• Nenhum resultado encontrado

Dioniso e Penteu: um confronto pelo direito de não ser estrangeiro

No documento AS SEMENTES DE CADMO: Alessandro Eloy Braga (páginas 108-119)

PARTE 2 – AUTOCTONIA E CIDADANIA NAS TRAGÉDIAS DO CICLO TEBANO

6.3. Dioniso e Penteu: um confronto pelo direito de não ser estrangeiro

Um deus a exigir de sua cidade natal o reconhecimento de sua divindade239 e de sua ligação congênita com a terra tebana. Este parece ser o mote que faz girar as engrenagens da tragédia que recai sobre Penteu, que vê sua luta contra o culto de Dioniso e em favor da segurança das mulheres da cidade (ou dos homens pela depravação das mulheres?), da manutenção da ordem social e da moral240 terminar em sua própria morte pela ação de sua mãe, alienada pelo poder do culto que ele combatia241. A mãe dilacera o filho, imaginando estar a dilacerar um leão em honra de Dioniso, mas esquartejava seu fruto, tal qual planejou o deus.

238 Os estudos de Grimal (2005b, 5) relatam que Actéon era filho de Autónoe, uma das filhas de Cadmo, com Aristeu, filho de Apolo. O jovem teria sido morto dilacerado pelos próprios cães que criava, cerca de 50, após ter sido transformado pela deusa Ártemis em um veado, irritando a matilha de cães e destes tornando-se presa fácil. Tudo porque Actéon teria visto Ártemis banhar-se nua em uma nascente.

239 Barbosa (2011, 18), observa que o culto de Dioniso teria sido difundido oficialmente na polis apenas depois da afirmação das tiranias, no séc. VI a.C. Porém, a divindade é conhecida desde há um tempo indefinido nas regiões mediterrânicas.

240 Vide Eurípides, As Bacantes (vv. 217-229). 241 Vide As Bacantes (vv. 1114-1127).

| 108 |

As Bacantes, a exemplo de As Fenícias242, é uma peça que representa a luta de um

autochthon para reafirmar a sua autoctonia, reaver os laços que alimentam o ‘sentimento de

pertença mútua’ com a terra. Dioniso não quer apenas ser reconhecido como um deus em Tebas. Ele quer ser reconhecido como o deus de Tebas243. Assim, “As Bacantes são, em primeiro lugar, o drama dum deus que precisa de se revelar, de se afirmar, de se fazer reconhecer”244, na patris de onde se origina, relegado que foi, não por sua vontade, a uma condição de estrangeiro em sua própria terra-mãe, como a ele sempre se refere Penteu.

Dioniso é filho de um ventre tebano tal como qualquer indivíduo naquela terá nascido. Ele nasce duas vezes, uma em solo tebano, do ventre de Sêmele, de onde é arrancado por Zeus, que o guarda dentro de sua coxa para que o prematuro termine em segurança sua gestação. Ele é um deus de origem tebana, descendente direto do próprio Cadmo. Descende da mesma linhagem cadmeia a que pertence seu primo rival. Tão neto de Cadmo quanto o tirano que o afronta e que nega sua entrada e permanência na cidade. Levado para outras terras não por sua vontade, mas pela necessidade que Zeus tinha de escondê-lo e protegê-lo da ira de Hera, o deus procura voltar à sua terra. Não há coincidências no fato de Baco desejar fazer de Tebas a primeira entre todas as cidades gregas onde erguerá seu grito triunfal (v. 23). Mas da mesma maneira que ocorre a Édipo, que retorna a Tebas e retoma seu lugar de direito, dele tirado pelo destino, o deus é atraído pela ‘força de atração’, que emana da ligação congênita com a patris, para a terra a que ele pertence por nascimento e a qual deseja que também a ele pertença.

Fortuna245 observa que Dioniso era considerado um estrangeiro pelos gregos por ter crescido em terras estrangeiras, seguiu uma vida nômade percorrendo terras várias para onde levou seu culto a paragens distantes da Hélade, sempre permanecendo pouco tempo nestes

