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A automação, hoje em dia, baseia-se em um amplo e bem estabelecido corpo teórico, desenvolvido ao longo de aproximadamente seis décadas, ou seja, desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, construção dos autômatos, e sua coordenação em sistemas automatizados, requer, ainda, a integração de um grande número de dispositivos eletrônicos, mecânicos e eletromecânicos que também têm evoluído sensivelmente ao longo dos anos. Nas últimas três décadas o software tem desempenhado um papel cada vez mais central na automação, de modo que, quando se ouve falar em automação, atualmente, deve-se pensar em uma ciência aplicada, que se materializa por meio da associação entre hardware e software. Sem dúvida, é sempre possível construir um autômato ou criar um sistema automatizado em bases puramente empíricas, como fazem alguns diletantes. Contudo, ninguém imaginaria realizar um projeto de automação em larga escala, em uma planta industrial, ou no projeto de uma aeronave, sem o indispensável apoio das teorias de base.

Entretanto, nem sempre foi assim. A automação começou com dispositivos construídos e aperfeiçoados empiricamente, muito antes do surgimento de qualquer quadro teórico unificador. Segundo Mayr (1970, p.16), o primeiro equipamento dotado de auto- regulação de que se tem notícia28 é a lâmpada de Phílon de Bizâncio, construída na segunda

metade do século III a.C. Através de um engenhoso dispositivo hidrostático, esse equipamento era capaz de detectar a baixa do nível de óleo no vasilhame onde se encontrava o pavio, na medida em que a combustão se processava, e restaurar o nível desejado, fazendo fluir mais óleo de um reservatório. Nos séculos subseqüentes, outros dispositivos de auto- regulação foram construídos, sobretudo na China e no mundo islâmico, geralmente ligados à mensuração do tempo ou à operação dos reservatórios de água.

Ainda segundo Mayr (1970, p.55 e seguintes), o primeiro mecanismo de auto- regulação genuinamente europeu (e do mundo ocidental) foi o regulador de temperatura de Drebbel (1572-1633). Embora seja possível que esse sábio tenha tido contato com textos que

28 Lembrando que, neste trabalho, reserva-se o nome “autômatos” para as máquinas dotadas de auto-

mencionavam os mecanismos auto-reguladores da antiguidade, aparentemente o controle automático de temperatura nunca tinha sido realizado, de modo que o o trabalho de Drebbel foi realmente original. Seu dispositivo baseava-se na expansão e contração do álcool, de acordo com o aumento ou redução da temperatura em um ponto de medida. Quando a temperatura aumentava e o álcool se expandia, o mecanismo movia uma alavanca, que por sua vez acionava uma portinhola que reduzia a entrada de ar para o forno, de modo a desacelerar a combustão. Quando a temperatura baixava e o álcool se contraía, acontecia o efeito inverso.

Além dos controladores de nível de fluidos e dos controladores de temperatura, outra classe de antigos mecanismos dignos de nota são os reguladores de velocidade e reguladores de direção dos moinhos de vento, largamente usados já no século XVIII. Entretanto, o mais famoso dispositivo automático de que se tem notícia é o regulador de Watt (figura 1), criado em fins do século XVIII (Epstein, 1986, p.40; Mayr, 1970, p.2), que consistia em uma válvula de vapor conectada a uma alavanca, que se movia de acordo com a posição de duas hastes rotativas, cada qual com um pequeno peso na extremidade.

Figura 1: Regulador de Watt (Fonte: Wikipedia, 2006)

As hastes eram montadas sobre um eixo cuja velocidade de rotação era proporcional à velocidade da máquina a ser controlada. Assim, quando a velocidade de rotação da máquina aumentava, a força centrífuga fazia com que as hastes se aproximassem da horizontal, movendo a alavanca que fechava a válvula, deixando passar menos vapor para alimentar o pistão e, conseqüentemente, reduzindo a velocidade do motor. Com a velocidade reduzida, a força centrífuga diminuía, as hastes desciam, a válvula se abria mais, deixando passar mais vapor, o que novamente aumentava a velocidade do motor. Graças a esse mecanismo engenhoso, uma vez ajustado, a velocidade de rotação mantinha-se dentro dos níveis desejados. Com isso, permitia-se um melhor aproveitamento da mão de obra e a operação estável das máquinas, dentro dos seus limites mecânicos.

Um sistema automatizado moderno geralmente se caracteriza pela existência de diversos processos de auto-regulação, cada qual contemplando, de forma mais elaborada do que no passado, os elementos presentes no regulador de Watt e em seus antecessores. Fundamentalmente, esses elementos são os sensores, os atuadores, os laços de controle e as vias de comunicação, operando em conjunto, de modo a atingir um determinado propósito.

