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O caso de Péricles e Alcibíades

O homem de Estado do século

2. O caso de Péricles e Alcibíades

2. 1. Família, principais características e formação dos Alcmeónidas

Antes de procedermos à análise do testemunho que Plutarco nos dá sobre o período que se estende do nascimento ao ingresso na vida política daqueles que, por razões diversas, foram talvez os dois estadistas do século V que mais renome alcançaram, importa recordar dois aspetos fundamentais, embora óbvios. Apesar de pertencerem a gerações diferentes (e da maior ou menor variação dos condicionalismos sociais e políticos que decorrem desse facto), Péricles e Alcibíades viveram em uma época na qual o acesso a cargos políticos de topo se encontrava praticamente reservado àqueles que eram oriundos de famílias de renome, ricas e de tradição aristocrática, que, por essa razão, podiam beneficiar de uma educação de nível superior (como vimos em páginas anteriores).

Por isso, no âmbito deste capítulo, pretendemos concluir da pertinência dos elementos «família», «natureza» e «educação» não só na formação de um futuro homem de Estado, mas também na determinação da sua ação política.

Comecemos pela informação relativa à família1. Ao contrário do que

acontece na Vida de Alcibíades – que abre com o traçar da árvore genealógica do protagonista –, na Vida de Péricles a informação desse cariz só surge no terceiro capítulo. Demais, a própria caracterização da ascendência de cada um dos «heróis» é feita de maneira diversa, o que evidencia o facto de o biógrafo não seguir um padrão rígido para a redação das vidas, apesar de respeitar um fio condutor mais ou menos coeso2.

1 Sobre o papel da família em Plutarco, vide Albini (1997: 59-71).

2 A importância da influência da hereditariedade na maneira de ser de um indivíduo é algo

que os Gregos tiveram desde sempre como premissa. Disso nos dá testemunho Hécuba, que, ao refletir, na tragédia homónima de Eurípides (592-692), sobre o honroso comportamento da filha Políxena, pondera sobre a importância relativa que e têm na formação do indivíduo (como já vimos supra p. 138 e nota 15). Também Plutarco aborda esta questão nos

Moralia (vide infra p. 152 sqq). Consultem-se, a propósito deste tema, Mayor (1952: 18-43);

Dover (1974: 88-95); Lesky (1983: 387); Tarkow (1984: 123-136). A alusão aos antepassados no registo biográfico é uma prática adotada do encómio. Em Plutarco, as informações relativas à família dos indivíduos cujas vidas descreve surgem, por norma, nos capítulos iniciais, mas não necessariamente no primeiro, e são objeto de tratamento irregular. A estes dados, acrescenta muitas vezes anedotas e uma breve descrição da natureza (física e/ou psicológica) do herói em causa, bem como a análise da herança familiar – para ilustrar traços hereditários (cf. Ant., Brut.) – ou de aspetos importantes do ambiente em que decorre a infância (cf. CG, Cleom., Cor.). Por vezes o tratamento do pode surgir como mera curiosidade ou casualidade (Fab., Pyrrh.

Parte V - O homem de Estado do século V

No caso de Péricles, Plutarco tem o cuidado de começar por referir a tribo3

e o demo4 a que aquele pertence, como um ateniense puro, e por acrescentar

que, quer por parte de pai, quer por parte de mãe, tinha origem nobre. No entanto, nunca diz abertamente (ainda que a restante informação o deixe claro) que Péricles estava ligado à família dos Alcmeónidas5. Na Vida de Alcibíades,

pelo contrário, utiliza o adjetivo 6 para identificar Mégacles7, o

avô de Alcibíades, mas omite alusões à tribo e ao demo8.

A consanguinidade existente entre estes dois ilustres membros da não menos ilustre família dos Alcmeónidas fica evidente aquando da apresentação das suas mães: Agariste (a de Péricles) é apresentada como neta de Clístenes9

Phoc., ou Aem.). Sobre este assunto, vide Pelling (1990: 213-244); Albini (1997); Duff (1999:

310-311).

3 A tribo de Acamante tinha por epónimo Ácamas, filho de Teseu e Fedra. Embora

não figure na epopeia homérica, lendas posteriores (e. g. E. Hec. 123-129) referem o papel importante que este monarca teve, com o seu irmão Demofonte, na tomada de Troia. Para conhecer melhor Ácamas, consulte-se Grimal (21992: s. v). É curioso notar que Péricles acaba,

assim, por surgir indiretamente associado à figura do fundador mítico de Atenas como um seu remoto descendente. O mesmo não se pode dizer de Alcibíades, já que o biógrafo coloca ênfase na ascendência mítica da sua família paterna, associada a Eurísaces, filho de Ájax (cf. Pl. Alc. 1. 121-2).

