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O racismo e mais especificamente o racismo de Estado são componentes importantes da biopolítica na caracterização de Foucault. O filósofo trata do tema do racismo de maneira mais detida em cursos e escritos de 1976, ano considerado por alguns intérpretes

como decisivo para as pesquisas do filósofo208. Em sua Histoire de la sexualité ele afirma

que, a partir da produção de uma ciência sobre a sexualidade e do estabelecimento das teorias da hereditariedade e da degenerescência, a própria medicina psiquiátrica fundava os racismos em verdade, justificando uma série de políticas que procurarão intervir sobre fenômenos variados da reprodução das populações e também a exclusão daqueles indivíduos considerados degenerados, inferiores etc.

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Contudo, antes, já no curso do ano de 1974-1975, Les anormaux [Os anormais], Foucault menciona o surgimento de um tipo de racismo, a partir da constituição da psiquiatria como um campo de saberes que servia e se propunha a missão de defesa da sociedade contra seus membros perigosos, aqueles capazes de minar a força do corpo social. Talvez à primeira vista o termo “racismo” não pareça o mais adequado nesse caso, já que se perderia assim a especificidade da experiência histórica do racismo, posto que aparentemente as formulações do discurso psiquiátrico e sua atuação não remetam de imediato a uma partição ditada pela prerrogativa da raça, fazendo com que o uso da caracterização de racismo soe impreciso. Mas o fato ressaltado por Foucault é que o “corpo social” é então pensado como raça e a psiquiatria, a partir de fins do século XIX, ao incorporar preocupações com a reprodução e a hereditariedade, por sua vez, teria como efeito um tipo de exclusão que seria passível de ser caracterizada como um racismo na medida em que produzia um discurso científico para o qual uma verdadeira “raça” de anormais, de seres degenerados, devia ser vigiada, controlada, esterilizada, para que não propagasse sua degradação pelo corpo social, como forma de defender, por sua vez, a força da boa raça (FOUCAULT, 2001w). Nesse momento, portanto, já vemos um tipo de preocupação caracteristicamente biopolítico: a psiquiatria (e a medicina de uma maneira geral) desempenha um importante papel político, sobretudo na medida em que se conjugam com um aparato institucional judiciário, no interior dos Estados modernos que tomavam como objetivo o governo da vida das populações tendo como pontos de ancoragem essenciais o cuidado com a saúde do corpo social através da intervenção sobre a

saúde mental e física (nesse caso, especialmente a reprodutiva) dos indivíduos209. E o mesmo

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“A psiquiatria, se ela se tornou tão importante no século XIX não foi simplesmente porque ela aplicava uma nova racionalidade médica às desordens do espírito ou da conduta, foi também porque ela funcionava como uma espécie de higiene pública. O desenvolvimento no século XVIII da demografia, das estruturas urbanas, do problema da mão de obra industrial fez aparecer a questão biológica e médica das ‘populações’ humanas, com suas condições de existência, de habitat, de alimentação, com sua natalidade e sua mortalidade, com seus fenômenos patológicos [...]. O ‘corpo’ social deixa de ser uma simples metáfora jurídico-política [...] para aparecer como uma realidade biológica e um domínio de intervenção médica. O médico deve então ser o técnico desse corpo social e a medicina, uma higiene pública. E a psiquiatria, na virada dos séculos XVIII e XIX, retirou sua autonomia e se revestiu de tanto prestígio do fato que ela pode se inscrever no quadro de uma medicina

movimento em que se constituem aqueles indivíduos tidos como perigosos a partir da classificação psiquiátrica autoriza a intervenção sobre essas fontes nebulosas de perigos na forma da prevenção. Dessa forma, ao falar, por exemplo, da manutenção ainda da pena de morte em alguns países (a França só a aboliria em 1981) numa situação em que os Estados se dão por função a maximização da vida Foucault diz que “se pode mantê-la apenas invocando menos a enormidade do crime mesmo do que a monstruosidade do criminoso, sua incorrigibilidade, e a proteção da sociedade. Mata-se legitimamente aqueles que são para os

outros um tipo de perigo biológico” (FOUCAULT, 1976, p.181, tradução nossa)210.

