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I. 2.2.3.1 Migração por obras de barragem

III.1 Atingidos por barragens: danos e perdas com a migração compulsória

O conceito de atingido da World Comission on Dams (WCD) refere-se tanto ao deslocado que sofreu deslocamento físico, como aquele que teve deslocado seu modo de vida ou foi privado dele, posicionando assim os atingidos não apenas como os alagados pelas barragens, mas também aqueles que estão a jusante do rio, que não têm direito à compensação e que perdem seus modos de vida e segurança alimentar em consequência do represamento do rio, e que, em função disso, também podem vir a migrar mais tarde.

“A ruptura da economia gera, como consequência, um aumento na migração, na dependência dos salários informais em áreas urbanas e empobrecimento das comunidades”. (Viana, 2003, p. 44).

Embora essa compreensão do conceito de atingido e deslocado por barragens esteja se ampliando na esfera conceitual e teórica do estudo e conquistando modificações nas políticas de reparação de danos, nossa pesquisa analisará apenas o universo de atingidos diretos que sofrem deslocamento causado pela construção do reservatório da barragem ou da instalação do projeto e da infraestrutura associada.

Conforme indicações do Banco Mundial (Cernea, 1988, p.35), um dos principais financiadores de grandes projetos de desenvolvimento que envolvem deslocamentos populacionais, o plano de reassentamento preparado pela empresa responsável pelo projeto

56 deve conter três etapas de ações. Na primeira, deve haver a preparação das pessoas afetadas para a transferência, o que inclui informar, consultar e envolver a comunidade. A seguir, se dá a transferência para o novo local de moradia e, por último, a integração dos deslocados dentro da nova comunidade.

No Brasil, o Relatório Final da Comissão Especial Atingidos por Barragens, constituída no âmbito do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) observa que a literatura e os agentes sociais envolvidos com a questão reconhecem que uma das principais mudanças sociais introduzidas pela barragem está no deslocamento compulsório e nos processos de diferentes ordens que este acarreta.

“Por outro lado, a reparação – reposição, indenização ou compensação - dos efeitos negativos destas mudanças constitui, até hoje, o principal desafio. Mesmo nos exemplos de maior sucesso, entre os quais, no Brasil, se poderia citar a UHE Salto Caxias19, a ruptura de trajetórias de vida e de laços sociais tecidos ao longo de décadas, o stress social e perdas culturais e simbólicas impõem custos enormes aos deslocados. Na maioria dos casos, entretanto, as perdas são ainda mais importantes. A literatura acadêmica e técnica, assim como os casos estudados por esta Comissão Especial, apontam para a degradação generalizada das condições materiais e imateriais da vida social, familiar e individual” (CDDPH, 2006, pp.32-33)

Como explica Vainer (1990, p.106), a natureza e lógica dos grandes projetos hidrelétricos não deixam dúvidas. Trata-se de explorar determinados recursos naturais e mobilizar certos territórios para atingir a finalidade específica da produção de eletricidade.

“Tudo que contrarie ou escape a este fim aparece como obstáculo e, no cronograma financeiro, aparece na rubrica de custos”.

Nesse sentido, a população atingida é considerada mero obstáculo ao projeto na forma de um custo econômico que deve ser “minimizado”(Viana, 2003, p. 35). Ou, ainda, Conforme Amorim e Jesus (2006, p.12), na maioria das vezes os atingidos têm sido tratados como meros empecilhos à “selvageria da eletricidade”. O sofrimento dos deslocados pelas barragens, conforme destaca Sônia Santos na tese Lamento e Dor (2007), na qual fez uma análise socio-antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens, ainda representa uma dimensão negligenciada tanto pela indústria barrageira quanto por pesquisadores dedicados à produção de conhecimento sobre as consequências sociais das barragens.

57 A perda das terras comunais, espaço comum dividido entre pessoas de uma mesma localidade, é um impacto frequentemente desconsiderado nos programas de reassentamento.

“Para muitos trabalhadores rurais, especialmente os mais pobres, a perda das áreas comunais representa uma das piores perdas, já que boa parte da subsistência dessas pessoas é adquirida nesses territórios. Relacionado à perda de terras comunais está o problema do endividamento – um dos efeitos mais graves de longo prazo. Como o reassentamento normalmente desestrutura redes sociais e padrões vigentes de economia de subsistência, ele tende a aumentar a dependência do mercado e do dinheiro, obrigando a população deslocada a se endividar ou a se assalariar, abandonando suas formas tradicionais de vida” (Viana, 2003, p. 40-41).

O reassentamento também pode causar de mortes e doenças. Evidências mostram que as taxas de mortalidade e morbidade aumentam muito depois do deslocamento, principalmente entre os mais jovens e os mais idosos.

“Idosos tradicionais e líderes de comunidades tradicionais são frequentemente marginalizados, pois se mostram impotentes de proteger o seu grupo da desapropriação. Às vezes, eles são substituídos por membros mais jovens da comunidade que têm uma educação formal e podem negociar de outra forma com os funcionários do governo. Líderes religiosos e protetores de locais sagrados que foram inundados podem perder o seu estatuto social, uma vez que tais cerimônias não podem mais ser realizadas” (McCully, 2004, p. 166).

Em um estudo realizado com a comunidade deslocada pela barragem Rengali, em Orissa, na Índia, antropólogos constataram sintomas de uma vasta ruptura social e cultural. McCully (2004, p. 167) afirma com base no estudo realizado por Behura et Nayakque (1993) famílias que antes gozaram de prestígio social uma vez deslocadas já não podiam ajudar outros membros da família ou da casta como faziam e passaram a depender de famílias não- deslocadas. As disputas relacionadas à divisão do dinheiro da indenização também causaram desconfiança e sofrimento. Os grandes núcleos familiares se dissolvaram em pequenos núcleos já que a indenização era paga a famílias-núcleo. Relacionado à organização comunal, os grupos que coordenavam os temas políticos, econômicos e rituais também começaram a dissolver-se.

58 “O entusiasmo, a abundância e o esplendor das ocasiões festivas se perderam: festas tradicionais passaram a ser marcadas mais pela melancolia do que pelo júbilo” (Behura et Nayakque, 1993, p. 303 cit por McCully, 2004, p. 167).

Também o relapso das autoridades em relação às diferenças étnicas dos povos – línguas, rituais, deuses e costumes – pode produzir conflitos, disputas e tensões quando diferentes grupos são realocados no mesmo espaço. No caso de grupos étnicos, pequenas mudanças no design das casas ou no arranjo do assentamento podem causar tensões e até implicar na perda cultural das mesmas.