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Autoctonia como mythos

No documento AS SEMENTES DE CADMO: Alessandro Eloy Braga (páginas 37-48)

PARTE 1 – AUTOCTONIA E CIDADANIA: CONCEITOS E RELAÇÕES

2.1 Autoctonia como mythos

A ideia de autoctonia entre os Gregos antigos está diretamente ligada à sua mitologia, na forma de mitos transmitidos de geração para geração, para estabelecer as sementes que deram origem aos Helênicos. No entanto, isso não quer dizer que havia um único mito de autoctonia entre as cidades-estado, mas, possivelmente, mitos diferentes que procuravam explicar a origem de cada um dos povos que habitavam a Grécia, haja vista que os povos que ocuparam o território tinham origem diversas, como relata Apolodoro (Bibl. 1.7.3) ao descrever uma genealogia que leva à árvore representada no Quadro abaixo:

Quadro 01 – A genealogia helênica.

A genealogia possibilitada pela leitura de Apolodoro mostra que os povos helênicos descendem de Heleno, filho de Deucalião e neto de Prometeu, o deus que deu aos homens o fogo18. Dos três filhos de Heleno nasceram os quatro povos que originaram os Gregos. No

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entanto, antes ainda de Apolodoro, acerca dessa diversidade de povos que ocuparam a região que mais tarde tornar-se-ia a Grécia, Heródoto (Hist. 8.73) comenta a ocupação de uma parte específica do território helênico, a península do Peloponeso, e assinala a presença de sete povos: Árcades, Cinúrios, Aqueus, Dórios, Etólios, Dríopes e Lêmnios. Povos que deram origem a outros os quais fundaram as cidades-estado e estabeleceram uma língua e uma religião comuns a todas estas cidades, ainda que com algumas particularidades locais.

É diante dessa diversidade de povos que seria possível a existência de uma variedade de mitos criados para explicar, entre muitas coisas, a origem e a natureza de cada povo. Estes mitos acabaram por dar origem a uma religião comum a todos os Helenos, a qual foi se formando a partir da junção de mitos já cultuados por estes vários povos, sempre de forma agregadora e não destrutiva em relação ao que cada um já trazia consigo19.

Desde o início da recepção dos textos homéricos que o termo mythos era entendido entre os Gregos como um tipo de discurso em que se fazia um relato real ou fictício. Aos poucos, estes relatos começam a tender para o campo das lendas históricas e religiosas, opondo-se, desta forma, ao termo logos que designava a história verídica. Entre os sofistas é comum a noção de que os mitos não representavam a realidade, porém estes aceitavam que estas histórias poderiam estar em um nível mais profundo de significação20.

Segal21 observa que os mitos exerceram funções variadas na cultura da vida grega arcaica e clássica, em um período que corresponderia aproximadamente aos anos de 750 a.C. a 350 a.C. Durante estes séculos, os mitos tornaram-se o principal repositório dos acontecimentos do passado e encarnaram os valores, o pensamento e as preocupações principais da sociedade.

À luz dos estudos de Anderson22, podemos dizer que os mitos proveram os povos que os preservaram e os transmitiram de uma maneira de estruturar e validar instituições e práticas culturais. Eles marcaram a fundação de cidades e santuários, foram usados para explicar as origens ancestrais e religiosas, alimentaram e perpetuaram a crença nos deuses, foram referência para fundamentar concepções ideológicas e para mapear as relações sociais e hierarquias políticas em organizações sociais democráticas ou tirânicas, servindo como exemplos positivos e negativos de comportamento.

19 Vide Montanelli, na tradução de Periquito (2003, 40).

20 Sobre estas questões de concepção e recepção dos mitos, vide Pereira (2014a, 7). 21 Vide Segal (2001, 19).

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Os mitos gregos, para Grimal23, consistem em um sistema criado com uma significativa coerência, como algo que não conhece fronteiras, insinuando-se por todas as direções e áreas, a ponto de tornar-se tão essencial como o ar, o sol e a própria vida. Eram tomados como representação do próprio ciclo da vida, relacionados que eram com as alegrias mais intensas e os sofrimentos mais profundos, com os fenômenos naturais e os sentimentos humanos.

