• Nenhum resultado encontrado

4 POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESPORTE E LAZER NO BRASIL: O

4.1 Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC)

4.1.2 Auto-organização comunitária

Para debater a auto-organização comunitária, faz-se necessário compreender os conceitos de autonomia, participação social, democracia participativa, além do trabalho coletivo; o que se deve ao fato de esses elementos serem o alicerce no processo da construção autônoma nas comunidades.

Autonomia pensada por meio do senso comum pressupõe interdependência do sujeito em relação aos outros sujeitos. No entanto, Castoriadis (1982), entre outros autores, afirma que o indivíduo não se encontra totalmente independente de outras pessoas, já que a “exclusão total dos outros, ou dos discursos dos outros, pelo sujeito é uma condição não-histórica, isto é,

uma condição de negação do processo histórico de relações humanas que qualquer pessoa sofre ao viver em sociedade” (CASTORIADIS, 1982, p. 126). Nessa perspectiva, a autonomia ocorre de forma coletiva, mediante a interdependência entre os indivíduos, na qual o homem se considera sujeito do processo histórico e responsável pela condição social individual e coletiva.

Segundo Freire (2004), a autonomia verifica-se na capacidade do sujeito em criar suas representações do mundo, buscar estratégias para resolução de problemas e, ainda, compreender-se como sujeito histórico, que intervém e faz parte dela. Essa autonomia relaciona-se diretamente na condição do sujeito em posicionar-se perante seus pares, apresentando suas ideias e posições diante de determinado problema.

A possibilidade de repercussão das ideias do indivíduo no coletivo será maior na comunidade que na sociedade, o que ocorre pela caracterização de cada uma delas, sendo a primeira, um espaço da vida real e orgânica, mais forte e viva entre os homens, duradoura, verdadeira. Já na organização em sociedade, por ser um modelo mais complexo, há mobilidade e anonimato maior entre os sujeitos, estabelece-se uma relação mecânica e imaginária. “Se na comunidade os homens permanecem unidos apesar de todas as separações, na sociedade permaneceriam separados não obstante todas as uniões.” (TÖNNIES, 1947, p. 65).

Na sociedade, o sujeito está sozinho e isolado, em um Estado de tensão perante os outros. As esferas particulares de atividade e de poder são nitidamente limitadas pela relação com os demais, de tal forma que cada um se defende do contato com os outros, e limita ou proíbe a inclusão desses em sua esfera privada, sendo tais intrusões consideradas hostis. Já na comunidade, as relações sociais caracterizam-se por uma proximidade entre as pessoas, os sentimentos entre elas são comuns, recíprocos. Na comunidade, os princípios e os valores estão pautados em uma dimensão mais solidária e humanizante em relação à sociedade (TÖNNIES, 1947).

Conforme explanado, a autonomia pressupõe a relação direta do sujeito no seu coletivo, na interdependência deles, ela depende da construção realizada entre o homem com os outros e com o conhecimento, pois “todo processo de autonomia e construção de consciência nos sujeitos exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o discurso teórico terá de ser alinhado à sua aplicação” (MACHADO, 2008, p. 57). É tratar da autonomia como uma relação dialética entre teórica e prática – práxis – como forma de complementação entre elas, saindo da lógica de que a teoria é só fala e a prática é ativismo.

O sujeito autônomo compreende seu papel na comunidade e na sociedade em que se encontra inserido, posiciona-se diante das necessidades, sejam elas individuais, sejam coletivas; é um ser ativo que articula as dimensões sociais, políticas e culturais mediante a relação dialética teoria-prática. “É um sujeito consciente da sua condição política na interação com o mundo e consegue desvelar os fenômenos que o impedem a visibilidade diante das decisões que precisa tomar.” (SILVA, 2009, p. 106).

Ainda corroborando Freire (2004), na construção de uma sociedade democrática, a autonomia é fundamental, é por meio dela que os indivíduos apresentam seus anseios, mostrando que tipo de sociedade é melhor para viver; segundo o autor, um sujeito autônomo é um sujeito emancipado.

Existem ainda pesquisadores, como Souza (1995), que discutem autonomia pelo aspecto geográfico, definindo como autonomia do lugar e do território. A autonomia do lugar é compreendida como espaço de vivência e convivência das pessoas, e autonomia do território “como espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder” (SOUZA, 1995, p. 78). Tomando como referência essa compreensão de autonomia pelo viés da geografia, faz-se necessário pensar na identidade dos sujeitos que ocupam o lugar e o território.