242 A questão remete à luta de Polinices, que empreita uma guerra para reaver o trono tebano, contudo, além disso, para recuperar os laços relacionados à autoctonia que, entre outras coisas, daria a ele direito de reinar. 243 Segundo o relato do mito de Dioniso elaborado por Grimal (2005b, 366), Sêmele morre antes de dar à luz a Dioniso, após pedir a Zeus que se mostrasse a ela em todo o seu poder, todavia não foi capaz de suportar a força dos relâmpagos do deus e morre. Zeus arranca-lhe o filho do ventre e guardou em gestação dentro da própria coxa (vide também vv. 87-98), de onde nasceu após terminar o tempo necessário – vide Grimal (2005b, 121). O mito também é relatado por Burkert (1993, 324-325), a partir da peça de Eurípides. Dioniso teve, então, dois nascimentos – vide Grimal (2005b, 121): o primeiro, prematuro do ventre Sémele em solo tebano, o que faz dele

autochthon da cidade, não apenas pelo nascimento, mas também pela linhagem historicamente habitante natural

daquela terra; o segundo da coxa de Zeus, que o guardou dentro de sua própria coxa para que terminasse a gestação. Dioniso não estabelece suas raízes com Tebas porque seu nascimento tem o rumo alterado de forma violenta pela morte da mãe e a posterior gestão na perna de Zeus. Ao nascer, pela segunda vez, da coxa do pai, é levado para Nise a mando de Zeus de onde regressa com toda a sua divindade – vide Burkert (1993, 324) – para reclamar seu lugar entre os Gregos, especialmente Tebas, sua cidade de origem, situação da qual ocupa-se a peça As Bacantes.

244 Pulquério (2002, 26). 245 Fortuna (2005, 39).

| 109 |

lugares. Esses nomadismo e dificuldade de fixar raízes são relatados por Baco no passo a seguir (vv. 13-21):

Deixei os campos auríferos dos Lídios e dos Frígios, alcancei as planuras persas escaldados pelo Sol, as cidades amuralhadas da Bactriana e as terras geladas dos Medos, a próspera Arábia, a Ásia toda que jaz ao longo do salgado mar, com as suas cidades de belas torres a abarrotar de Helenos misturados com bárbaros, até chegar a esta cidade grega, só depois de lá ter estabelecido as minhas danças e instituído os mistérios, a fim de me manifestar aos mortais como um deus.

Esta realidade nômade, sem raízes, talvez seja um dos motivos que levam Dioniso a empreitar uma luta pelo seu reconhecimento em Tebas, cidade de onde foi tirado do ventre da mãe e lá procure fixar suas raízes na Hélade. Mesmo sendo um deus246, Baco é filho de uma mortal e por isso, provavelmente, traz consigo traços humanos, entre eles o ‘sentimento de pertença mútua’ que faz com ele volte à sua terra-mãe para defender a honra materna, em toda a sua dualidade mãe/pátria. Daí a luta do ‘deus da liberdade’ contra o ‘tirano opressor’. Uma ideia reforçada pelas outras mortes em Tebas que lhe são atribuídas, a de Lábdaco, também por Mênades, por ordem do deus contra o tirano que, seguindo Penteu, tentou combater o culto das bacantes na cidade, em uma história que, infelizmente, não foi representada em tragédias, ao menos não entre as que chegamos a conhecer.

Estando o deus apresentando-se a Penteu sob outra forma física, fingindo-se ser um estrangeiro seguidor de Baco, dissimulando um comportamento e uma identidade diante do tirano, ele é questionado por Penteu acerca de sua origem, Dioniso responde o que podemos ver no passo a seguir (vv. 461-466):

DIÓNISOS: Não há qualquer dificuldade. Fácil é dizê-lo. Já ouviste falar da montanha florida de Tmolo.

PENTEU: Eu sei. É a que fica em volta da cidade de Sardes. DIÓNISOS: É daí que eu sou. A Lídia é a minha pátria. PENTEU: Donde vêm esses mistérios que trazes para a Grécia? DIÓNISOS: Diónisos nos iniciou, esse filho de Zeus.

PENTEU: Há na tua terra um Zeus, que cria deuses novos? DIÓNISOS: Não. É aquele que neste sítio desposou Sémele. PENTEU: Foi de noite ou à luz do dia que ele te deu ordens? DIÓNISOS: Eu vi-o a ele, a ele a mim, e entregou-me os seus ritos.