4 O demo de Colarges estava situado no extremo norte da Ática, próximo da encosta

nordeste do monte Egáleo.

5 Os Alcmeónidas eram uma família ilustre e poderosa. Embora a sua origem fosse

normalmente associada à casa real de Pilos (Alcméon seria, segundo D. S. 12. 38. 7, um bisneto de Nestor refugiado em Atenas após a chegada dos Heraclidas), muitos dos seus membros associavam-na a um Alcméon que teria sido contemporâneo de Teseu - (Graves: 2004: passim). Para informações mais detalhadas sobre esta família, consultem-se, e.g., Hdt. 5. 62-73, 6. 125- 131; Davies (1971: 368 sqq.); Fornara – Samons (1991: 1-36) e a bibliografia citada pelos autores, nomeadamente Toepffer (1889: 226-28).

6 Em Pl. Alc. 1. 104a-b, Sócrates tece um grande elogio à família no seio da qual Alcibíades

nasceu, ao apresentá-la como uma das mais importantes de toda a Grécia e não só de Atenas. Não deixa de ser curioso notar que Sócrates não identifica a família do jovem pelo nome, o que certamente se justifica por causa da contemporaneidade que une os dados e o texto. Se pensarmos que Plutarco também não revela grande preocupação em mencionar o nome da família em causa (sobretudo na Vida de Péricles), concluímos que, apesar dos séculos entretanto volvidos, o renome de Péricles e Alcibíades atingira uma proporção tal que a memória popular continuava a relacioná-los com a família dos Alcmeónidas. A propósito deste testemunho platónico, importa ainda salientar que, segundo Sócrates, a pertença a este era para Alcibíades um argumento justificativo da sua maneira de ser e ambições.

7 Filho de Hipócrates de Alópece, foi vítima de ostracismo em 487/6 a.C.

8 O demo Escambonide, a que Alcibíades pertence, é referido em Alc. 22. 4, onde Plutarco

reproduz o texto da ata de acusação contra o filho de Clínias no âmbito do processo relativo à mutilação dos Hermes.

9 Clístenes era um dos Alcmeónidas aos quais se atribui a expulsão do tirano Hípias em

510 a.C. Durante a tirania, chegou a ser arconte em 525/524 a.C., mas quando se desentendeu com os tiranos, toda a sua família foi forçada ao exílio. Após 510 a.C., travou um duro combate com Iságoras (apoiado pelo rei Cleómenes de Esparta) para impedir a instauração de uma oligarquia e foi responsável por importantes reformas na senda da democracia (cf. Boardman:

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(Per. 3. 1-3), já a de Alcibíades, Dinómaca10, como filha do alcmeónida Mégacles

(Alc. 1. 1). Assim, de acordo com as informações que Plutarco nos dá, Péricles e Alcibíades seriam parentes próximos11. Essa ligação foi reforçada (segundo

informação que apenas é explícita em Alc. 1. 2) pelo facto de Péricles e o seu irmão Árifron12 terem sido tutores daquele que passou por ser o mais belo

ateniense do seu tempo.

Dos pais de Péricles e Alcibíades, respetivamente Xantipo13 e Clínias14,

Plutarco salienta o papel fundamental que tiveram em combates: é que a referência às qualidades militares dos progenitores de ambos serve, assim, um duplo propósito – ajudar a identificar Xantipo e Clínias, mas sobretudo abrir caminho para o estabelecimento de uma relação de hereditariedade de tais virtudes, já que Péricles e Alcibíades também se distinguiram nesse campo. Este tipo de procedimento é comum na generalidade das biografias de Plutarco, que tem por hábito fornecer nos primeiros capítulos informações selecionadas sobre os ascendentes ou pais do herói, cujas características são partilhadas pelos filhos15. É que o biógrafo – segundo no-lo testemunham,

da democracia, pretenda sugerir uma certa hereditariedade na dedicação à causa do povo, como meio de esbater as acusações de exercício de poder monocrático feitas contra Péricles. Sobre este assunto, vide p. 212 sqq.

10 Verdegem (2005:483) chama a atenção para a importância da etimologia dos nomes

dos pais de Alcibíades: + ‘hábil no combate’ e + ‘grande glória’. Com parentes deste calibre, não admira que a habilidade de Alcibíades para a guerra e o seu desejo de glória fossem marcas tão vincadas na sua maneira de ser.