Este sistema de mitos possibilitou a formação de um pensamento com fins a explicar e organizar as coisas do mundo, integrando-se em todas as atividades do espírito. Serviram de título de nobreza às cidades e às famílias e de apoio para explicar e justificar tanto crenças religiosas quanto conceitos jurídicos e ordens políticas. Neste contexto, fizeram-se presentes nas leis dos deuses e nas leis dos homens, nos ritos religiosos e nas expressões artísticas, nas organizações familiares e nas organizações de estado. Eram apresentados, cultuados e louvados publicamente em cerimônias religiosas e cívicas, demonstrando o grande poder que exerciam sobre a sociedade. De tal maneira que há de se considerar que, em relação às sociedades tradicionais, entre as quais incluem-se os Gregos Antigos, o homem descobria nos mitos “a única revelação válida da realidade”24.

Apesar de estabelecerem uma religião comum, havia ainda diferenças de crenças e cultos específicos de cada comunidade. Neste sentido, Montanelli25 considera que os Gregos não foram capazes de ordenar uma hierarquia, por exemplo, entre os seus padroeiros, seus mitos de origem, “em nome dos quais chegaram a combater entre si muitas guerras, cada um reclamando a superioridade do seu”26. É assim que, entre aqueles chamados de mitos ctônicos, emergem os mitos de autoctonia, mais fortemente assumidos por Atenas, sob a imagem de Erecteu, e por Tebas, sob a figura de Cadmo, ambos referenciados no corpo das tragédias do ciclo tebano, o que também contribuiu fortemente para que estes dois se tornassem, no nosso tempo, os mais conhecidos. Atenas ainda conheceu anteriormente um outro mito de autoctonia, cultuado e utilizado no séc. VI a.C., sob a imagem de Apolo Patroos27.

A ideia de ctonismo, de onde deriva a autoctonia, “além de se referir aos deuses telúricos [...], também tem designações relacionadas com o mundo dos mortos, ou seja, o mundo

23 Vide Grimal (2005a, 15-21).

24 Eliade (2000, 16), na tradução de Soares.

25 Vide Montanelli, na tradução de Periquito (2003, 40-43). 26 Montanelli, na tradução de Periquito (2003, 40).

27 A discussão sobre o mito de Apolo Patroos, a qual retomaremos mais adiante, é desenvolvida de forma pormenorizada por Valdés Guía (2006 e 2008).

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inferior, abaixo da terra, e também com a sexualidade, com a fertilidade e abundância, prerrogativas também associadas ao solo, à terra que faz brotar o alimento”28. Por estarem os deuses ctônicos ligados à morte, por serem eles os senhores do Hades, do mundo dos mortos, a eles pertenciam os que morriam e por isso, ao morrer, cada indivíduo precisava necessariamente ser devolvido à terra, ser devolvido aos deuses ínferos, para que também pudesse fazer a transição entre o mundo dos vivos e dos mortos. Eram vistos também como deidades ligadas a castigos e sofrimentos que recaíam sobre os vivos por meio dos mortos que não recebessem o tratamento devido, por isso os perigos para a família e a comunidade que não sepultassem seus mortos devidamente29.

Esta derivação, então, remete a alguns aspectos míticos importantes para a leitura da autoctonia em tragédias como Antígona de Sófocles e As Suplicantes de Eurípides, por serem tragédias que tratam diretamente da morte e da importância dos ritos funerários. Por outro lado, os deuses ctônicos eram ainda tomados como divindades que davam os alimentos e os proventos que derivam da terra e, assim, entendia-se que delas provinha a vida e o auxílio na manutenção da sobrevivência, de tal modo que, também por isso, a elas e à terra que representam, os seres humanos deveriam regressar quando da morte30. A autoctonia, assim, figurava na vida e na arte, em muitos momentos, de maneira multifacetada relacionada diretamente aos problemas ligados à morte e os ritos funerários, como veremos mais adiante, além de envolver-se até de maneira nuclear em grande parte dos temas do cotidiano.