246 O mito de Dioniso (Baco) chama a atenção também pelo fato singular de ele ser o único filho de uma mortal e de um deus a ser considerado também um deus.

| 110 |

Sob o seu disfarce, Dioniso responde a Penteu de forma duvidosa e mesmo dissimulada e contraditória. Primeiro afirma ser ele, sob o disfarce de um estrangeiro que estava sendo procurado por Penteu por fomentar dos cultos báquicos entre as mulheres tebanas (vv. 351-354), oriundo da cidade de Sardes. Logo depois, ao ser questionado sobre a origem da divindade de que é seguidor, o estrangeiro afirma claramente ser ele filho de Zeus com Sêmele, a filha de Cadmo, ou seja, originário de Tebas. A afirmação que não é negada por Penteu, o que nos leva a entender que o tirano aceita como verdadeiro o pronunciamento do estrangeiro acerca da origem de Dioniso. Em relação a esta questão sobre a qual pátria pertence Dioniso e a qual ele sente pertencer, Barbosa247 considera que

Dioniso – embora ainda não identificado como divindade – não considera mais a Grécia sua pátria. Entretanto, digamos mais uma vez que Eurípides segue o mito fundador de Tebas e o mito do nascimento de Dioniso; desta forma o deus seria tebano. Concordamos com Trabulsi248 que, quando se trata da origem do deus, o texto é por vezes ambíguo. Acreditamos que o que o autor quis dizer foi que Dioniso se considera muito mais um bárbaro. Entrando na questão do barbarismo [...], Dioniso não se sente bárbaro por não ter nascido em solo Helênico, ele se sente bárbaro por ter aderido a costumes não Helênicos; para os gregos é isto que importa. Embora Eurípides concorde com o mito de seu nascimento, coloca-o com lídio por este ter aderido a diversos traços lídios, deixando de ser Grego para se tornar bárbaro.

Diferentemente de Barbosa e Trabulsi, entendemos que Dioniso não nega sua origem tebana, ao contrário, retorna à cidade, já como um deus consagrado no mundo bárbaro, para onde foi levado ainda criança e transformado em um cabrito por Zeus a fim de escondê-lo e protegê-lo da ira de Hera249. Já adulto, após descobrir a videira, é encontrado por Hera que o enlouquece. Louco vagou por várias terras bárbaras até retornar à Ásia, “onde foi acolhido pela deusa Cibele, que o purificou e iniciou nos ritos do seu culto”250. Deste modo, Eurípides parece-nos encenar a luta do deus para reaver o seu direito de autochthon tebano ao ser reconhecido também como um deus, o deus tebano, entre os Gregos todos, a começar por sua terra natal, da qual foi privado logo ao nascer, assim como aconteceu a Édipo, a ser levado a Corinto a fim e que ficasse protegido pela condenação à morte impetrada a ele por seu pai e sua mãe. A exemplo de Dioniso, também Édipo retorna a Tebas, atraído pela força de atração pela mística de sua

247 Barbosa (2014, 359).

248 A referência aqui é ao texto de José Antonio Dabdab Trabulsi, intitulado Dionismo, Poder e

Sociedade na Grécia até o fim da época clássica, publicado em Belo Horizonte, em 2005, p. 158. 249 Vide Grimal (2005b, 122).

| 111 |

autoctonia, mesmo que de forma inconsciente, para recuperar o seu lugar de rei tebano por direito.

A ambiguidade do texto de Eurípides, referida por Barbosa, neste sentido, não é involuntária ou casual, como sugerem Barbosa e Trabulsi, mas é sim intencional e provocada pela ação teatral, pelo jogo cênico da dissimulação do deus diante de Penteu criado pelo poeta. No texto e no palco, estamos diante de um Dioniso exercendo sua essência cênica:

[...] ele se apresenta como deus no theologeîon, e como o estrangeiro lídio “com ar de mulher” no palco, um e outro vestidos com o mesmo traje, ostentando a mesma máscara indiscerníveis e, contudo, distintos. A máscara a que o deus e o estrangeiro humano – que é também o deus – usam é a máscara trágica do ator; sua função é fazer reconhecer as personagens pelo que são, designá-las claramente aos olhos do público. Mas, no caso de Dioniso, essa máscara, assim como o proclama, o dissimula, “mascarando-o” no sentido próprio, enquanto prepara, através do desconhecimento e do segredo, seu autêntico triunfo e sua autêntica revelação. Todos os protagonistas do drama, inclusive o coro de fiéis lídias que o seguiram até Tebas, vêem na máscara teatral usada pelo deus apenas o missionário estrangeiro. Os espectadores também vêem o estrangeiro, mas enquanto ele dissimula o deus, a fim de se dar a conhecer pelo que é: um deus mascarado cuja vinda deve trazer, para uns, a plenitude da felicidade, e para outros, que não souberam vê-lo, a destruição.251

O efeito cênico da máscara usada pelo deus é dialético, porque traz em si a felicidade e o sofrimento. Ao mesmo tempo, corresponde ao próprio efeito da tragédia, estruturada que é sobre uma base também dialética de salvação e aniquilação, alegria e tristeza, glória e maldição. Desta maneira, sublinham-se