A identidade territorial relaciona-se com o sentimento de pertencimento do sujeito a determinado território, até mesmo de domínio deste. As identidades se associam ao espaço, elas “se baseiam nas lembranças divididas, nos lugares visitados por todos, nos monumentos que refrescam a memória dos grandes momentos do passado, nos símbolos gravados nas pedras das esculturas e nas inscrições” (CLAVAL, 1997, p. 107).

De acordo com esse entendimento de pertencer dos sujeitos, é possível relacionar com a proposta do PELC na forma de organização dos núcleos de esporte recreativo e de lazer, que visa à criação de círculos de convivência social, local de encontro entre as pessoas que fazem parte do programa e passam a ser estimuladas pelos agentes sociais de esporte e lazer a se tornarem “parte” daquele lugar/espaço de encontro. A partir daí, pressupõe-se que os participantes zelam, mantêm e preservam o ambiente no qual são desenvolvidas as atividades do PELC.

No que concerne à compreensão de autonomia como forma de organização coletiva interdependente entre os sujeitos envolvidos, é possível perceber nos procedimentos metodológicos adotados pelo PELC tendo como base a educação popular. A partir do momento em que os participantes se sentem pertencentes a um grupo, não veem problema em expressar suas ideias sobre algo, fazendo uso de sua autonomia. Porém, ao expressarem sua

ideia, dão margem para que seja confrontada com a de outro participante, e nesse processo educativo e dialógico se constitui uma posição do grupo/coletiva, e não mais do indivíduo.

É importante destacar a existência de outro tipo de identidade, a de resistência:

criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos. (CASTELLS, 1999, p. 24).

Esses dois tipos de identidade (territorial e de resistência) têm uma significação sociocultural relevante aos grupos mais desfavorecidos. Ambas convergem para o fenômeno da solidariedade, que surge “a partir das proximidades dos indivíduos (relações de vizinhança), o que favorece a comunicação entre vizinhos (convivência), e desta solidariedade surge a organização. Esta organização solidária subsiste e se origina no local [...] formando assim redes sociais” (CASTELLS, 1999, p. 79). Para que essa organização solidária ocorra, é necessário um processo de mobilização social, ou seja, ou sujeitos precisam participar dos movimentos organizados, definindo neles os interesses comuns, do coletivo, compartilhando.

A mobilização social não pode ser confundida com o aglomerado de pessoas em um determinado evento, como passeatas e paralisações; mas sim quando um grupo de pessoas, seja na comunidade, seja na cidade/sociedade, organiza-se coletivamente focando um objetivo comum, na busca de alcançar os resultados desejados por todos. Mobilizar é “convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhado” (TORO; WERNECK, 1996, p. 5).

Ela requer uma dedicação contínua, e para que seja útil, deve estar orientada para a construção de um projeto. Devem ser compartilhadas as ações, os discursos e objetivos de forma que permita o sujeito não se sentir isolado no seu campo de atuação cotidiana, pois ele vai saber que outras pessoas que comungam do mesmo propósito também estão agindo nos seus espaços específicos e em seu cotidiano.

Essas formas de mobilização social vão despertar nos indivíduos a necessidade de se auto-organizar, seja por meio de associações comunitárias, sindicatos, ligas esportivas, associação de moradores, seja grupos de convivência de idosos, etc. No entanto, o que precisa ficar claro é que essas diferentes formas de auto-organização não podem ser consideradas como uma panaceia para resolução dos problemas socioeconômicos, mas sim uma possibilidade de, no coletivo, resistir para transformar suas realidades. Como afirma Suertegaray (1999), a auto-organização surgiu para explicar a complexidade biológica (a

complexidade da vida dos seres), no entanto, na atualidade, vem sendo utilizada em diversas áreas do conhecimento como Medicina, Física, Educação, Economia, sendo reconhecida como teoria construtivista influenciada pela hermenêutica57.

Diante desse entendimento de auto-organização, a participação é um elemento essencial para que se chegue a esse nível de organização autônoma, pois “as dependências com respeito ao outro e ao meio externo, portanto, devem obrigatoriamente ser consideradas em qualquer processo de participação” (TARTARUGA, 2001, p. 83).

A participação diz respeito à construção de interpretações ou de entendimentos das realidades do indivíduo ou de coletividades humanas. Já que enfatiza a ideia de agregar indivíduos na busca de decidir a direção de sua vida, seja no plano local, seja global. Sendo assim, é possível afirmar que participação é um ato de liberdade, e a participação popular requer a discussão entre seus pares de forma igualitária, ou melhor, que todos os envolvidos no processo tenham igualdade de condições e conhecimento para construir alternativas e decisões que contribuam para o avanço coletivo.