Os sensores são medidores que, a partir das variações no meio físico, produzem sinais elétricos próprios para serem tratados pelo sistema de controle a que estão ligados. No dia a dia, um sensor comum é o microfone, que transforma as vibrações mecânicas do ar em vibrações eletromagnéticas que entrarão no amplificador. Na indústria, alguns dos sensores mais comuns são os medidores de temperatura, medidores de vazão e sensores de posição. Os aviões modernos possuem sensores de velocidade, de aceleração e de posição, usados pelo sistema de navegação, além de toda uma gama de outros sensores, integrando os sistemas que garantem o conforto e a segurança dos passageiros e da tripulação (sensores de fumaça, etc.)

Os atuadores são dispositivos que interferem de alguma forma nas variáveis do processo. Na indústria petroquímica, por exemplo, os atuadores mais comuns são as válvulas (Blevins, 2003) ao passo em que os motores elétricos aparecem em grande número nas linhas de montagem, inclusive no interior dos robôs industriais. Freqüentemente, os atuadores cumprem o seu papel indiretamente, como quando uma válvula controla uma saída de gás, que por sua vez determina a temperatura de uma caldeira. Nesse caso, o efeito observável é a variação da temperatura, mas sua causa reside no movimento mecânico da válvula.

As vias de comunicação são os dispositivos através dos quais as variações dos sinais (ou mensagens, na terminologia da teoria da informação) fluem entre os sensores, laços de

controle e atuadores. Nos sistemas atuais, as vias de comunicação são quase sempre elétricas, ou ópticas. No entanto, ainda há vias de comunicação puramente mecânicas, ou ainda pneumáticas ou hidráulicas, adequadas a situações especiais, em particular em sistemas simples.

Um laço de controle, ou “laço causal fechado”, é uma relação lógica (funcional) que se estabelece entre os dados colhidos pelos sensores e as ações executadas pelos atuadores. Trata-se de um conceito abstrato, “um produto do século XX” (Mayr, 1970, p.129), que antes disso só existia em associação concreta com os mecanismos da máquina. Ou seja, em vez de serem concebidos matematicamente, tal como ocorre hoje em dia, os laços de controle eram definidos e refinados de modo empírico e contingente, de acordo com as possibilidades de aprimoramento dos componentes que os materializavam29. No século XVIII, os termos

“regulateur30”, “gorvenor31” e correlatos eram usados com referência à função dos dispositivos

auto-reguladores, não aos princípios subjacentes ao seu funcionamento (Mayr, 1970, p.130- 131). Ainda segundo Mayr (1970, p.131), as primeiras formulações matemáticas do controle automático surgiram na última metade do século XIX, desenvolvendo-se até o final daquele século, em especial visando o controle de velocidade dos motores. Só a partir do século XX, porém, com o rápido avanço da tecnologia elétrica, a teoria do controle iniciou um desenvolvimento mais rápido e acentuado, com aplicação rotineira nos projetos de engenharia32. Com o advento da II Guerra Mundial, a engenharia de controle ganhou um

impulso enorme, na medida em que as potências envolvidas no conflito investiram recursos vultosos na criação e aperfeiçoamento de pilotos automáticos para aviões e mísseis, radares e mira de artilharia semi-automática (Mayr, 1970; Wiener, 1988).

29 Há um notável paralelismo entre o desenvolvimento da teoria cibernética e o desenvolvimento da teoria da

computação. Analogamente aos dispositivos auto-reguláveis, as máquinas de calcular mecânicas também evoluíram de modo contingente durante séculos. Foi somente na terceira década do século XX que se estabeleceu um quadro teórico unificador que, juntamente com os avanços da eletrônica, estabeleceu as condições para o aparecimento do moderno computador eletrônico digital. Para um estudo detalhado do assunto, ver, por exemplo, Davis (2000).

30 “Regulador”, em francês.

31 Ao pé da letra, “governador”, em inglês. A palavra era usada para identificar os dispositivos de auto-

regulação, como o regulador de Watt (Watt’s governor).

32 O romance “The Tempter”, de Norbert Wiener (1964) monta uma trama fascinante em torno dos primórdios

da teoria do controle, contrapondo as questões econômicas e éticas que se multiplicam na medida em que a ciência encontra uma tecnologia em fase de maturação, transformando-se em ciência aplicada. A trama central do livro gira em torno da luta por patentes, que aliás, é um tópico bastante atual.