[...] ao mesmo tempo as afinidades e o contraste entre a máscara trágica, que consolida a presença de um caráter, que profere a identidade estável de uma personagem, e a máscara cultual, onde a fascinação do olhar impõe uma presença imperiosa, obcecante, invasora, mas ao mesmo tempo a de um ser que não está onde parece estar, que está também muito além, dentro das pessoas e em nenhum lugar – a presença de um ausente –, esse jogo se exprime na ambiguidade da máscara usada pelo deus e pelo estrangeiro. É uma máscara “sorridente” (434, 1021) [...]252

que anuncia a alegria e a liberdade características do culto báquico, mas que traz também a face do choro e desespero que sua ira provoca sobre aqueles que não o aceitam, que perseguem seus

251 Vernant (2008c, 336), na tradução de Guinsburg. 252 Vernant (2008c, 336), na tradução de Guinsburg.

| 112 |

adoradores, que lutam contra a sua presença. Uma máscara própria da dialética trágica que neste deus tem suas origens.

Quanto ao fato de Dioniso sentir-se mais bárbaro que Grego, é algo bastante possível, haja vista que, até aquele momento, o deus passou sua vida de forma nômade, sem raízes históricas e culturais, tendo sua formação feita pela ação também de bárbaros, principalmente na Ásia. No entanto, assim como mais adiante na história tebana se sucederá com Édipo, não consideramos provável que o ‘sentimento de pertença mútua’ com sua patris tenha se extinguido e seu acentuado e desmedido desejo de retornar à Grécia; planejando ser primeiramente reconhecido em Tebas entre todas as outras cidades é um forte indício que corrobora esta ideia.

Ao empreitar uma luta pelo reconhecimento de sua ligação congênita com a terra de onde se originou, Dioniso quer rebater as menções a ele como um ‘estrangeiro’ em solo tebano, um desconhecido, (v. 221) “ou lá quem é”, como vemos nas constantes referências de Penteu ao deus disfarçado como ‘estrangeiro’253, a que se opõem as ações dionisíacas pelo reconhecimento de sua divindade em Tebas. Ele não é tomado como estrangeiro por todos em Tebas apenas por usar este disfarce, mas porque ele é, aos olhos dos tebanos, um ‘estrangeiro’, porque ainda não o aceitaram, ainda não o receberam.

A batalha pelo reconhecimento resulta em luta de sangue, em que um primo mata outro primo, em que o exilado luta contra o tirano para recuperar seu estatuto e seu reconhecimento diante da polis, assim como de forma semelhante, guardadas as diferenças circunstanciais, acontecerá entre Polinices e Etéocles, no conflito representado em Os Sete contra Tebas, em As

Fenícias e sugerido em Édipo em Colono. Tudo resulta em um duplo crime familiar: um primo

leva o outro a morte e faz com que uma mãe assassine seu próprio filho.

Ao fim, o oráculo se cumpre, e Penteu é dilacerado por aqueles de quem tentava cuidar e a quem pretendia proteger: as mulheres, numa das cenas mais fortes e impactantes da tragédia grega254. Consumado o fato, põe-se o Coro em júbilo (vv. 1153-1155): “Dancemos em honra de Baco, / proclamemos bem alto o desastre / de Penteu, descendente do dragão!”. O oráculo de Cadmo confirma-se, no anúncio do Segundo Mensageiro, cujas palavras iniciais relacionam a tragédia ocorrida com a linhagem da desafortunada casa de Cadmo. Penteu padeceu (v. 1291)

253 Vide ocorrências, por exemplo, nos vv. 234, 353 e 453, referências que se opõem ao desejo de Dioniso de ver-se reconhecido como deus de origem tebana, por ser filho de Sêmele, uma das filhas de Cadmo, a qual se uniu a Zeus.

| 113 |

“no sítio onde outrora os cães dividiram os pedaços de Actéon”, como lamenta o avô que predisse o mal. Para o êxtase de Baco, o tirano morreu. Morreu (v. 1297) “para castigar a vossa insolência, já que não reconhecíeis nele um deus”.