Em meio a este panorama, a autoctonia como mito está no alicerce e alimenta algo que “caracteriza a estreita relação que, desde o início e de forma ininterrupta, liga as pessoas à sua terra”31. Ela encontra seu lugar como um mito basilar que possibilita a explicação de uma origem que precisa ser alimentada no íntimo de cada indivíduo, para, a partir daí, alçar a força de um sentimento coletivo que prende os homens à sua terra e esta aos homens que a habitam, em uma constante e fundamental reciprocidade, imprescindível para fortalecer a estrutura da sociedade, seus valores, sua posse e domínio da terra e sua organização política.

28 Barbosa (2014, 30).

29 Vide, por exemplo, os males anunciados por Tirésias e que recaem sobre Tebas como castigo pelo insepultamento de Polinices em Antígona (vv. 1015-1023). Estas relações entre o insepultamento e possíveis castigos advindos das deidades ctônicas também são destacadas por Garland (1985, 1-12) e Santos (2010, 351-352).

30 Vide Burkert, na tradução de Loureiro (1993, 388-395), e Barbosa (2014, 31). Sobres estas relações e míticas dependências entre os deuses ligados à terra e os mortos, vide ainda Eurípides (Supl. vv. 531-536).

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Como elemento mítico essencial para a polis, a autoctonia ocupou um lugar de grande destaque no imaginário ateniense, mostrando-se presente em muitos senão em todos os aspectos da vida na polis, a iniciar pela ocupação da terra e o fim do nomadismo, pela concessão da cidadania até a atribuição simbólica de valores assumidos como identificadores e caracterizadores do povo de cada cidade. Um elemento do imaginário que os Gregos, especialmente os Atenienses, alimentaram como parte de um sistema mítico que permitiu a manutenção do domínio de grupos sociais sobre outros, a partir da manipulação do mito de autoctonia de maneira ideológica, religiosa e política, como, em parte, também observa Barbosa32. Mais que isso, o imaginário mítico em torno da autoctonia alimentava um sentimento congênito que ligava autochthon e patris de maneira recíproca e indissociável, como desenvolveremos a seguir.

2.2. Autoctonia como ‘sentimento de pertença mútua’

Aristóteles33, na Política, ao estabelecer uma discussão acerca da diferença entre homens livres e escravos, centraliza sua argumentação justamente no problema do nascimento, ou seja, no problema da origem, ambas questões relacionadas diretamente à autoctonia. Para o Estagirita, a exemplo da realidade das poleis na Grécia Antiga, é o nascimento e a origem que diferenciariam os homens e os fariam melhores ou piores entre si, sendo tomados como critério para justificar o governo de uns sobre os outros, ou o poder de uns sobre os outros, como podemos inferir de suas considerações ao tratar da diferenciação entre homens livres e escravos (Pol. 1254a 21-24): “governar e ser governado são coisas não só necessárias, mas convenientes, e é por nascimento que se estabelece a diferença entre os destinados a mandar e os destinados a obedecer”34. Este nascimento legitimaria uma divisão de classes, a existência de uma

32 Vide Barbosa (2014, 62).

33 Como esclarecido em nota anterior, a opção pelas ideias de Aristóteles justifica-se pelas relações que estabeleceremos entre a Poética, a Política, a Ética a Nicómaco e Sobre a Alma, bem como pela afinidade de Aristóteles com os fundamentos ideológicos, jurídicos e políticos que caracterizam a organização política da polis ateniense e que nos parecem mais adequados ao estudo que propomos, uma vez que não pretendemos contrapormo-nos a tais fundamentos atenienses, mas esclarecê-los e compreendê-los no corpo das tragédias a serem estudadas.

34 Vide a tradução de Amaral e Gomes (1998), a qual doravante adotaremos. Aristóteles utiliza esta proposição ao relatar as condições básicas para diferenciar um homem livre de um escravo, critério que, a nosso ver, se estenderia também ao estabelecimento das classes dentro da cidade. O discurso de Aristóteles parece expressar uma postura a favor deste status quo, assumindo-o como verdade institucionalizada e indiscutível em relação à definição de papéis dentro da polis. Por outro lado, antes dele, Platão, em A República (414c-416a), em um discurso irônico e revelador, ao qual já nos referimos anteriormente, afirmava que a determinação de uma estruturação social de classes, em que as funções de cada um são naturalmente definidas no nascimento, não

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aristocracia, uma ordem social, como no caso da Atenas clássica, ou a oligarquia ou a tirania na Tebas retratada nas tragédias atenienses por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, dominada pela linhagem de Cadmo.

