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Qualidades, velocidades e linhas

A principal raz˜ao fornecida por Oresme para justificar a possibilidade de se falar conformemente de qualidades e quantidades baseia-se na no¸c˜ao de proporcionalidade. Assim, nas Questiones super geometriam Euclidis7- obra anterior ao De configurationi- bus - ele apresenta trˆes aspectos sobre os quais qualidades podem ser ditas compar´aveis a superf´ıcies:

O primeiro ´e que a propor¸c˜ao de qualidades ´e como a propor¸c˜ao de superficies do mesmo

modo que dizemos, na m´usica, que a propor¸c˜ao de som para som ´e como a propor¸c˜ao

de corda e corda, e assim por diante. O segundo ´e que a similitude e dissimilitude de

qualidades em intensidade e extens˜ao ´e como a similitude e dissimilitude de superficies

[...]. O terceiro ´e que existe alguma intensidade de tal maneira imaginada por uma linha

que ´e imposs´ıvel que ela seja imaginada por uma linha mais ou menos extensa.8

A compreens˜ao do primeiro e principal aspecto em que qualidades s˜ao ditas com- par´aveis a quantidades depende, portanto, do esclarecimento disto que permite afirmar que h´a propor¸c˜ao entre as intensidades de uma qualidade. Ver-se-´a que ´e poss´ıvel haver propor¸c˜ao entre intensidades porque Oresme pressup˜oe que qualidades podem ser ditas “sucessivas” ou “divis´ıveis”.

O termo “sucessivo” deve ser compreendido `a luz da distin¸c˜ao, tra¸cada no cap´ıtulo xiii da segunda parte do De configurationibus, entre entidades permanentes e entidades sucessivas9. Entidades permanentes s˜ao aquelas cuja essˆencia ´e permanente e indivis´ıvel,

7ORESME, Nicole. Questiones super geometriam Euclidis, apud Clagett, De configurationibus,

Apˆendice I.

8“Primum est quod proportio qualitatum est sicud proportio superficierum eo modo quo didicmus

in musica quod proportio soni ad sonum est sicud corde ad cordam, et adhuc plus. Secudum est quod similitudo e dissimilitudo qualitatum in intensione et extensione est sicud similitudo e dissimilitudo superficierum [...]. Tertuim est quod est aliqua intensio que sic ymaginanda est / per unam lineam, qoud impossibile est eam ymaginari per maiorem aut minorem.” Cf. Questiones super geometriam

Euclidis, quest˜ao 11 apud Clagett, De configurationibus, Apˆendice I. O terceiro aspecto listado nas

Questiones ser´a posteriormente descartado no De configurationibus.

9 “Certas coisas s˜ao t˜ao sucessivas que n˜ao de modo algum permanecer, por exemplo tempo e

movimento. Outras s˜ao t˜ao permanentes que, embora precisem existir ou durar temporalmente, di-

visivelmente ou sucessivamente, ainda assim sua essˆencia continua a mesma durante todo o tempo, e

n˜ao pode ser sucessiva, por exemplo substˆancias imateriais e indivis´ıveis. Por´em, a primeira delas, que

e das quais n˜ao se pode geralmente dizer “sucess˜ao”. Oresme fornece como exemplos destas, as substˆancias separadas (inteligˆencias) e Deus - com a ressalva de que, embora possuam essˆencia permanente, as substˆancias separadas ainda assim existem temporal- mente ou sucessivamente, enquanto que Deus ´e absolutamente indivis´ıvel, e dele n˜ao se pode predicar qualquer sucess˜ao10. Como exemplo de entidades sucessivas, isto ´e, de entidades das quais ´e poss´ıvel dizer “divisibilidade” ou “sucess˜ao”, Oresme menciona o tempo e o movimento11. Qualidades, por sua vez, pertencem ao tipo de coisa que, em- bora possua essˆencia permanente, pode ainda assim ser totalmente sucessiva ou similar a algo totalmente sucessivo12:

Pois assim como na intensidade da curvatura ou da raridade existem continuamente di- ferentes curvaturas e diferentes raridades, enquanto que no tempo todo se trata de uma

curvatura ou raridade sucessiva, e similarmente nos casos de aumento de uma propor¸c˜ao

ou uma dissimilaridade, assim eu imagino que seja no caso da intensidade de qualquer

qualidade pass´ıvel de intensifica¸c˜ao, como calor ou brancura, e similarmente para o caso

da remiss˜ao da mesma qualidade. E n˜ao h´a nesses casos real multiplicidade ou super-

posi¸c˜ao de graus, como alguns pensam. Assim, tal qualidade, durante todo o tempo

em que h´a altera¸c˜ao ´e uma qualidade sucessiva e em qualquer parte ´e diferente, mas tal

