• Nenhum resultado encontrado

O mito de Cadmo e a herança ética

No documento AS SEMENTES DE CADMO: Alessandro Eloy Braga (páginas 134-138)

PARTE 2 – AUTOCTONIA E CIDADANIA NAS TRAGÉDIAS DO CICLO TEBANO

8.4. O mito de Cadmo e a herança ética

Entre as tragédias do ciclo tebano que chegaram ao nosso tempo, é em As Fenícias que encontramos uma referência mais prolongada ao mito da autoctonia protagonizado por Cadmo. Há dois momentos em que Eurípides usa seus versos para narrar o mito, ambos pela voz feminina. A primeira é por meio de Jocasta304. A segunda nas vozes das virgens Fenícias305 que compõem o Coro da tragédia306. Na abertura do drama, Eurípides atribui a Jocasta a função de contextualizar a ação que está por desenrolar-se e a envolver os irmãos Etéocles e Polinices. A contextualização faz-se na forma de um relato conciso da trajetória da linhagem real de Tebas, o qual inicia-se com a evocação do mito de Cadmo (vv. 1-10):

Ó Sol307 que rasgas teu caminho por entre as estrelas do céu e, subindo para o teu carro de ouro, com tuas céleres poldras, fazes revolutear a tua chama, – que funesto raio não lançaste contra Tebas, no dia em que entrou Cadmo nesta terra! Havia ele deixado o marinho território da Fenícia. Desposara Harmonia, filha de Cípria, que lhe deu outrora um filho, Polidoro. Este dizem-no progenitor de Lábdaco, pai de Laio.

304 Vide vv. 5-9.

305 Na peça de Eurípides, as Fenícias são sacerdotisas enviadas para servir o templo de Febo (vv. 206-207), enviadas à cidade e Cadmo pelos “filhos dos filhos de Agenor [...], como primícias de vitórias oferecidas a Febo” (vv. 280-283).

306 Vide vv. 638-675 e 817-820, nestes últimos a referência se dá pela semeadura dos dentes do dragão. 307 Jocasta aqui refere-se a Apolo/Febo, o deus a quem são atribuídas as predições do oráculo de Delfos, o qual orientou Cadmo a abandonar a busca pela irmã Europa para fundar uma cidade na Beócia, e gerações mais tarde anunciou a Laio e depois a Édipo os seus destinos trágicos.

| 134 |

Contudo, ler o prólogo de Jocasta apenas como instrumento de contextualização é vislumbrar somente uma perspectiva. As palavras da rainha formam também uma narrativa que assume a função de esclarecer as relações de hereditariedade dos filhos de Édipo, trineto de Cadmo, bisneto de Polidoro, neto de Lábdaco e filho de Laio, com o intuito de estabelecer a autoctonia do oikos que reina sobre Tebas desde a fundação da cidade e justificar sua soberania. A autoctonia aparece, neste contexto, como um mythos a funcionar como um pano de fundo sobre o qual afirma-se politicamente a eugeneia do oikos de Cadmo, a que pertencem os dois irmãos herdeiros naturais e incontestáveis do trono, além de configurar o direito natural destes à cidadania. Esta forma natural de concessão e reconhecimento da cidadania fazia parte das leis atenienses308 as quais, provavelmente, serviram de referência a Eurípides para a escritura de As

Fenícias.

A hereditariedade transmitida pela linhagem de origem reconhecidamente autóctone, ou seja, de uma estirpe que havia brotado da terra-mãe e nela continuasse a habitar há tempos imemoriais, era, entre os tebanos representados na tragédia, reservada apenas ao oikos de Cadmo. A continuidade deste governo reafirma o regime oligárquico como aquele adotado incontestavelmente pelos tebanos e respeitado por toda a politeia, que, mesmo diante de todos os infortúnios e toda a intemperança que marcam a linhagem real, em nenhum momento questiona o direito e o poder desse oikos sobre a cidade.