Trabalhar de forma participativa na sociedade atual requer um esforço na luta contra o individualismo mercantilista que o neoliberalismo vem implementando; é estar atento à globalização, pois, ao mesmo tempo em que possibilita o acesso e a criação de uma rede de contatos, ameaça ações democráticas participativas ao alimentar a tensão entre a prática política de movimentos populares e associações civis (BONALUME et al. 2007, p. 86).

Uma forma de dialogar com o aspecto da participação é por meio da democracia participativa, que surge inicialmente em contraposição ao modelo hegemônico da democracia liberal, na medida em que restringe a participação dos cidadãos no voto. De acordo com Pateman (1992), a democracia participativa pressupõe uma participação maior dos cidadãos nas decisões governamentais, atuando assim como sujeito político. A cada vez que o indivíduo participa dos processos decisórios da política, ele se integra na sua comunidade. A democracia participativa exige transparência na ação e em seu resultado, todo o procedimento democrático deve ser um exercício coletivo de poder.

A respeito da participação, Poulantzas (1995) afirma que deve ser amplamente difundida a democracia nas diferentes esferas de poder, na perspectiva de gerar um movimento das camadas populares em todos os setores na sociedade. Em uma sociedade democrática, valoriza-se o discurso e as ideias dos indivíduos, considerando que estes desejam o bem-estar comum entre todos aqueles pertencentes ao seu meio de convivência.

57

“Hermenêutica pressupõe a construção do objeto pelo sujeito admitindo a reconstrução do sujeito pelo objeto.” (SUERTEGARAY, 1999, p. 5).

Aceita o outro como igual em direitos e oportunidades, mesmo com seus traços individuais, suas especificidades, já que será por meio delas a busca por um único propósito, contribuindo assim com a elaboração e o cumprimento das normas estabelecidas.

Democracia supõe a “construção da equidade social, econômica, política e cultural” (TORO; WERNECK, 1999, p. 9). A democracia deve ser construída coletivamente e cotidianamente, procurando respeitar as diferenças e as opiniões dos membros envolvidos no debate, por mais que sua posição possa ir de encontro aos demais do grupo. Em meio a esse cenário de conflitos, o importante é procurar amenizar colocando como pauta o bem comum, o bem coletivo, e uma das formas de atingir a maturidade democrática, pode ser pelo exercício da auto-organização.

Para que se alcance o nível de auto-organização comunitária, a presença da autonomia, participação e democracia é indispensável, por considerar que esses elementos serão os alicerces das ações a serem desenvolvidas pela e na comunidade. O desenvolvimento da auto- organização comunitária sucede pelo estímulo à liberdade dos sujeitos em expressar suas ideias e saberes dentro do coletivo, pela presença ativa dos sujeitos nas ações desenvolvidas, permitindo que o sujeito sinta-se à vontade sem o receio de ser persuadido ou rejeitado pelos seus pares ao expressar sua opinião que, por ora, pode vir a divergir dos demais. Contudo, que seja um local, espaço e/ou território onde esses sujeitos se sintam pertencentes para se posicionar em igualdade de condições. Nesse tipo de organização, a compreensão dos sujeitos como seres críticos, conscientes e criativos é o primeiro passo para a materialização desse princípio democrático e popular.

No PELC a auto-organização comunitária ocorre na medida em que os participantes conseguem organizar-se independentemente do agente social e/ou coordenador de núcleo. É uma organização própria da comunidade. Parte do pressuposto da necessidade coletiva de constituir um grupo para além do PELC, passando a ser reconhecido em sua comunidade. Essa autonomia criada e gerida pelo próprio grupo pode desdobrar na formação de líderes comunitários, passando a não somente atender às necessidades do grupo/PELC, mas a representar os interesses de um todo coletivo muito maior, sua comunidade; que, porventura, demanda outras questões para além do esporte recreativo e de lazer. É preciso que na auto- organização, todos, “na medida do possível, ocupem sucessivamente todos os lugares, tanto as funções dirigentes como as funções subordinadas” (PISTRAK, 1981, p. 40).

O hábito adquirido no desempenho de diversas funções no interior dos grupos de convivência do PELC possibilita analisar cada problema novo como motivador para um novo processo de organização. Seja na criação de um novo equipamento/espaço esportivo e de lazer

em sua comunidade, o planejamento e a realização de eventos culturais e de lazer, a participação do grupo de convivência em espaços de diálogo com a gestão pública e em outros espaços políticos de sua comunidade. São alguns dos exemplos que a auto-organização pode se configurar no interior e para além do PELC.