A partir da década de 1940, os mecanismos de auto-regulação se difundiram enormemente, a princípio implementados por meios eletro-mecânicos, pneumáticos, ou através de circuitos eletrônicos analógicos. A partir da década de 1960, com a miniaturização dos circuitos eletrônicos digitais, e com sua fabricação em massa, os computadores começam a baixar de preço, tornam-se mais confiáveis e fáceis de manter, tendência que se consolidou na década de 1980, com o advento dos microcomputadores. Nesse meio tempo, o estudo dos algoritmos também evoluiu bastante. Conseqüentemente, os laços de controle passaram a ser, cada vez mais, implementados sob a forma de programas de controle, rodando em computadores eletrônicos digitais. Atualmente, esse é um procedimento hegemônico, em todos os campos onde a automação é aplicada em larga escala, e mesmo em situações tão corriqueiras quanto o controle de elevadores em prédios residenciais: um fato tecnológico com profundas implicações epistemológicas, e que portanto vale à pena ser bem compreendido.

Essencialmente, os computadores são “máquinas para armazenar números, operar com números e dar o resultado [sic] em forma numérica”33 (Wiener, 1965, p.116). De acordo com

a forma como os dados são processados, os computadores se dividem em dois grandes grupos: os analógicos e os digitais. No computador analógico, os dados são representados sob a forma de medidas em uma escala contínua. No computador digital, como o próprio nome indica, os números são representados através de dígitos. Nos computadores modernos, em particular, todos os dados são codificados usando apenas dois dígitos, 0 e 1. Portanto, as máquinas que se convencionou chamar simplesmente de “computadores” são, na verdade, computadores eletrônicos binários.

Em acréscimo à definição de Wiener, cabe lembrar que os computadores também podem codificar, numericamente, símbolos arbitrariamente definidos pelo programador, e portanto são capazes não só de processamento numérico, em sentido estrito, mas também de processamento lógico e algébrico. Portanto, pode-se dizer que

o termo computador denomina uma máquina capaz de processar ao menos um modelo informacional, onde os sinais de entrada e saída adquirem significado, dentro de um contexto definido por seres humanos. Isso implica no estabelecimento de uma correspondência aproximada entre os dados processados pelo computador e as variáveis do problema a ser resolvido. Mais precisamente, podemos dizer que um computador é uma máquina

33 “Computing machines are essentially machines for recording numbers, operating with numbers and giving

através da qual dados são coletados, armazenados e transformados com

propósitos definidos (Amorim, 2002, p.19).

Na automação, o modelo informacional pertinente é estabelecido com base na definição de relações funcionais entre as variáveis medidas e as ações a serem efetuadas para manter o sistema operando, dentro dos padrões desejados34. Atualmente, quase todos os

computadores são construídos com base na tecnologia eletrônica digital, que atualmente é a forma mais rápida e econômica de se processar sinais com alto desempenho. E é justamente na tecnologia dos circuitos eletrônicos que se encontra uma das causas da hegemonia dos computadores digitais, conforme explicado a seguir.

O funcionamento de qualquer circuitos eletrônico se altera com as mudanças de temperatura, sejam as do meio, seja as causadas pela geração de calor no próprio circuito35.

Ele também pode ser influenciado por interferências eletromagnéticas, provenientes de fontes externas36. Por isso, no projeto de um circuito, geralmente são adicionados componentes que

não contribuem diretamente para o fim almejado, mas que são necessários para compensar a instabilidade intrínseca dos demais componentes, assim como as interferências do meio. Além disso, o tempo de uso dos componentes eletrônicos também altera suas propriedades, o que, eventualmente, pode causar instabilidade nos circuitos. Por fim, não há dois circuitos com propriedades estritamente iguais, que responderão de modo idêntico aos mesmos estímulos, uma vez que mesmo os melhores componentes eletrônicos têm uma tolerância de desvio em relação às especificações nominais. Por isso, eles devem ser projetados de modo que a precisão das operações se mantenha, apesar de todas essas condicionantes. Esse objetivo é mais facilmente alcançado nos circuitos digitais, que trabalham com sinais discretos, isto é, dentro de faixas de tensão bem definidas37. Por outro lado, é difícil garantir a precisão de um

34 Nem sempre, porém, tais relações são definidas à priori, pelos projetistas do sistema. Em alguns casos,

técnicas de inteligência artificial, tais como as redes neurais e os algoritmos genéticos, permitem que os sistemas computacionais estabeleçam as relações funcionais de maneira ótima, de acordo com os critérios de eficiência determinados pelos projetistas. Em outras palavras, as relações funcionais que definem um sistema de controle moderno nem sempre refletem um modelo matemático explícito, pois esse modelo às vezes fica oculto nos parâmetros auto-configuráveis do sistema, caracterizando, assim, uma auto-regulação de segunda ordem.