qualidade ´e uma coisa permanente sempre que est´a em um sujeito que n˜ao ´e alterado de

nenhuma maneira com respeito a essa qualidade”13

sucessiva. Ele permanece indivis´ıvel e infinitamente o mesmo por toda sua indivis´ıvel e indetermin´avel

eternidade, que ´e o mesma que Deus” / “Rerum quedam sunt ita successive quod non possunt aliqoud

modo permanere, sicut tempus et motus. Alie sunt ita permanentes quod licet habeant esse vel durare temporaliter, divisibiliter, et successive, tamen earum essentia toto illo tempore eadem permanet nec potest esse aliqualiter successiva, sciut substantie indivisibiles et immateriales. Sed prima illarum, que Deus est, nec habet essentiam successivam nec esse sive durare quoquomodo successivum. Ymmo indivisibiliter et infinite permanet per seipsam eternitate sua indivisibili et intermanibili, que est idem quod ipsemet Deus.” De configurationibus, II.xiii.

10 Esta ressalva permite compreender por que motivo `as inteligˆencias e o movimento celeste s˜ao

tratados no De configurationibus, ao passo que Deus est´a fora do escopo da disciplina.

11 Muito embora tempo seja dito “ente” ou “ser” apenas impropriamente: “Propriamente falando

tempo n˜ao ´e uma coisa, mas ´e antes um modo de uma coisa, assim como Arist´oteles diz que um

acidente n˜ao ´e um ser, mas ´e de um ser, isto ´e, uma disposi¸c˜ao de ser.” / “Unde proprie loquendo

tempus sic sumptum non est aliqua res sed est modus rei, sicut Arist´oteles dicit quod accidens non est

ens sed est entis, sicilicet dispositio entis.” De configurationibus, II.ii.

12“Mas existem outras coisas cuja essˆencia ´e permanente enquanto que a mesma coisa ou algo similar

pode ser totalmente sucessivo. Deste tipo s˜ao acidentes tais como propor¸c˜ao, similitude, curvatura,

raridade, luz e, universalmente, toda qualidade pass´ıvel de intensifica¸c˜ao e remiss˜ao.” “Alie vero sunt

res quarum essentia est permanes, sed eadem vel similis potest esse totaliter sucessiva. Cuismodi sunt quedam accidentia, sicut est proportio, similitudo, curvitas, raritas, lumen, et universaliter omnis qualitas intensibilis et remissibilis.” De configurationibus, II.xiii.

Diz-se “sucessiva” toda qualidade que sofre altera¸c˜ao, isto ´e, cuja intensidade varia ao longo do tempo, e “permanente”, toda qualidade que n˜ao sofre altera¸c˜ao, isto ´e, cuja intensidade n˜ao varia ao longo do tempo. Ao movimento de altera¸c˜ao d´a-se o nome de intensifica¸c˜ao quando a qualidade torna-se mais intensa no sujeito que ela informa, e de remiss˜ao, quando se torna menos intensa – por exemplo, a qualidade “brancura” de um determinado objeto intensifica-se quando este objeto torna-se mais branco, e ´e remitida quando ele torna-se menos branco.

Oresme assume que a intensidade de uma qualidade pode ser imaginada sendo infi- nitamente intensificada ou remitida. Em outras palavras, ele pressup˜oe que qualidades s˜ao cont´ınuas, possuem infinitas partes ou graus e podem ser divididas ao infinito.14 Uma vez que tais graus s˜ao cont´ınuos, e n˜ao discretos, as propor¸c˜oes que podem se manter entre eles s˜ao encontradas entre linhas e superf´ıcies15, mas n˜ao necessariamente entre n´umeros, o que justificar´a a escolha da geometria como a parte da matem´atica adequada para representar qualidades na natureza16.

Sucess˜ao, no entanto, pode ser no tempo – como no caso de entidades sucessivas (mo- vimentos, qualidades sofrendo intensifica¸c˜ao ou remiss˜ao) – ou pelas partes do sujeito.

alia raritas et toto temore illo est uma curvitas vel raritas successiva et conformiter in augmento porportionis vel dissimilitudinis, ita ymaginor in intensione cuiuscunque qualitas intensibilis, sicut caliditatis vel albedinis, et similiter in eiusdem qualitatis remissione. Nec est ibi realis multitudo sive superpositio graduum prout aliqui opinantur. Talis ergo qualitas toto illo tempore in quo est alteratio est uma qualitas successiva et in qualibet eius parte est alia et alia, sed talis qualitas est permanens quotiens est subiecto quod secundam ipsam nullatenus alternatur. Sic igitur est quedam proportio permanens, alia successiva; [...] quedam caliditas vel albedo permanes, alia successiva; et universaliter de quibuslibet qualitatibus intensibilibus et remissibilibus.” De configurationibus, II.xiii.