11 Segundo Cornélio Nepos (Alc. 2), seria enteado de Péricles; Diodoro Sículo (12. 38. 3)

considera-os tio e sobrinho. Sobre este assunto, vide Thompson (1970: 27-33).

12 Embora à época fosse normal identificar os filhos através do pai (fulano, filho de sicrano),

não deixa de ser curioso que, advindo o parentesco entre Péricles e Alcibíades do lado materno, Plutarco (Alc. 1. 2) se refira a Péricles e a Árifron como filhos de Xantipo e não de Agariste (o que neste contexto faria mais sentido). Segundo Pl. Alc. 1. 104b, apenas Péricles terá sido tutor de Alcibíades.

13 Filho de Árifron, tornou-se membro da família dos Alcmeónidas pelo casamento com

Agariste pouco depois de 500 a.C. Ambicionando seguir uma carreira política, acusou Milcíades de se deixar subornar pelos Persas, o que era uma traição gravíssima ( ). Mas em 485 a.C. foi ele próprio vítima de ostracismo; contudo, regressou a Atenas antes da batalha de Salamina. Em 479 a.C., foi eleito estratego. Participou na batalha de Mícale e incentivou Atenas a que continuasse e libertasse o Quersoneso do domínio persa. Foi na sequência desta exortação que os seus homens atravessaram o Quersoneso e ocuparam Sesto. E este é o último dos seus feitos cujo registo chegou até nós (Cf. Boardman: 21988, 520 sq.).

14 Sobre a família de Alcibíades, cf. D. S. 12. 38. 3. Embora Plutarco se refira ao pai de

Alcibíades como vencedor de Artemísio (Hdt. 8. 17), o facto é que esse Clínias era não o progenitor, mas o seu tio-avô. Sobre este assunto, consulte-se Bicknell (1975: 51-64).

15 Outros exemplos dessa situação ocorrem em Ant. 1 (a liberalidade de António tinha

antecedentes na generosidade do seu pai para com os amigos), Sol. 1-2 (Sólon, tal como o pai, levava uma vida cara e profusa), Cim. 4 (à semelhança do avô, Címon também tinha o hábito de se embriagar). Contudo, o biógrafo menciona igualmente casos em que a natureza do filho é diferente (se não mesmo oposta) à do progenitor, como em Brut. 1. 2 (Caio Bruto era meigo e ponderado, apesar de descender de Júnio Bruto, que era inflexível).

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por exemplo, Moralia 497E, 561D-563A – acreditava que a hereditariedade física e moral são uma realidade incontornável e inquestionável: mesmo que os traços comuns (tendência para doenças, semelhanças físicas, propensão para vícios e virtudes) não se revelem de imediato na geração seguinte e pareçam «adormecidos»16, mais cedo ou mais tarde acabam por se manifestar.

A estes elementos segue-se (e aqui apenas nos referimos à estrutura comum; a específica de cada uma das vidas será abordada a seu tempo) uma rápida caracterização dos protagonistas, centrada sobretudo em aspetos físicos. Da comparação que podemos estabelecer entre o que nos é dito a respeito de Péricles (Per. 3. 3),

“de aspeto físico em tudo o mais irrepreensível, mas de cabeça alongada e desproporcionada17,”

e de Alcibíades (Alc. 1. 4),

“quanto à beleza física, nada há a dizer, senão que desabrochou e conservou o seu brilho em todas as fases da sua vida: criança, adolescente, homem feito, teve sempre um aspeto gracioso e encantador,”

concluímos que Péricles nos é apresentado como uma pessoa vulgar (à exceção da cabeça) e que Alcibíades é exaltado pela beleza singular que possuía e mesmo por uma pequena mácula da natureza, um defeito de pronúncia (ceceio) que, ainda assim, lhe confere uma certa graça e amplia a capacidade de persuasão. Uma avaliação nestes moldes é tipicamente grega, pois segue o conhecido critério do 18, segundo o qual importava que todos fossem belos

– em termos físicos – e bons – em termos morais.

16 As semelhanças ficam esbatidas por força da socialização (o contacto com costumes,

critérios e leis permite esconder o mal e imitar o bom) até ao momento em que a conjuntura traz ao de cima as características que já nasceram com determinado indivíduo, como por exemplo a tendência para o roubo ou para a tirania. Cf. Moralia 562B.

17 Daí que, segundo Per. 3. 4, os comediógrafos áticos lhe chamassem ‘cabeça de cebola’

(esquinocéfalo). Os outros testemunhos de comediógrafos a este respeito serão explorados mais à frente, vide infra p. 164 sq.

