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Atenas, o umbigo da Hélade

«São Atenienses! Quanto e como diferem de vós em tudo!»1

Pensar na Grécia antiga tem como reflexo condicionado evocar Atenas em detrimento de tantas outras . Tal deve-se, decerto, ao renome que a cidade alcançou e que foi conservado e transmitido de geração em geração até aos nossos dias, tantos séculos depois!

No entanto, ao contrário do que sugerem testemunhos literários e mitológicos, Atenas não foi sempre a cidade que hoje, de um modo geral, recordamos. Durante muito tempo, foi apenas mais uma do território helénico, que não sobressaía particularmente de entre as suas congéneres. De facto, a sua localização e condições geográficas colocavam muitos entraves naturais a um desenvolvimento económico sustentável2, que lhe permitisse o

progresso alcançado no Século de Péricles. Foi sobretudo a partir do advento da democracia e do momento em que Temístocles decidiu rentabilizar a mais-valia que era para Atenas a sua costa, apostando na criação de uma armada poderosa, que a sorte da cidade conheceu uma mudança profunda. Na verdade, essa esquadra teve um papel fundamental na vitória grega sobre os Persas3, triunfo do qual resultou, mais do que uma nova Atenas, uma outra

imagem desta aos olhos do mundo e aos olhos dos seus próprios cidadãos: entre os Gregos, tornou-se merecedora de respeito e reconhecimento; entre Bárbaros, gerou temor e ira; entre Atenienses, autoconfiança4 e orgulho. Desde

então, a ateniense encarnou o papel de «salvadora da Grécia»5, que os

demais Gregos apenas contestaram quando começaram a sentir-se ameaçados pelo crescente poder e pela política expansionista da cidade de Atena.

De acordo com os testemunhos literários que hoje conhecemos, desde então, os Atenienses – ou pelo menos a generalidade deles – não tinham

1 Thuc. 1. 70.

2 Thuc. 1. 2. 5 afirma que a Ática não sofreu migrações, por causa de ter um solo pouco

fértil que não atraía as populações nómadas. Também Plu. Sol. 22. 1 alude às características desfavoráveis da Ática, que contrasta com as do Peloponeso.

3 Segundo Isoc. 4. 84, as Guerras Medo-Persas teriam sido inventadas por um deus, para que

o valor dos guerreiros atenienses fosse dado a conhecer ao mundo. Sobre esta guerra e a política de Temístocles (descrita em Thuc. 1. 90. 3 – 93. 8; Plu. Arist. 4 sqq., Them. 7-19), consultem-se Burn (1984); Lazenby (1993); Green (1996); Lenardon (1978).

4 Cf. Plu. Them. 8. 2, onde se afirma que a confiança é o começo da vitória, e Cim. 13. 1, onde

se menciona a consciência que os Atenienses tinham da sua força e o orgulho que sentiam pela vitória.

5 Cf. Hdt. 7. 139. Sobre o elogio de Atenas em Heródoto, vide Evans (1979: 112-118);

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pejo6 em afirmar a sua condição de povo superior. Disso é exemplo o próprio

Péricles, que conferiu a Atenas o título de “escola da Grécia” (por causa da sua maneira de ser e dos bons exemplos que dava) e que também deixou claro que o poderio da decorria do caráter dos seus cidadãos7.

Com efeito, os Atenienses julgavam-se senhores de uma civilização e de uma maneira de ser singulares8, assentes em valores básicos como o bom senso,

a obediência à lei, a igualdade, a audácia, a amizade, o respeito pelos deuses, a resistência à opressão e à injustiça, a capacidade de persuasão. Não admira, pois, que as virtudes atenienses, antes de a oração fúnebre9 se tornar em um

género literário propício ao seu elogio, fossem evocadas de modo disperso nos diferentes textos que abordavam a figura de Teseu (que representa o espírito da Atenas idealizada10), nomeadamente na tragédia, como acontece, por

exemplo, no Édipo em Colono de Sófocles ou nas Suplicantes de Eurípides11

(onde o fundador surge como personagem), e noutras, como as Euménides de Ésquilo12 ou Os Heraclidas e a Medeia de Eurípides (nas quais os soberanos de