O racismo, hoje, é reconhecidamente um mal a ser combatido e a própria noção de raça é colocada em questão. As análises de Foucault, entretanto, mostram que essa forma de se pensar, de se colocar o problema da existência e da relação entre as raças é recente, produto de um tipo específico de concepção de “raça” que, conjugada a um tipo de poder característico da soberania operaria pela homogeneização e exclusão. Em seu curso de 1975-

concebida como reação aos perigos inerentes ao corpo social. Os alienistas da época puderam discutir infinitamente sobre a origem orgânica ou psíquica das doenças mentais, eles puderam propor terapêuticas físicas ou psicológicas: através de suas divergências, eles tiveram consciência de tratar um ‘perigo’ social seja porque a loucura lhes aparecia ligada a condições malsãs de existência (superpopulação, promiscuidade, vida urbana, alcoolismo, depravação), seja ainda porque a percebiam como fonte de perigos (para si mesmo, para os outros, para o entorno, para a descendência também por meio da hereditariedade). A psiquiatria do século XIX, ao menos tanto quanto uma medicina da alma individual, foi uma medicina do corpo coletivo (FOUCAULT, 2001p, p.449-450, tradução nossa)”. [“La psychiatrie, si elle est devenue si importante au XIXe siècle, ce n’est pas simplement parce qu’elle appliquait une nouvelle rationalité médicale aux désordres de l’esprit ou de la conduite, c’est aussi parce qu’elle foncionnait comme une forme d’hygiène publique. Le développement, au XVIIIe siècle, de la démographie, des structures urbaines, du problème de la main-d’oeuvre industrielle avait fait apparaître la question biologique et médicale des ‘populations’ humaines, avec leurs conditions d’existence, d’habitat, d’alimentation, avec leur natalité et leur mortalité, avec leurs phénomènes pathologiques [...]. Le ‘corps’ social cesse d’être une simple métaphore juridico-politique [...] pour apparaître comme une réalité biologique et un domaine d’intervention médicale. Le médecin doit donc être le technicien de ce corps social, et la médecine, une hygiène publique. Et la psychiatrie, au tournant du XVIIIe et du XIXe siècle, a pris son autonomie et revêtu tant de prestige du fait qu’elle a pu s’inscrire dans le cadre d’une médecine conçue comme réaction aux dangers inhérents au corps social. Les aliénistes de l’époque ont pu discuter à l’infini sur l’origine organique ou psychique des maladies mentales, ils ont pu proposer des thérapeutiques physiques ou psychologiques: à travers leurs divergences, ils avaient tous conscience de traiter un ‘danger’ social soit parce que la folie leurs apparaissait liée à des conditions malsaines d’existence (surpopulation, promiscuité, vie urbaine, alcoolisme, débauche), soit encore parce qu’on la percevait comme source de dangers (pour soi-même, pour les autres, pour l’entourage, pour la descendance aussi par l’intermédiaire de l’hérédité). La psychiatrie du XIXe siècle, au moins autant qu’une médecine de l’âme individuelle, a été une médecine du corps collectif”.]

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“on n’a pu la maintenir qu’en invoquant moins l’énormité du crime lui-même que la monstruosité du criminel, son incorrigibilité, et la sauvegarde de la société. On tue légitimement ceux qui sont pour les autres une sorte de danger biologique”.

1976, “Il faut défendre la société” [“É preciso defender a sociedade”]211, cuja primeira publicação, em espanhol, foi traduzida como Genealogia del racismo (FOUCAULT, 1993), o filósofo faz uma genealogia do que chama discurso histórico-político. Nesse curso, ele procura mostrar a forma como um discurso baseado numa divisão entre raças se serviu da elaboração de uma perspectiva historicista, de um discurso histórico-político como forma de oposição ao que eram considerados os abusos, as opressões de uma monarquia soberana. Dito de outra forma, Foucault trata do desenvolvimento de um discurso histórico como forma de oposição política a um discurso de soberania, jurídico-filosófico, isto é, um discurso localizado, parcial, que não tem a pretensão de englobar a totalidade da realidade, mas que assume seu caráter perspectivo, uma contra-história em oposição a um discurso de soberania caracterizado pela afirmação de uma posição neutra que tinha como objetivo e consequência a ocultação desse mesmo caráter perspectivo, dessa defesa e manutenção de um estado de coisas específico, de sua dominação. O discurso histórico-político teria surgido em fins do século XVI e inícios do século XVII se estendendo até o século XVIII, especialmente na Inglaterra entre os puritanos e na França em meio à aristocracia ante as monarquias absolutas como oposição crítica a essas formas de governo consideradas despóticas e que, na visão desses críticos, em nada correspondiam à cessão de um poder ou a algum “acordo”, mas tratava-se de um poder considerado ilegítimo cuja ilegitimidade mesma de sua dominação e conquista se ocultava sob narrativas glorificadoras desses poderes. Nesse curso de 1975-1976, Foucault, ao investigar as relações de poder definidas a partir de seu caráter belicoso procurará retraçar o desenvolvimento de um discurso histórico que se caracteriza pela oposição ao que ele chama de “elogio de Roma”, próprio das monarquias, de certa história oficial, até o século XVI, e pela afirmação, pela busca de restabelecimento de suas origens e