18 Sobre este conceito, vide supra p. 139, nota 17. Segundo Platão (R. 494c), a beleza era um

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Se à desconcertante beleza de Alcibíades ( ) fazem alusão autores dos mais diversos registos – nomeadamente Pl. Alc. 1. 113b, Prt. 309a, 316a; D. S. 13. 68. 5 –, ao seu defeito de pronúncia e à disformidade da cabeça de Péricles fazem menção os comediógrafos, já que o ataque baseado na caricatura de «defeitos» físicos (ainda que personalizado em cada caso) faz parte de uma velha tradição cómica19. Eram vítimas da mordacidade da comédia sobretudo

aqueles que tinham mais influência na vida da e que, por esse motivo, viam criticadas não só as opções políticas como aspetos da vida pessoal e privada. Assim, não surpreende que Péricles seja o alvo por excelência desses ataques (quer de forma direta, quer indireta – quando os visados são pessoas das suas relações): além de ter sido quem por mais tempo esteve a comandar os destinos de Atenas no século V, o período do seu governo coincidiu com o do apogeu da Comédia Grega, com poetas como Cratino, Teleclides, Êupolis, Aristófanes e Platão Cómico.

Por isso, Plutarco não pôde evitar a referência a tais testemunhos (respetivamente em Per. 3.4-7, Alc. 1.6-8) que abordam, sem piedade, esses deslizes da natureza, o que revela bem a vulgaridade deste género de comentários.

Relativamente a Alcibíades, começa por recordar Ar. V. 44-46:

“Então Alcibíades, bleso, disse-me: «Vês Teolo? Tem cabeça de colvo».

Nunca Alcibíades foi bleso tão a propósito!”

O efeito cómico conseguido no texto original de Aristófanes é impossível de reproduzir em português: é que, por causa do seu ceceio, ao trocar o de por , Alcibíades qualifica apropriadamente Teoro de adulador ( ).

Logo em seguida, o biógrafo invoca um passo de Arquipo (fr. 48 K.-A.).

“E Arquipo, zombando do filho de Alcibíades, diz: «caminha com afetação, arrastando o manto, e para se parecer o mais possível com o pai, inclina a cabeça e ceceia».”

19 Disso nos dá testemunho Aristófanes, na parábase de Nuvens (540:

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No texto de Arquipo, Alcibíades é visado de um modo indireto, pois o alvo da zombaria é o seu filho, que tudo fazia para imitar o estilo do pai, sem sequer se esquecer de reproduzir o defeito de pronúncia. Este cuidado do jovem comprova, assim, quão ligada a imagem de Alcibíades estava a essa falha; é como se pensar nele levasse a que de imediato se ouvisse a troca do pelo .

A dimensão da cabeça de Péricles tinha um efeito semelhante, mas produziu (aparentemente) mais comentários dos comediógrafos. Não surpreende, por isso, que Plutarco comece por recordar o testemunho mais geral do grosso dos comediógrafos áticos, que apelidaram Péricles de 20‘cabeça de

cebola’,

“os poetas áticos chamavam-lhe cabeça de cebola”

e que, em seguida, invoque excertos concretos de autores de renome. O primeiro é um fragmento de Cratino (Quírones21, fr. 258 K.-A), onde, além de realçar

este pormenor da aparência física do futuro estadista, Plutarco aproveita para nos «apresentar» os «pais» da criança:

“A Desordem e o velho Crono uniram-se para gerar um tirano todo-poderoso, a quem os deuses chamam «amontoador de cabeças».”22

Este passo de Cratino demonstra o potencial cómico da linguagem épica através da simples alteração do epíteto («que amontoa as nuvens»), distintivo de Zeus (cf. Il. 1. 511), para que se coadune com a caracterização de Péricles, o Zeus mortal ( ): assim, tanto podemos associá-lo às dimensões da cabeça do estadista e à sua capacidade de reunir as massas, como a uma sobreposição da prepotência humana com a divina.

O fragmento merece destaque também pela crítica política que faz: a referência ao «tirano» nascido de divindades relaciona-se com a caracterização

20 Refere-se à urginea maritima, género de planta herbácea com um bolbo grosso, de forma

oval, bastante largo (com cerca de 15 cm. de diâmetro) e que pode atingir o peso de 7 kg.

21 Quírones (ca. 430 a.C.) é uma comédia cujo coro é constituído por Centauros que

lamentam ter de viver num período onde a moral e os bons costumes já não existem. Por isso, fazem regressar do Hades Sólon, político e moralista da Atenas do século VI a.C., para que retome as rédeas da polis.

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do governo de Péricles por Tucídides23 – sob a aparência de Democracia, apenas

um homem (Péricles) detinha verdadeiramente o poder – e a que os cómicos, exagerando a sua autoridade e a capacidade de bater os rivais, chamam tirania.