Atenas, que representam o mesmo espírito, são, respetivamente, Demofonte e Egeu). Também a narrativa e a oratória não foram alheias ao constante autoelogio dos naturais de Atenas à sua maneira de ser e de viver, pelo que vários outros autores – de entre os quais destacamos Tucídides, Isócrates e Lísias – retrataram a imagem que os Atenienses tinham de si próprios e até a que os outros tinham deles. A própria comédia, género, por excelência, dos ataques e da ridicularização do sistema, não consegue ser alheia a este fenómeno, como muito bem afirma Mills (1997: 51)13:

6 Antes pelo contrário: segundo Ar. Ach. 634-640, os Atenienses gostavam tanto de ser

elogiados que se deixavam levar pelas lisonjas e se tornavam ‘cabeças de vento’. Na paródia que faz a este excesso de vaidade, o comediógrafo evoca o epíteto «povo coroado de violetas» (cf. Ar. Eq. 1329), que foi pela primeira vez associado à beleza de Atenas por Píndaro (fr. 76 Snell). Tal elogio encheu os Atenienses de orgulho e valeu ao poeta diversas recompensas, de acordo com os testemunhos de Isoc. 15. 166 e Paus. 1. 8.4, respetivamente, o título de próxeno e dez mil dracmas e uma estátua. Aristófanes (Ach. 634-640) recorda ainda o epíteto «brilhante» (Pi. I. 2. 20), que era usado com frequência pelos diplomatas, experimentados conhecedores desta sensibilidade ateniense. Também Plutarco se refere a este gosto por elogios em Moralia 799C, onde acrescenta, ao contrário do que poderíamos imaginar, que os Atenienses não reagiam mal aos que os ridicularizavam com palavras espirituosas.

7 Thuc. 2. 41. Segundo o estadista, o valor de Atenas era muito superior à sua fama. Sobre a

perspetiva que Péricles tinha do caráter ateniense, vide Rusten (1985: 14-19).

8 Cf. infra p. 117.

9 Para um aprofundamento deste tema, vide Loraux (1981) e bibliografia aí citada. É

igualmente interessante consultar Ziolkowski (1981).

10 Cf. supra p. 56.

11 Este tema encontra-se desenvolvido em Mills (1997: 87-185); Walker (1995: 146-193) e

também em Hook (1931: 26 sqq.); Blundell (1993: 287-306).

12 Vide Kitto (1966: 74-115).

13 Para uma visão da perspetiva que os Atenienses tinham sobre si próprios na comédia de

Atenas, o umbigo da Hélade

«even comedy can contain a kind of «anti-encomium» of Athens, which necessitates that its audience is familiar with an ideal Athens and what is typical, institutionally and otherwise, of it.»

Esse louvor exacerbado dos Atenienses não era um mero exercício de vaidade através do qual davam a conhecer as suas virtudes. Servia, sobretudo, para justificar aquele que entendiam ser o seu pleno direito à hegemonia14, em

particular quando esta começou a ser contestada pelos aliados, apesar de se ter revelado de grande utilidade para a Hélade, na medida em que permitiu a expulsão dos Bárbaros e a prosperidade dos Helenos.

Do mesmo modo que as famílias nobres procuravam valorizar a sua linhagem atribuindo a si mesmas heróis mitológicos como antepassados, as cidades pretendiam fazer remontar as suas origens a períodos imemoriais e ter fundadores ilustres15. No caso de Atenas, a excelência deriva da sua antiguidade

e do facto de os Atenienses acreditarem (e passarem por) ser o único povo grego que não resultava de fusões ou migrações nómadas16:

17

“… não têm nem sangue misturado nem sangue estrangeiro, mas os únicos de entre os Gregos nascidos no seu território…”

Por isso, como único povo autóctone, que, segundo a tradição, teria brotado do solo da Ática e sido o único a aí ter habitado desde sempre, os Atenienses tinham uma razão de monta para se considerarem Gregos de