Ao fim, não há nenhuma referência à ideia de que Dioniso conseguiu o que pretendia: sagrar-se como o deus tebano por natureza, negativa que se confirma nas lutas posteriores contra o culto do deus em Tebas levadas em frente nos mitos de Polidoro e Lábdaco. O que fica é a ideia de uma justiça falhada, em que Agave paga pelo crime de homicídio que cometeu e parte para o exílio onde conviverá com a culpa e a dor de ter tirado a vida do próprio filho e de maneira tão violenta. Quanto a Baco, este não sofre qualquer expiação por ser o arquiteto de toda uma trama que leva à morte o soberano da cidade. Talvez, por ser uma divindade, não lhe caiba julgamento, não precise responder por seus atos, pois (vv. 1388-1389) “muitas são as formas do divino / e muita coisa os deuses fazem sem contar”, ou já havia recebido da própria cidade o veredito da inocência representado na voz do Coro a quem coube as últimas palavras da peça.

| 115 |

C

APÍTULO

7

A

UTOCTONIA

,

FORÇA DE ATRAÇÃO E RECONCILIAÇÃO COM A TERRA EM

REI ÉDIPO

A tragédia de Édipo elaborada por Sófocles255 é, talvez, o mais festejado poema trágico encenado pelos Gregos, no mínimo o mais conhecido deles. É tanto que, ainda na Grécia Antiga, no primeiro tratado sobre os gêneros literários de que temos notícia, a Poética, organizado no séc. IV a.C., Aristóteles tratou Rei Édipo como a mais perfeita das tragédias dentre aquelas até então compostas, por conter em seu enredo a maior excelência na elaboração de suas várias partes e elementos textuais256. Vieira257 escreve que “será difícil encontrar na literatura outro exemplo [de herói, de personagem] que concentre, em igual medida, voluntarismo e fragilidade, talento intelectual e ignorância”. O fato é que, mesmo não tendo vencido o concurso em que foi encenada pela primeira vez em Atenas, a excelência de Rei

Édipo é continuamente reafirmada.

7.1. A propósito da peça

Representada por volta de 430-429 a.C., Rei Édipo é uma tragédia em que o mito é dominado pela ansiedade, incerteza, mistério, falta de controle e o problema do autoconhecimento, que marcam a vida de um herói que se move adiante a partir de seu olhar para o passado258.

255 Sófocles nasceu em Colono, uma vila da Ática distante cerca de 2 km ao norte de Atenas, por volta de 497/6 a.C. Sua primeira vitória nas Grandes Dionísias foi em 468 a.C. e sua morte aconteceu em 406/5, quando o poeta já atingia os 90 anos de idade – vide Sommerstein (2002, 41).

256 Sobre os apontamentos de Aristóteles, vide Poética, em passos como 1452a24-26 e 30-34, 1453b4-7, 1454b6-8 e 1455a16-18, por exemplo.

257 Vieira (2000, 89). 258 Vide Segal (2001, 50).

| 116 |

Knox259, em seu estudo intitulado The heroic temper, afirma que foi Sófocles quem, pela primeira vez, em Rei Édipo, apresentou-nos o que passamos a reconhecer como um ‘herói trágico’. Isso, porque, de acordo com o estudioso, o herói sofocliano atua em um terrível vácuo, um presente que não tem futuro para confortá-lo e nem passado para guiá-lo, um isolamento no tempo e no espaço que impõe ao herói a completa responsabilidade por suas próprias ações e suas consequências. É precisamente este fato que torna possível a grandeza dos heróis criados pelo tragediógrafo de Colono; a fonte de suas ações está apenas neles e em nenhum outro lugar; a grandeza da ação é somente deles260. O ‘herói trágico’ é alguém que, sem ações interferentes dos deuses e diante da oposição humana, toma uma decisão que aflora do mais íntimo de sua natureza individual, sua physis, e então cegamente, ferozmente e heroicamente mantém esta decisão até o momento de sua autodestruição.

O herói criado por Sófocles, todavia, é ainda mais singular. Para Segal261, ele configura um mito heroico elaborado ao reverso, pois, enquanto outros heróis confirmam sua grandeza e seu poder quando adultos, após descobrir a verdade sobre suas origens, como acontece a Perseu, por exemplo, para Édipo o regresso à sua infância é desastroso, porque em suas origens familiares reside também a origem de seus males. Para Vieira, “de certo modo, Édipo seria a expressão da própria Atenas do 5º século a.C.: inquieto, brilhante, corajoso, arrogante, perspicaz, imperial, curioso, vaidoso, conseqüente, calculador, investigativo são alguns dos adjetivos que caberiam também à cidade no seu apogeu”262.

O problema da releitura do mito de Édipo por Sófocles – e pelos outros dramaturgos atenienses – é levantado por Vieira263, ao entender que o poeta de Colono alterou bastante as versões do mito anteriores a ele. O estudioso considera que a principal modificação foi o

No documento AS SEMENTES DE CADMO: Alessandro Eloy Braga (páginas 108-119)