Reflitamos ainda a partir da seguinte proposição de Aristóteles (Pol. 1254a, 33-35): se “um ser vivo é composto pela psyche e pelo corpo; o primeiro é o governante por natureza, o segundo, o governado”, é porque o corpo físico é preenchido e está sob o governo da psyche, porque é dela que emanam as ações, é ela que impele o indivíduo às direções fisicamente tomadas pelo corpo. A psyche é responsável por aglutinar todas as informações captadas por meio de suas faculdades sensíveis e processá-las, dando sentido às coisas do homem. Nelas são guardadas as informações das experiências humanas e nela formulam-se o conhecimento, as memórias sensível, ética e histórica e os sentimentos35. É a psyche que vai ditar as conquistas e as derrotas, os ganhos e as perdas, as virtudes e as intemperanças expressas por meio das ações do corpo e vistas e julgadas externamente por todos ao redor. É possível inferir ainda que, na perspectiva aristotélica, considerando as faculdades da psyche e a complexa sensibilidade que lhe é própria36, o indivíduo é um acumulado de valores positivos e negativos construídos por sua ascendência e a ele transmitidos pelo convívio coletivo no seio do oikos e da patris.

Assim, é na psyche que estão marcadas as heranças de uma memória ética e de uma memória histórica que são passadas de pai para filho, de uma geração cívica para outra, a reger as vidas de todos os que participam desta linhagem e a unir a história individual de cada indivíduo a uma história coletiva única, onde as ações dos mais antigos interferem no destino dos mais jovens e até mesmo podem ditá-lo. Isso quer dizer que todos os entes individuais participam de um corpo cívico, mas, antes disso, participam de um único corpo histórico e um corpo sócio-afetivo em cujas bases está a autoctonia.

Neste sentido, as relações criadas pela autoctonia vão muito além do direito natural de

enktesis e da participação cidadã na politeia, pois estes são aspectos herdados que podem ser

retirados pelos homens a qualquer momento, mediante as ações do presente, porque dizem respeito ao mundo natural e às arbitrariedades das relações políticas e às posturas ideológicas. Na perspectiva aqui apontada, o que se transmite pela autoctonia são valores essenciais

passava de uma farsa, uma mentira imposta pela manipulação do mito de autoctonia por um certo grupo de cidadãos, a fim de justificar e manter as riquezas e o poder sob o domínio de alguns poucos autochthones ‘bem-nascidos’.

35 Estas proposições são fruto de nossas leituras de Aristóteles em Sobre a alma, na tradução de Lóio (2010).

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inerentes, congênitos, os quais unem de forma atemporal o ente a seus ancestrais por meio da ligação mística que é afetiva, inata, histórica e ética com sua terra.

A terra é o ventre materno, o espaço onde o autochthon é gerado, de onde lhe vem a vida. Esta ‘terra-mãe’ é o solo de onde nasceu e onde frutificou a memória complexa que fecunda a psyche do autochthon. Isso caracteriza o valor místico da relação do homem com sua

patris, porque passa a existir um aspecto diferente dos valores mítico e político, embora com

eles relacione-se em interdependência. Este aspecto diferencial é: “a experiência mística da autoctonia, o sentimento profundo de que se emergiu do solo, que se foi gerado pela Terra”37.

No caso de Atenas, ambas as qualidades de autochthon e de cidadão (polites) eram estatutos políticos atribuídos por critérios jurídicos que sofreram algumas modificações de acordo com necessidades enfrentadas pela polis no decurso do tempo. Todavia, ao considerar que a abordagem que daremos, no percurso deste trabalho de tese, à autoctonia e às tragédias áticas do ciclo tebano vai caracterizar-se como uma análise do mito da autoctonia e suas relações com o trágico, entendemos que, no universo das tragédias do ciclo tebano escritas pelos tragediógrafos atenienses, a autoctonia é apresentada em três planos que se inter-relacionam: mítico (mythos), político (politeia) e místico (mystikos).

O plano mítico refere-se à autoctonia como uma narrativa de caráter divino, religioso, onde se confundem o natural e o sobrenatural, como parte de um sistema de crenças que são assumidas como verdades para explicar a origem dos indivíduos e da polis.

