre desvincular sua concepção do poder daquelas teorias que pensam o poder em termos apenas negativos (como sendo sempre um mal), de repressão, e para as quais, como que suposta estaria a ideia de que haveria algo como uma natureza indomada do sujeito, essencialmente mais livre e verdadeira, o qual, ao libertar-se das amarras do poder, podendo dar livre vazão à sua vontade, ao seu desejo, seria finalmente livre. Em suma, Foucault opõe ao que chama de hipótese repressiva uma concepção do poder para a qual este funcionaria não pura e simplesmente na forma da repressão, mas através da produção, da produção de comportamentos, de pensamentos, de realidades, de sujeitos e objetos.

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“[...] le Pouvoir avec un ‘P’ majuscule, même pas les institutions de pouvoir ou les formes genérales ou institutionelles de domination, mais à étudier les techniques et procédures par lesquelles on entreprend de conduire la conduite des autres”.