14 Com efeito, porque a hegemonia de Atenas remontava às relativamente recentes Guerras

Pérsicas, os Atenienses sentiram a necessidade de lhe conferir antiguidade, com o intuito de reforçá-la e dignificá-la. Não surpreende, por isso, que Isoc. 4. 37 afirme que a hegemonia de Atenas é anterior à fundação da maior parte das cidades gregas. Segundo o orador (Isoc. 4. 54-57), o poder e o caráter da – e por conseguinte, a sua hegemonia –, foram desde muito cedo reconhecidos. Para comprová-lo, basta recordar as diferentes súplicas que lhe foram dirigidas aos longo dos tempos, como a dos filhos de Hércules (Lys. 2. 11-16 ) e a de Adrasto (Lys. 2. 10), ou, na perspetiva de Hdt. 9. 27, os seus feitos ancestrais, como a participação na Guerra de Troia, na Amazonomaquia e o apoio dado aos Heraclidas.

15 Cf. Arist. Rh. 1360 b 31:

‘nobreza significa para um povo e uma cidade que a origem dos

seus membros é autóctone ou antiga, que os seus primeiros chefes foram ilustres e que muitos descendentes se ilustraram em qualidades invejáveis’. A tradução apresentada é da autoria de Júnior, Alberto – Pena (2005).

16 Cf. Hdt. 7. 161; Thuc. 1. 2. 5, 2. 36. 1; Lys. 2. 17. Sobre a autoctonia, vide Loraux (1979:

1-26; 1996); Rosivach (1987: 294-306); Cohen (2003, em especial o segundo capítulo).

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primeira categoria, de raça pura, reforçando a imagem de superioridade que tinham de si próprios. Além disso, sempre que evocavam este mito, rebaixavam os restantes Gregos18, apresentavam uma justificação para o ódio que nutriam

pelos Bárbaros19 e para o seu direito à hegemonia20.

A autoctonia (referida, por exemplo por Plu. Moralia 820A; Pl. R. 415a- b, 416e) configura, assim, um elemento patriótico e cívico, que constitui um apoio fundamental à propaganda externa de Atenas e suporta a unidade dos seus habitantes. De acordo com o que afirma Péricles em Thuc. 2. 38, essa origem é uma das principais responsáveis pelo desenvolvimento de uma cultura única e original (devido à sua autoctonia, Atenas nunca imitou ninguém). É essa mesma autoctonia, essa condição de superioridade inata21,

que – não sendo aquilo a que podemos chamar uma virtude moral – desperta no povo de Atena a necessidade de viver em regime de igualdade e respeito pela lei, bem como de sair em defesa dos mais fracos e oprimidos22. Podemos,

por isso, afirmar que as virtudes dos Atenienses como que decorrem da sua origem de exceção e são ampliadas pelo modus vivendi por que decidiram enveredar.

18 De acordo com D. 60. 4, os demais Gregos são filhos adotivos das cidades onde vivem, ao

contrário dos Atenienses, cidadãos de nascimento legítimo. Cf. Lyc. 48.

19 Cf. Pl. Mx. 245 c-d:

‘o ódio natural aos Bárbaros, porque somos Gregos puros e sem mistura com Bárbaros’. Isoc. 14. 66-71 debruça-se sobre a relação dos Atenienses com os Bárbaros e afirma que estes saíram derrotados sempre que atacaram Atenas com o intuito de, conquistando-a, submeter em simultâneo os demais Gregos. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com as Amazonas (cf. Isoc. 4. 68; Lys. 2. 4-6) e, mais tarde, com Dario e Xerxes (cf. Hdt. 7. 139; Lys. 2. 21-43), o que revela que os Bárbaros tinham uma conceção «atenocêntrica» da Hélade. Ideia semelhante ocorre em A. Pers. 233-234, onde o Corifeu diz à Rainha que o Rei desejava conquistar Atenas para, assim, sujeitar toda a Grécia, e em Plu. Arist. 5.1, segundo o qual Dario envia Dátis sob o pretexto de castigar Atenas, mas com a real intenção de conquistar a Grécia.