O plano místico refere-se à autoctonia como um sentimento congênito e inerente ao

autochthon, e por isso misterioso, que é próprio dele, não atribuído, que não pode ser

racionalizado, que é parte essencial e indissociável da psyche38 do indivíduo, e por meio do qual estabelece-se inconscientemente uma ligação especial com a terra onde nasceu e onde sempre habitou. Um sentimento que continua a fazer parte da psyche mesmo após a morte para o mundo dos mortais e a passagem da psyche para o mundo dos mortos.

Neste plano místico, a autoctonia funda a identidade e a essência do ‘ser cidadão’39,

37 Eliade (2000, 141), na tradução de Soares.

38 Psyche (ψυχή) é o termo usado por Aristóteles na Política (1254a, v. 38), traduzido como “alma” por Amaral e Gomes (1998) e empregado para referir-se a um dos dois aspectos que compõem o ser: o primeiro é a

psyche, a alma, a essência vital e sobrenatural; o segundo é o corpo, parte física e natural. A discussão sobre a psyche é desenvolvida pormenorizadamente por Aristóteles em suas obras Metafísica e Sobre a Alma. Durante o

corpo desse estudo, usaremos os termos ‘alma’ e a transliteração psyche como sinônimos daquilo que se refere aos aspectos espirituais, à essência vital do ser.

39 A ambiguidade da expressão é proposital, ao passo que ela refere-se ao cidadão como ‘ente’ e ‘ação’ simultaneamente.

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porque é este sentimento que faz com que o autochthon sinta-se possuidor e possuído pela terra ao mesmo tempo. Esta relação mística caracteriza um ‘sentimento de pertença mútua’ com a

patris e faz com que o autochthon tome a si como dono da terra que habita por direito natural

e, por isso, sinta necessidade de entregar-se a ela cotidianamente em vida e de ser devolvido e entregue a ela na morte.

A existência e a caracterização de um sentimento de amor à pátria entre os Gregos foi abordada e ilustrada por Pereira40 em um artigo que reúne uma série de passos nos textos homéricos e em algumas tragédias atenienses em que observamos a expressão de um forte sentimento de ligação com a terra. A estudiosa observa que a palavra patris, derivada de pater (pai),

exprime uma noção concreta, relativa ao pai, ao antepassado, àquilo que com ele se liga, ao seu país. Uma forte carga emocional que lhe está adstrita: são os vínculos todos que unem uma sociedade que tem ‘língua e costumes’ iguais [...], enraizada ao solo fixo, aos homens com morada fixa, por oposição às civilizações nómadas de antanho41.

O reconhecimento de um sentimento que funciona como uma ligadura entre o indivíduo e a terra que habita, na qual criou raízes após abandonar o nomadismo e que é alimentado pela permanência da memória dos antepassados, como faz Pereira, é um passo essencial rumo ao entendimento da autoctonia também no plano místico.

A existência de uma ligação especial entre autochthon e sua patris foi destacada também por Leão42, em um importante artigo sobre o tema da autoctonia intitulado Cidadania,

autoctonia e posse da terra na Atenas democrática, onde o pesquisador entende tal ligação

como sendo uma “ligação congénita com a terra”. Em outro artigo intitulado Autoctonia,

filiação legítima e cidadania no “Íon” de Eurípides, Leão43 reafirma a existência dessa ligação especial entre homem e sua terra na forma de um “sentimento congénito de propriedade”, o qual, a seu ver, não tem sido abordado pelos estudiosos em geral. No entanto, entendemos que a leitura que fazemos dessa ligação especial vai além de um sentimento de propriedade em relação à terra da qual o autochthon acredita ter nascido, haja vista que o “sentimento congénito

40 Vide Pereira (2014b, 429-437). 41 Pereira (2014b, 429).

42 Vide Leão (2010, 454). 43 Vide Leão (2011, 111).

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de propriedade” destacado por Leão em seu artigo sobre o Íon parece apontar para uma via de mão-única, em que o autochthon apenas vê e sente a terra como seu objeto de posse. Martinez44

refere-se ainda a um ‘sentimento de pertença à terra’, a partir da leitura de estudos realizados por Eliade45 acerca da ligação existente entre nativos e sua terra em povos primitivos, em que

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