No passo que abre o prólogo, o Sol é Apolo, o oráculo que orientou Cadmo a fundar uma cidade. Mas, suas predições – seus raios – parecem ter recaído sobre o Tírio de forma dialética, em que a glória de fundar uma cidade converteu-se em pesares sucessivos, em episódios nos quais a morte insiste em macular sua linhagem pelas mãos intemperantes dos membros do próprio oikos fundado pelo Tírio. A presença da sombra escura da morte na casa de Cadmo é o “funesto raio” lançado contra ele, e por conseguinte, contra Tebas, pela ligação entre a vida dos autochthones e a terra-mãe. Todavia, não é a predição de Apolo uma maldição, mas apenas o evento desencadeador do destino trágico que viria a marcar a linhagem de Cadmo. Maldita parece ser a autoctonia que polui todos aqueles naquela terra nascidos, condenados a infortúnios incessantes309.

A predição de Apolo tornar-se-á funesta, mas apenas após outros acontecimentos converterem a esperança em danação. O deus Sol é apenas o mensageiro de um ‘processo

308 Vide item 1.3.2 deste trabalho de tese.

309 O problema da maldição que recai sobre o solo de Tebas e seu miasma serão tratados mais detalhadamente na terceira parte deste trabalho de tese.

| 135 |

trágico’310 que ainda está por desencadear-se. A este respeito, a evocação e a retomada do mito tebano da autoctonia feita pelo Coro de Fenícias (vv. 637-675) é mais abrangente. O Coro relata toda a ação que compõe o mito. Do passo – já citado anteriormente –, resgatemos apenas os momentos que marcam a peripécia (peripeteia), os atos intemperantes e destruidores (pathos) e as mortes que compõem o mito e que teriam desencadeado a maldição posteriormente imposta por Ares311 (vv. 658-675):

Lá estava o fero drago, guardião de Ares inexorável; c'o as pupilas de seu inquieto olhar, vigiava a fonte de viçoso arroio. Tendo ido em busca de água lustral, com uma pedra, Cadmo o matou, esmagando-lhe o crânio assassino, atingido pela força do braço. Por sugestão da deusa, sem mãe, filha de Zeus, do monstro os dentes semeou p'lo terreno, em profundos sulcos,

donde nasce uma parada de guerreiros armados emergindo à superfície do solo.

Mas de novo o excídio de férreas entranhas na terra benfazeja os mergulhou.

O sangue del's tingiu o mesmo chão que, à luz do Sol,

e às etéreas brisas os havia exposto.

O passo revela alguns aspectos determinantes para a reviravolta do mito e que passam também a manchar e a caracterizar a vida dos tebanos. Primeiramente, Cadmo invade os domínios de Ares ao macular sua fonte sagrada para obter água a fim de realizar um sacrifício em honra de Atena, histórica rival do deus da guerra312, em agradecimento por ter encontrado

310 O que entendemos e denominamos aqui de ‘processo trágico’ é um percurso de tragédias iniciado na ação intemperante de Cadmo de assassinar o dragão e é renovado nas ações desempenhadas pela linhagem real que descende do Tírio e que reina sobre Tebas. Esse percurso consiste de um conjunto de manipulações divinas constituintes da maldição de Ares infligida como vingança (nemesis) sob a família do fundador da cidade em função da morte do dragão filho do deus da guerra. Esse ‘processo trágico’ revela-se na leitura conjunta das sete tragédias do ciclo tebano, como propomos neste trabalho.

311 A maldição de Ares contra Cadmo e contra Tebas é mencionada, em As Fenícias, por Tirésias (vv. 930-953). Acerca dessa maldição que Ares teria imposto a Cadmo pelo assassinato do dragão, trataremos de forma pormenorizada na terceira parte deste trabalho de tese.

| 136 |

a terra onde ergueria sua cidade, como predisse Apolo. Mais que profanar a fonte, Cadmo assassina um filho de Ares, o dragão guardião da fonte.