20 Cf. Hdt. 7. 161: diante da pretensão siracusana de comandar a frota, os Atenienses

recusam ceder o seu posto, por possuírem a linhagem mais antiga e serem os únicos de entre os Gregos a nunca ter mudado de território. Igual relação de causa e consequência estabelece Isoc. 4. 24-25, quando defende que o único povo grego com origem no próprio solo deve recorrer a esse argumento para reclamar o seu direito à hegemonia.

21 Segundo Lys. 2. 43, a inata dos Atenienses advém da autoctonia. 22 Cf. E. Heracl. 329-332:

. ‘Esta terra tendeu sempre a socorrer com justiça quem estava em apuros. Por isso já

suportou sofrimentos sem conta em prol dos amigos, e ainda agora vejo que se aproxima o momento da luta’ (tradução de Silva: 2000). Esta mesma característica é mencionada em Isoc. 4. 52, onde se afirma que os Atenienses sempre lutaram pelos mais fracos e pelos suplicantes, mesmo em prejuízo dos seus interesses, em vez de se aliarem às injustiças dos mais fortes para alcançar benefícios. Quando era caso disso, entravam em guerra por aqueles e saíam vitoriosos, o que faz com que as intervenções militares de Atenas possam ser vistas como ajuda ao próximo, defesa da lei, punição dos maus e mais uma demonstração de , característica desenvolvida infra a partir da p. 120.

Atenas, o umbigo da Hélade

Vejamos, então, quais os traços inerentes aos Atenienses23, que os

tornavam «superiores aos demais Gregos», partindo do testemunho de Tucídides, que completaremos – sempre que pertinente – com os de outros autores.

A caracterização elogiosa que o historiador24 faz do povo a que pertence,

apesar de também ser tratada na oração fúnebre de Péricles (2. 35-46), ocorre sobretudo em dois grandes momentos do Livro I: por ocasião da intervenção dos Coríntios (68-71) e aquando da resposta da embaixada ateniense (73-79). Esta ordem torna-se digna de reparo. Não terá sido, decerto, inocente a opção por apresentar primeiro a visão que os «outros» têm dos Atenienses, a qual consiste em um misto de ódio e admiração, e só depois, em jeito de defesa, a ideia que os visados têm de si mesmos. Deste modo, a própria importância dos Atenienses ganha ênfase: todos falam a seu respeito, demonstrando um não pequeno receio pelo poder que detêm e tentando convencer-se mutuamente da necessidade de fazer frente à ameaça que Atenas representa25; no entanto,

acaba por ser esta a ter a última palavra na fase de argumentação que precede a sentença dos Lacedemónios.

Igualmente digno de reparo é o facto de os Coríntios caracterizarem os Atenienses por contraste com os Lacedemónios26, deixando evidente que

Atenas é um inimigo digno de respeito, muito mais do que a Lacedemónia, o seu grande adversário. Esta estratégia, além de realçar a superioridade dos de Atenas (que surgem sempre como «– ») e inferiorizar os seus eternos rivais, serve de aguilhão para incitar a pronta reação dos Lacedemónios que, apesar das críticas, seriam os únicos com condições para fazer frente ao poderio ateniense27.

23 Sobre os prós e contras da tentativa de definir um perfil ateniense, vide Mills (1997: 43

sqq.).

24 Ao longo da sua obra, Tucídides oscila entre o elogio e a crítica a Atenas. Há passos em

que assume que Atenas é uma tirania (e. g. Thuc. 2.63, 3. 37. 1; cf. Ar. Eq. 1111-14, 1130, 1133,

V. 620) e que a maioria dos Helenos, aliados ou não, a odeiam (Thuc. 2. 8. 4, 11. 2).

25 De acordo com os Coríntios (Thuc. 1. 71. 4), os Atenienses são os piores inimigos (

). Segundo o éforo Estenelaídes, é fundamental impedir que cresçam (Thuc. 1. 86. 5) – cf. infra p. 130.

