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Atomos e qualidades pontuais ´

4.4 Figura¸c˜ oes e Causalidade

4.4.3 Atomos e qualidades pontuais ´

Oresme denomina a representa¸c˜ao da constitui¸c˜ao material dos corpos de sua fi- gura¸c˜ao quantitativa, e de figura¸c˜ao qualitativa a representa¸c˜ao de suas qualidades,

47Tais considera¸oes Oresme diz terem sido demonstradas em teoria da m´usica, e tamb´em por Wi-

telo, no quarto livro de sua Perspectiva: “que algumas propor¸c˜oes s˜ao mais perfeitas e mais agrad´aveis

que outras, n˜ao apenas nos sons mas em outras coisas tamb´em (de fato, algumas s˜ao simplesmente

belas e harmoniosas, embora poucas, como diz Arist´oteles, em seu De sensu et sensato), assim tamb´em

algumas figuras corp´oreas execedem outras em beleza e s˜ao simplesmente mais nobres e mais perfeitas.”

/ “est quod quedam proportionem sunt aliis perfectiores et delectabiliores et nedum in sonis sed etiam in aliis, ymmo quedam sunt simpliciter pulchre et simphonice, licet pauce, prout vult Aristoteles in de sensu et sensato, sic etiam certum est quasdam figuras corporeas alias excellere in pulchritudine et

esse simpliciter nobiliores et perfectiores.” De configurationibus, I.xxvi. Assim, ser˜ao mais perfeitas e

mais nobres as configura¸c˜oes de qualidades que forem proporcionais as figuras mais perfeitas e nobres.

48“Inde sequi videtur. Quod ille species que sibi determinat tales nobiliores configurationes suarum

qualitatum sint nobilioris complexionis et perfectioris nature, et quod in uma et eadem specie illud suppositum sit melius complexionatum ceteris paribus cuius radicalis qualitas proprius habet modum configurationinis debitum sue speciei.” De configurationibus, I. xxvi.

imaginada conformemente `a figura¸c˜ao quantitativa49. Como foi anteriormente exposto, a possibilidade de falar conformemente de uma e de outra figura¸c˜ao baseia-se na no¸c˜ao de proporcionalidade, que por sua vez depende da divisibilidade das qualidades. Esta conformidade entre figura¸c˜ao quantitativa e figura¸c˜ao qualitativa, ou entre corpos ma- teriais e qualidades, levou Durand (1941, p. 172-185) a reconhecer na men¸c˜ao de “part´ıculas de qualidade” e “part´ıculas impercept´ıveis” dos cap´ıtulos xxii e xxiii da primeira parte do De configurationibus uma poss´ıvel ado¸c˜ao do atomismo por parte de Oresme.50 Durand afirma que a doutrina das figura¸c˜oes de Oresme deve ser lida n˜ao apenas como uma quantifica¸c˜ao da f´ısica, mas como uma disciplina que faria uso de representa¸c˜oes geom´etricas verossemelhantes e reveladoras da natureza mesma das qualidades:

O que Oresme vai ao encontro de uma teoria da rela¸c˜ao entre a ordem, figura e disposi¸c˜ao

das part´ıculas impercept´ıveis que comp˜oem os objetos materiais e as figuras geom´etricas

que ser˜ao obtidas quando suas [das part´ıculas] qualidades ativas e passivas forem repre-

sentadas de acordo com extens˜ao e intensidade. Em outras palavras, a figura e o padr˜ao

do diagrama mantˆem uma correspondˆencia imediata de um para um, n˜ao apenas com a

verdadeira figura do objeto em quest˜ao e com suas partes constituintes, mas tamb´em com

as variadas propriedades que ele possui.51

A dissolu¸c˜ao da diferen¸ca entre qualidade e quantidade operada pela interpreta¸c˜ao de Durand contradiz, por´em, algumas passagens do De configurationibus – como a previamente citada passagem em que Oresme afirma, de uma qualidade figurada por um seguimento de c´ırculo, que ela pode ser figurada igualmente por outras figuras — e, ainda que considerar o uso do termo “part´ıcula” nos cap´ıtulos xxii e xxiii como uma indica¸c˜ao de atomismo n˜ao seja uma interpreta¸c˜ao interdita52, outras leituras tamb´em

49Cf. De configurationibus, I.xxxi.

50Cf. DURAND, D. “Nicole Oresme and the Mediaeval Origins of Modern Science”, Speculum, Vol.

16, No. 2, (Apr., 1941), p. 177

51Cf. DURAND, ibid., p. 179.