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Traduzido no Brasil como Em defesa da sociedade (FOUCAULT, 1999), sem as aspas conforme o original, o que, a nosso ver, parece fazer com que se perca o sentido diríamos irônico possivelmente pretendido por Foucault, já que ele não pretende fazer uma defesa da sociedade ou do social, por exemplo, mas apresentar uma análise de um discurso político sobre a defesa de determinadas sociedades.

daquela configuração de poder através da reconstrução dos fatos e a reivindicação de um direito em função dessa mesma história. A um discurso jurídico-filosófico que pretende legitimar certo tipo de poder monárquico, opõe-se uma história política que, através da crítica, procura evidenciar o caráter arbitrário, usurpador, dominador, deste poder.

Onde o problema da raça se encaixa nessa história? Ora, Foucault mostrará que a oposição à soberania na forma de uma contra-história se fundava exatamente na reivindicação de uma separação e diferença entre raças. Se o poder é compreendido como enfrentamento, conflito, guerra, de modo que a própria política é compreendida como “a continuação da guerra por outros meios”, e se se pensa o mundo irredutivelmente dividido entre raças, tem-se uma verdadeira guerra de raças. Quer dizer, esse discurso histórico-político se baseava na afirmação de suas origens, de um direito de uma determinada raça em oposição à dominação imposta por uma raça estrangeira, conquistadora, dominadora. Esses discursos supõem sempre a divisão entre as raças, a oposição, a luta entre elas. Trata-se de um discurso da luta de raças. Essas raças, evidentemente, não têm nada a ver com a noção mais moderna do termo, calcada numa divisão biológica e hierárquica entre grupos humanos (Cf. BERNASCONI, 2010). Na verdade, suas características mais marcantes são a língua e a religião, ou seja, não problema de hereditariedade mas de origens territoriais e costumes comuns.

A transformação identificada por Foucault, desde a constituição desse discurso sobre a luta entre as raças, e que é característica do período de emergência da biopolítica, diz respeito ao fato de que, se modernamente se conservou a noção de raça que, com o desenvolvimento da biologia, de uma noção política ganhou um conteúdo científico, a noção de raça passa a significar algo bastante diferente. Para o filósofo, as sociedades deixam de estar divididas entre duas raças em luta constante, e passam a ser concebidas como um corpo dotado de caracteres naturais que devem ser geridos, administrados, potencializados. Essa

mutação se dá em consonância com uma série de outras transformações. A mudança de um tipo de poder de soberania para um tipo de Estado caracterizado por uma racionalidade governamental, concomitante ao desenvolvimento de uma economia de tipo capitalista, é uma transformação principal. Dessa forma, a aparição da população, com o desenvolvimento das várias ciências e com o crescimento das atribuições e do poder dos Estados com sua colocação de seus novos objetivos de gestão dos fenômenos populacionais, o racismo desempenhará um papel central. Se o que há não são mais raças em uma perpétua luta por afirmação de seus direitos de legitimidade, mas uma população que precisa ser administrada, um “corpo social”, as preocupações com a saúde dessa mesma população e, dessa forma, suas questões reprodutivas, higiênicas, sanitárias é que estarão em jogo, e a preocupação com as diferenças raciais estarão no centro das preocupações com a administração do corpo social. A partir da formação dos modernos estados nacionais encarregados da gestão das populações, dos desenvolvimentos das ciências da vida e da sociedade pensada em termos monistas (isto é, não mais dividida, mas compondo um todo orgânico), o racismo cumprirá, junto com um poder soberano novamente tornado protagonista, o papel de fornecer o conteúdo para intervenções políticas que culminarão, paradoxalmente, em ações de “purificação”, chegando à forma extrema do extermínio que poderão colocar em perigo a existência daquelas mesmas sociedades. Através da atribuição da função de manutenção da força do corpo social, os Estados tomarão como função a defesa da pureza e da saúde desse corpo e, portanto, se arrogará o papel de purgá-lo de seus membros infectos. Ou seja, num regime que procura maximizar as potencialidades da vida, que se baseia na potencialização da vida como prerrogativa de governo, o racismo fornecerá a justificativa para as matanças, nas palavras de

Foucault, “os massacres tornaram-se vitais”212

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“Nunca as guerras foram mais sangrentas no entanto do que após o século XIX e, mesmo guardadas todas as proporções, nunca os regimes haviam praticado sobre suas próprias populações semelhantes holocaustos. Mas esse imenso poder de morte – e é talvez o que lhe dá uma parte de sua força e do cinismo com o qual ele