26 Mais do que uma estratégia dos Coríntios, esta é uma das linhas de leitura possível da obra

de Tucídides, segundo Luginbill (1999).

27 O mesmo tema é abordado por Eurípides na Andrómaca, onde Menelau representa

o espartano hostil, e por Isoc. 12. 41-48, que louva Atenas por ter contribuído para o engrandecimento da Grécia (cf. etiam Isoc. 4. 26 sqq.) e critica a egoísta Esparta por só pensar em causas próprias, chegando mesmo a acusá-la, ainda que de modo velado, de ter sido um obstáculo à evolução da Hélade (Isoc. 4. 20). Para mais críticas à atuação de Esparta, vide infra nota. 49. Para mais referências ao seu egoísmo, cf. Thuc. 1. 74. 3 (onde é acusada de temer pela sua sorte e não pela de Atenas), 3. 13. 7 (onde é incitada a agir para escapar à acusação de não prestar auxílio). Não deixa de ser curioso notar que, segundo Plu. Cim. 16. 4, que se baseia em Estesímbroto, Címon tinha o procedimento inverso: sempre que queria repreender ou exortar os Atenienses, apresentava-lhe os Lacedemónios como modelo.

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Recordemos o que diz Tucídides.

28

“Nem jamais calculastes contra que tipo de inimigo será a luta. São Atenienses! Quanto e como diferem de vós em tudo!

Eles são inovadores e vivos no planear e realizar o que têm em mente (...). E ainda, são audazes além da força, temerários além da razão, no perigo, otimistas; é característica vossa agir aquém das forças, não confiar nem sequer nas reflexões seguras e julgar que jamais vos livrareis dos perigos. Eles são resolutos e vós, hesitantes; dispostos a deixar a sua terra, e vós apegadíssimos à vossa (...).”

Do excerto que acabámos de transcrever (e da totalidade do parágrafo onde se insere), ressalta a 29, considerada por muitos o principal

traço do caráter ateniense, embora Tucídides não utilize o substantivo abstrato que o designa. Esse dinamismo, esse empreendedorismo, essa prontidão para a ação que os impede de serem meros espectadores dos acontecimentos é, direta ou indiretamente, responsável por todos os sucessos que Atenas logrou e pela crítica que os Coríntios lhe fazem de nunca deixarem ninguém em paz30.

O êxito desta característica está, segundo Péricles (Thuc. 2. 40)31,

28 Thuc. 1. 70. 1-4. A tradução apresentada é de Prado (1999: 93). Para uma análise linguística

e literária do discurso dos Coríntios, leia-se Milman Parry (1981: 126-138).

29 Vide Adkins (1971: 301-327); Allison (1979: 10-22); Ehrenberg (1947: 46-67);

Gutglueck (1988: 21-39). Sobre este conceito em Tucídides, vide Gomme (1945-1956: 232) e Hornblower (1991: 115). A maior prova da atividade frenética dos Atenienses é o relato de Thuc. 1. 89-117, conhecido por Pentecontaitia, que descreve os acontecimentos decorridos entre o fim das Guerras Medo-Pérsicas e o debate de Esparta, ou seja a formação do império.

30 A paródia que Ar. Plu. 911-915 faz desta característica não podia estar mais de acordo com

a perspetiva dos Coríntios: o Sicofanta considera prestar um serviço à cidade o «meter o nariz» ( 913) na vida alheia, para socorrer as leis existentes e impedir prevaricações. Havia, contudo, logo no início da formação do império, políticos com a perceção de que este excesso de vitalidade dos Atenienses, incapazes de ficar tranquilos e sempre prontos para novas empresas e conquistas, podia desagradar aos aliados. Segundo Plu. Cim. 18. 1, foi por isso que Címon, em uma tentativa de direcionar a atenção dos concidadãos para longe dos povos da mesma raça, decidiu realizar uma expedição contra o Egito e Chipre. Sobre o comportamento contrário de Péricles, vide p. 262, n. 238.