Ainda no mesmo parágrafo (Per. 3. 5) e a propósito do mesmo defeito, Plutarco volta a citar Cratino (Nemesis24, fr. 118 K.-A.), que continua a

estabelecer comparações entre Zeus e Péricles:

“vem, ó Zeus. hospitaleiro e cabeçudo.”

A comicidade deste fragmento resulta da justaposição dos planos mítico e histórico25. Sabemos que Zeus protegia as relações de hospitalidade, daí o seu

epíteto . Péricles, por sua vez, tinha também alguns amigos estrangeiros, como por exemplo Protágoras, Aspásia e Anaxágoras, tendo este último sido protegido pelo estadista aquando do julgamento a que foi sujeito, como relata Plutarco (Per. 32. 3-5). Além disso, temos novamente presentes a noção de tirania e a deformidade da cabeça de Péricles, cuja referência se baseia em um jogo de epítetos: o epíteto ‘senhor dos raios’ atribuído a Zeus26, que

simboliza o seu poder absoluto sobre todas as coisas e que também poderia ser aplicado a Péricles27, sofre uma alteração para 28 – que significa

23 Vide infra p. 211.

24 Em Nemesis (430-429 a.C.), Cratino narra a união de Zeus (Péricles) e Némesis (Aspásia),

da qual resulta Helena e responsabiliza Péricles pelo desencadear da Guerra do Peloponeso, já que este apareceria disfarçado de Zeus para levar a cabo os seus intentos.

25 Estes dois exemplos manifestam, como tantos outros, o efeito cómico de tom épico,

cuja omnipresença se verifica em toda a literatura grega. A referência a elementos da tradição mitológica através de epítetos forjados sobre outros oriundos da épica e ligados, por exemplo, a divindades é um estratagema comum; tal adaptação ou «criação de mitos» (como os da ascendência de Péricles, filho de Crono e da Desordem, ou de Aspásia, filha da Impudicícia e o aparecimento de um novo herói que não apresenta as qualidades típicas), demonstra bem a criatividade da comédia. Por trás da referência mitológica, é possível adivinhar-se uma situação histórica. Mito e história unem-se, assim, para fazer crítica política. O efeito da comédia mítica torna-se mais evidente se o compararmos com o uso do mito na épica e na tragédia: os dois géneros nobres enfatizam sobretudo a do herói, o sofrimento que para ele resulta da consecução do ideal heroico, mas tendem a reduzir as suas debilidades e fraquezas (como é particularmente visível na obra de Eurípides). A comédia, por sua vez, explora precisamente o aspeto humano do herói, acentua-lhe a fragilidade e zomba do seu ideal, ou então apresenta como pano de fundo do mundo heroico, um ambiente moderno e quotidiano que destrói a grandeza mítica devido ao anacronismo.

26 E.g. Il. 21. 198.

27 Em Per. 8. 4, diz-se que o estadista, quando abria a boca, soltava raios e coriscos (vide

infra p. 213).

28 era o epíteto que Zeus recebia na Beócia. Esta leitura, proposta por Meineke e

aceite por Ziegler, recorda ainda a palavra ‘cabeça’ (vide Re XA 1 [1972] 319 e supl. XV [1978] 1459). Flacelière e Crespo, por sua vez, preferem a leitura proposta por Kock –

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‘cabeçudo’. Este trocadilho permite atingir dois objetivos de uma só vez, já que este epíteto consegue ridicularizar a cabeça de Péricles e, em simultâneo, criticar a sua preponderância política.

Em Per. 3. 6, Plutarco apresenta outra referência cómica (fr. 47 K.-A), desta feita de Teleclides29, que realça a deformação da cabeça de Péricles:

“Às vezes de mãos atadas perante os assuntos de Estado, sentava-se na Acrópole, com dores de cabeça; outras vezes daquela tola de palmo e meio soltava-se-lhe uma arruaça monumental.”

Neste passo, merece especial destaque o uso do adjetivo de formação criativa (típica da comédia) , que, à letra, significa de ‘onze leitos’, isto é, ‘muito grande, enorme’, e que aqui serve, mais uma vez, para caracterizar as dimensões pouco comuns da cabeça de Péricles.

No entanto, apesar do tom jocoso e das quase infindáveis críticas que são feitas a este Alcmeónida, Êupolis, em Demos30 (fr. 115 K.-A), surge como

poeta laudator temporis acti ao fazer Péricles – que identificamos através da palavra – regressar do Hades para fomentar a existência de tempos

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