O assassinato fez com que a ira de Ares recaísse sobre Cadmo313 e sobre toda a sua linhagem, na forma de uma maldição, condenando-o ao sofrimento de assistir de forma irremediável, a morte de seus descendentes pelas mãos também intemperantes de seus próprios parentes até o fim da linhagem direta de Cadmo e dos Spartoi. A existência dessa maldição é referida por Eurípides por meio da voz de Tirésias, quando o velho sacerdote procura convencer Creonte da necessidade de imolar seu filho Meneceu314, porque a salvação da cidade só seria possível mediante a imolação de um descendente direto dos Spartoi, o que, segundo Tirésias, daria fim à nemesis de Ares. A revelação de Tirésias pode ser lida no passo que se segue (vv. 930-936):

Teu filho, força é que seja degolado e dê ao solo, como libação, seu rubro sangue, no antro em que o dragão gerado pela terra vigiava as águas dirceias. É uma imposição do velho ódio de Ares contra Cadmo, o qual procura vingar o assassínio do terrígeno dragão. Se tal fizerdes, tereis Ares por aliado. Se a terra receber o fruto pelo fruto, o sangue mortal pelo sangue, ao vosso dispor estará este chão que outrora fez brotar para nós, a messe dos Espartos, os de elmos de ouro. E é de tal estirpe que tem de ser imolado um descendente nascido da mandíbula do dragão.

Os Espartos (Spartoi), “uma parada de guerreiros armados / emergindo à superfície do solo” (vv. 670-671) em que Cadmo semeou os dentes do dragão morto, são os primeiros nascidos da ação do fundador da cidade, os primeiros autochthones do solo tebano. Assim que nascidos, passam a matar uns aos outros em um violento fratricídio, e “o sangue del’s tingiu o mesmo chão” (v. 674) de onde haviam brotado. Esse fratricídio foi o primeiro dos infortúnios que recaíram sobre a linhagem de Cadmo e, a partir deste momento, em Tebas, ser autochthon significa ser também objeto da expiação resultante das ações intemperantes do Tírio e a ele impostas. Ser autochthon de Tebas significa, desde então, carregar o miasma que será transmitido a todo o genos de Cadmo.

com resultados a favor da deusa sem mãe.

313 Cabe relembrar que, pela morte do dragão, Cadmo foi condenado pelos deuses a oito anos de escravidão servindo Ares, ao fim dos quais o Tírio desposou Harmonia, a filha do deus da guerra.

314 Meneceu, por sua vez, suicida-se para satisfazer a imolação necessária revelada por Tirésias para salvar a cidade, transformando-se no herói de Tebas, papel que nenhum dos filhos de Édipo conseguiu desempenhar. Meneceu seria, à visão de Silva, para Eurípides, o virtuoso entre os tebanos na trama de As Fenícias, pois, para a pesquisadora, “o altruísmo em Eurípides não é dom dos poderosos ou dos heróis, brota espontâneo das almas jovens, as únicas capazes de vibrarem com ideais sinceros e desinteressados” (Silva, 2005a, 217).

| 137 |

É a essência intemperante do pathos de Cadmo que vai estar implícita em toda a referência feita aos cidadãos de Tebas por meio de expressões como ‘filhos de Cadmo’, ou “Cadmeus”315, e à cidade como ‘cidade de Cadmo’, ou “cidade dos Cadmeus”316. A cidade e seus filhos recebem e passam a carregar uma memória ética na forma da intemperança de seu fundador e de seus primeiros autóctones, como uma herança maldita que faz da lança dos tebanos a “lança de Cadmo”317. O substantivo próprio ‘Cadmo’ passa a representar um epíteto que, além de dizer a origem dos indivíduos, também caracteriza a cidade e seus cidadãos com uma mancha maldita e poluidora.

No documento AS SEMENTES DE CADMO: Alessandro Eloy Braga (páginas 134-138)