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relacionado com a superioridade do seu povo, o único capaz de combinar (que representa a força física, a dinâmica de ação, a violência) e (que representa a paz, a inteligência, a persuasão, o civismo)32. Isto significa

que a sua ação (que parece desenfreada e intempestiva pela rapidez com que é executada) se baseia na pronta reflexão, ou seja, em uma reflexão que não se arrasta pelo tempo, pondo em causa a execução, antes pelo contrário: permite esclarecer as ideias antes de agir, logo, mostrar audácia com riscos calculados33.

Porque senhores desta capacidade34, os Atenienses preferem surpreender

a ser surpreendidos, antecipar em vez de reagir35 e mostram-se indignados

com a apatia dos outros Gregos. É, por isso, compreensível que os Coríntios atribuam à rapidez que os Atenienses conferem ao processo de decisão/ação36

a responsabilidade pelos êxitos por estes alcançados.

A está intimamente relacionada com outro traço dos Atenienses, a ambição, a ânsia de sucesso, que fazia com que, sempre insatisfeitos com o que tinham, buscassem mais e melhor, sem se importarem de correr riscos para alcançar os seus objetivos37. Foi esta maneira de ser que, de acordo

32 Os Atenienses são os mais experientes em palavras e ações –

(Isoc. 8. 52). Note-se, contudo, que o recurso ao , apesar de sinónimo de paz, pode justificar a guerra. Nas Suplicantes de Eurípides, a batalha só acontece porque Teseu não consegue persuadir os Tebanos de outro modo.

33 Cf. Thuc. 7. 28, onde se afirma que quem não quer correr riscos protela a ação; quem não

se importa de corrê-los passa à execução com maior rapidez.

34 Como exemplo desta característica, mais uma das que causava a admiração dos seus pares

e dos inimigos, podemos recordar a velocidade da construção dos muros em Siracusa (Thuc. 6. 98) e em Atenas (Thuc. 1. 93), bem como a rapidez da concretização do programa de obras de reconstrução e embelezamento da (Plu. Per. 13. 3).

35 Vd. Thuc. 6. 18, segundo o qual Alcibíades declara que não se devem defender dos ataques

dos mais fortes, mas precaver-se antes que ataquem.

36 Cf. Thuc. 1. 57; Isoc. 4. 87. Em Ar. Ach. 630-631, o comediógrafo parodia esta característica,

quando afirma que os Atenienses estão sempre prontos a tomar decisões e … a alterá-las. Esta pretensa indecisão pode ser interpretada de dois modos: um, negativo, por sugerir insegurança e desorientação; outro, positivo, pois a abertura de espírito necessária para voltar atrás aponta para natureza superior e magnanimidade. Disto nos dá testemunho Thuc. 3. 36, quando relata que os Atenienses, que haviam decidido executar todos os homens de Mitilene e escravizar as mulheres e crianças, se apercebem da crueldade e exagero de uma tal posição e recuam. Tal comportamento decorre, segundo Plu. Moralia 799C, de o povo ateniense ser propenso à ira e e à conversão desta em piedade, pois prefere suspeitar primeiro e averiguar a verdade depois. Esta maneira de ser faz-nos pensar em Édipo, que, não sendo ateniense, é talvez o exemplo máximo daqueles que pautam as suas vidas por decisões e ações intempestivas. Cf. Knox (1957: 69). Sobre o caráter moderado dos Atenienses, vide infra p. 128 nota 77.

37 Os riscos corridos por Atenas eram normalmente bem calculados. Recorde-se o discurso

de Péricles (Thuc. 2. 40. 3): à sua audácia ( ), os Atenienses aliavam (além da rapidez e iniciativa) a inteligência, ao contrário dos demais Gregos. Por isso, a audácia dos pares era por ele considerada ‘ignorância, estupidez’. Segundo Plu. Them. 7. 4, Temístocles foi um dos mais ilustres exemplos da perfeita junção destas características, fazendo com que os Atenienses se mostrassem superiores ao inimigo pela sua coragem e aos aliados pela sua inteligência. Sobre

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