35 Essa é uma das razões pelas quais certos defeitos em aparelhos eletrodomésticos só aparecem depois de

algumas horas de uso contínuo.

36 É por isso que não se deve usar celulares perto de bombas de gasolina, nem tampouco dentro de aviões. 37 Por exemplo, alguns circuitos digitais representam o ‘0’ (zero) por meio de uma tensão entre 0,0 e 0,3

circuito analógico em diferentes situações de uso, e no decorrer de toda a sua vida útil, porque ele trabalha com sinais variando continuamente dentro de uma faixa de tensão38. Essa é uma

das razões pelas quais, muito antes do advento do microprocessador, Wiener (1965, p.117- 118) já afirmava que os computadores binários deveriam ser preferidos face aos analógicos, sempre que uma precisão elevada estivesse em jogo39.

Tenório (1998, p.38) assinala que

O cálculo digital se refere especialmente ao cálculo efetuado a partir da representação e manipulação simbólica de variáveis a partir de um conjunto de regras ou leis teóricas gerais (não necessariamente leis físicas).

Ou seja, no cálculo digital as leis físicas ficam nos bastidores, dando suporte ao mecanismo abstrato de cálculo. Já no cálculo analógico, as leis físicas entram em cena ostensivamente, determinando a precisão e confiabilidade dos resultados obtidos40.

Hoje, com a disseminação dos microprocessadores poderosos, fabricados em larga escala a um custo muito baixo, a utilização de computadores digitais de uso geral tornou-se mais econômica do que a fabricação de dispositivos analógicos. Os computadores analógicos, mesmo que modulares, devem ser calibrados e interconectados de forma a resolver o problema desejado, caso a caso. Os computadores digitais precisam apenas ser programados, e o programa que resolve o problema uma vez será usado, se alterações em diversos computadores da mesma “família”, sem a necessidade de adaptações.

Em resumo, pode-se afirmar que a atual hegemonia dos computadores eletrônicos digitais se deve a um conjunto de fatores, a saber: (1) miniaturização – os computadores eletrônicos são diminutos, e consomem muito pouco energia, em relação a qualquer outro tipo

de computador artificial (pneumático, eletromecânico);

(2) velocidade de processamento – o chaveamento dos circuitos se dá à razão de milhões ou bilhões de vezes por segundo, permitindo cálculos extremamente rápidos; (3) flexibilidade –

diante de possíveis ruídos ou flutuações nas propriedades dos componentes.

38 Por exemplo, em determinado circuito a tensão de 2,0 Volts poderia representar o valor 50, e a tensão de

2,1 Volts, o valor 52,5, em uma escala linear. Assim, uma flutuação de apenas 5% na tensão de trabalho provocaria uma alteração equivalente no resultado calculado.

39 Sem dúvida, a aritmética binária apresenta os seus próprios problemas de precisão, cuja consideração,

contudo, extrapola os limites do presente texto. Basta dizer, a título de exemplo elementar, que o número 0,6, ou 6/10, no sistema decimal, transforma-se em uma dízima, ao ser convertido para o sistema binário: 0,1001001001001...

40 Essa questão comporta uma análise bem mais elaborada, que contudo não contribuiria significativamente

um mesmo circuito pode ser adaptado às mais diversas finalidades, com alterações no software, o que proporciona um enorme ganho de escala; (4) estabilidade e previsibilidade – os computadores digitais são em geral mais estáveis e previsíveis do que os analógicos de custo e poder de processamento equivalente; (5) precisão – em qualquer tipo de computador, a precisão é limitada, mas nos computadores digitais, e nos binários, em particular, os níveis de precisão obtidos são mais facilmente controlados.

De acordo com Groover (2000, p.99), os laços de controle digitais proporcionam mais opções de controle (programas complexos), melhor integração e otimização de múltiplos laços, e flexibilidade dos programas de controle (sem necessitar de alterações do hardware).

Mais uma razão para que, tanto na automação industrial quanto no controle de aeronaves, a hegemonia dos computadores eletrônicos digitais de uso geral seja crescente. Isso significa que grande parte do know-how embutido nos sistemas pertinentes assume a forma de software, que em termos dos custos finais dos sistemas, geralmente supera o hardware, de longe.