52 Anneliese Maier tamb´em interpreta Oresme desta maneira: “Para Oresme, estas [figura¸oes]

s˜ao as formas espaciais verdadeiras e reais das qualidades. A grandeza intensiva n˜ao ´e outra coisa

que uma dimens˜ao espacial, invis´ıvel sem d´uvida, mas conhec´ıvel pela raz˜ao humana”. MAIER. A,

s˜ao poss´ıveis. Por exemplo, considerando que no cap´ıtulo xxii cada part´ıcula de uma dada qualidade, e n˜ao a qualidade como um todo, ´e dita proporcional em intensidade a uma pirˆamide, isto ´e, a um corpo de trˆes dimens˜oes, pode-se supor que Oresme est´a tratando de uma qualidade corp´orea e que por “part´ıcula” deve-se entender apenas parte ou superf´ıcie.

Outra quest˜ao afasta a conclus˜ao de que a ciˆencia do De configurationibus pressup˜oe um atomismo, qual seja, a considera¸c˜ao da dificuldade encontrada pelo vocabul´ario do sistema de figura¸c˜oes para tratar do que ´e indivis´ıvel.

A terminologia do De configurationibus ´e utilizada n˜ao apenas para tratar das quali- dades de sujeitos materiais e divis´ıveis; ela aplica-se tamb´em a considera¸c˜ao de sujeitos imateriais e indivis´ıveis, tais como as substˆancias separadas ou a alma. Entretanto, de um sujeito imaterial e indivis´ıvel n˜ao se pode dizer quantidade ou extens˜ao. Assim, Oresme prop˜oe que se represente a n˜ao-extens˜ao da qualidade daquilo que ´e indivis´ıvel por meio de pontos indivis´ıveis, a intensidade de tais qualidades, j´a que infinitamente divis´ıvel, sendo representada por uma linha. `As qualidades cujo sujeito ´e um ponto d´a-se o nome de qualidades pontuais.

Uma dificuldade surge, entretanto, quando se procura figurar qualidades pontuais por meio dos mesmos preceitos que regulam a figura¸c˜ao de qualidades lineares, superfi- ciais e corp´oreas. Tendo em vista que uma qualidade pontual tem apenas um grau, ou seja, ´e figurada por uma ´unica linha, torna-se evidente que tal figura¸c˜ao n˜ao pode ser feita por proporcionalidade, pois ´e poss´ıvel estabelecer propor¸c˜ao apenas por meio da compara¸c˜ao da intensidade em diferentes pontos ou, o que ´e o mesmo, pela compara¸c˜ao de duas linhas. Ademais, Oresme afirma que o comprimento de uma linha n˜ao pode ser determinado pela pr´opria intensidade que ela representa. Assim, nota-se que n˜ao ´e

Segundo Clagett, Maier sugere tamb´em um poss´ıvel atomismo de Oresme (Cf. MAIER, ibid., p.343).

O pr´oprio Clagett diz n˜ao ser poss´ıvel concluir que intensidades s˜ao de fato espaciais para Oresme, e

considera a alus˜ao ao atomismo antigo do cap´ıtulo xxii apenas uma analogia. Cf. CLAGGET, ibid.,

poss´ıvel falar de diferentes configura¸c˜oes para as qualidades permanentes de um sujeito indivis´ıvel, e que por meio da figura¸c˜ao de uma tal qualidade n˜ao se chega a qualquer conhecimento. Somente ´e poss´ıvel obter conhecimento por compara¸c˜ao, seja da mesma qualidade em dois sujeitos indivis´ıveis distintos – caso em que se pode dizer, por exem- plo, que um tem o dobro desta qualidade que o outro – seja de diferentes qualidades permanentes de um mesmo sujeito indivis´ıvel – caso em que se pode dizer que uma qualidade est´a presente em maior quantidade neste sujeito que outra.

Uma dificuldade similar n˜ao acompanha a considera¸c˜ao do movimento de um su- jeito indivis´ıvel, j´a que um movimento pode ser considerado em sua extens˜ao temporal – ´unica extens˜ao admiss´ıvel para um sujeito que n˜ao tem partes – sendo, portanto, poss´ıvel estabelecer propor¸c˜oes entre os intervalos do tempo e as velocidades do movi- mento. De qualquer modo, dada a dificuldade que parece acompanhar a considera¸c˜ao das qualidades pontuais, torna-se estranho procurar interpretar a ciˆencia do De confi- gurationibus em vista de um suposto atomismo, uma vez que o vocabul´ario de Oresme ´e propriamente aplicado para tratar do que ´e cont´ınuo, ou infinitamente divis´ıvel, sendo problem´atico para tratar do que ´e indivis´ıvel.