14Cf. De configurationibus, I. i.

15 Oresme pressup˜oe que toda propor¸ao existente entre dois cont´ınuos da mesma esp´ecie pode ser

encontrada entre dois cont´ınuos de qualquer outra esp´ecie de cont´ınuo. Nisto Oresme pensa estar

de acordo com Arist´oteles, no quarto livro da F´ısica, e tamb´em com Witelo e com o coment´ario de

Campanus aos Elementos de Euclides (Cf De configurationibus, Apˆendice I).

16Por exemplo, algumas propor¸oes irracionais n˜ao poderiam ser representadas por n´umeros: “Por

esta raz˜ao, ele [Campanus] parece compreender que a denomina¸c˜ao de algumas [propor¸c˜oes irracionais]

n˜ao ´e conhec´ıvel pois elas n˜ao tˆem qualquer denomina¸c˜ao, j´a que toda denomina¸c˜ao, seja mediata ou

imediata, ´e denominada por algum n´umero.” / “Quare, potius, videtur intelligere quod denominationes

aliquarum non sunt scibiles quia ipsarum nulle sunt denominationes cum omnis denominatio, vel mediate vel immediate, ab aliquo numero denominetur.” ORESME. De proportionibus proportionum, cap´ıtulo 1, 330.

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E poss´ıvel, assim, dizer que h´a divisibilidade tamb´em de qualidades permanentes, na medida em que estas s˜ao qualidades de um sujeito divis´ıvel.17 Por exemplo a qualidade “vermelhid˜ao” de uma linha ´e divis´ıvel, pois pode-se falar da intensidade do verme- lho nos diferentes pontos da linha, e estas intensidades podem mesmo variar, de modo que a linha seja mais vermelha no fim que no in´ıcio. Desse modo, tamb´em qualidades permanentes tem graus que mantˆem entre si diferentes propor¸c˜oes.

O segundo aspecto em que qualidades s˜ao ditas compar´aveis a quantidades decorre do primeiro aspecto, pois a similitude e dissimilitude de qualidades ´e dita ser como a de linhas ou superf´ıcies devido ao fato das propor¸c˜oes entre umas e entre outras serem mutuamente comensur´aveis e incomensur´aveis:

Qualquer que seja a propor¸c˜ao encontrada entre intensidade e intensidade, relacionando

intensidades do mesmo tipo, uma propor¸c˜ao similar ´e encontrada entre linha e linha,

e vice-versa. Pois, assim como uma linha ´e comensur´avel com outra linha, e incomen-

sur´avel com ainda outra, similarmente com respeito a intensidades, algumas s˜ao mutua-

mente comensur´aveis e outras incomensur´aveis [e isto] de qualquer maneira, devido a sua

[propriedade de] continuidade18

Os mesmos racioc´ınios previamente elencados s˜ao utilizados na segunda parte do De configurationibus para justificar a figura¸c˜ao de velocidades. Assim, velocidades de um movimento podem ser imaginadas sendo infinitamente intensificadas, e s˜ao entre si comensur´aveis e incomensur´aveis do mesmo modo que linhas, pois:

´

E o mesmo com rela¸c˜ao `a intensidade “velocidade”, nomeadamente, que toda propor¸c˜ao

encontrada entre intensidades de velocidade s˜ao tamb´em encontradas entre linhas, do

mesmo modo que foi dito no cap´ıtulo dois da primeira parte sobre outras intensidades [de

qualidades].19

17 Oresme fala tamb´em das qualidades de sujeitos indivis´ıveis. Entretanto, trata-se de um uso

problem´atico de seu vocabul´ario.

18“Nam quecunque proportio reperitur inter intensionem et intensionem de intensionibus que sunt

eiusdem rationis similis proportio invenitur lineam et lineam et contra; quemadmodum enim uma linea alteri linee est commensurabilis et alteri incommensurabilis, ita est conformiter de intensionibus quod quedam sunt commensurabiles adinvicem et quedam incommensurabiles quomodolibet propter continuitatem earundem.” De configurationibus, I. i.

19 “Et similiter est de intensione velocitatis, videlicet quod omnis proportio que reperitur inter

intensionem velocitatis reperitur etiam inter lineam et lineam, sicut de aliis intensionibus dicebatur in 2o capiyulo prime partis. Ideoque in notitiam difformitatum velocitatum possumus devenire per ymaginationem nilearum ac figurarum.” De configurationibus, II.viii.

Assim, pode-se tamb´em chegar a ter conhecimento das disformidades de velocidades por meio da imagina¸c˜ao de figuras geom´etricas. Qualidades e movimentos s˜ao figurados, de acordo com suas disposi¸c˜oes (i.e, com sua uniformidade e disformidade), por meio de um mesmo sistema de figura¸c˜oes.