• Nenhum resultado encontrado

Até o momento, vimos que as competências humanas específicas desenvolvem-se sobre o arcabouço de capacidades cognitivas primárias, e sobre ao menos uma forma de competência geradora – portanto, genérica –, que é a fala. Vimos também que a capacidade humana peculiar de entender o mundo por uma perspectiva intencional e causal nos torna aptos aos processo de interação cultural que realimentam o desenvolvimento cognitivo, e por conseguinte, viabilizam a sedimentação das competências. Falto-nos, contudo, um quadro unificador para a compreensão dos fundamentos desses processos. Tal lacuna nos remete ao trabalho de Searle (1994; 1995a; 1995b; 1997; 2000) sobre a intencionalidade.

80Lauand (2006) apresenta um interessante estudo comparativo de traduções brasileiras de uma história do

Tio Patinhas, entre os anos de 1958 e 2004, mostrando, entre outras coisas, como o vocabulário tem se tornado mais limitado, as estruturas gramaticais mais simples, e o léxico, mais servil aos originais em inglês.

Poderíamos dizer, a título de formulação preliminar, que Intencionalidade é aquela propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual estes são dirigidos para, ou acerca de, objetos e estados de coisas do mundo (Searle, 1995, p.1)81.

Desde logo, cabe alertar que o termo “intencionalidade”, nesse sentido, não se refere necessariamente a um estado mental que se manifesta como intenção (objetivo) de fazer alguma coisa. De fato, um objetivo, assim como um querer fazer algo são estados intencionais porquanto dirigidos a objetos ou estados de coisas, conforme a definição acima. Contudo, inúmeros outros estados mentais são também intencionais, sem que envolvam, necessariamente, qualquer objetivo ou querer fazer. Portanto, “crenças, esperanças, temores e desejos são intencionais, mas há formas de nervosismo, exaltação e ansiedade não- direcionada que não o são” (Searle, 1995, p.2). Assim, se tenho medo de alguma coisa em particular, esse medo caracteriza-se como estado intencional, mas, se experimento um temor indefinível, desvinculado de um objeto específico, não há intencionalidade.

A intencionalidade é irredutível a estados mentais mais elementares. Em outras palavras, os estados intencionais são “fenômenos mentais intrínsecos que não podem ser reduzidos a outra coisa ou eliminados por algum tipo de redefinição” (Searle, 1995, p.363), e “os estados mentais são tão reais quanto quaisquer outros fenômenos biológicos, tão reais quanto a lactação, a fotossíntese, a mitose ou a digestão” (Searle, 1995, p.366). Ancorados na estrutura o sistema nervoso central, os estados intencionais não são, segundo Searle, exclusivos dos seres humanos, mas certamente estão presentes em muitos animais, e obviamente, nos primatas.

Antes de prosseguirmos, vale à pena explicitar a aparente incompatibilidade entre essa afirmativa de Searle sobre a presença da intencionalidade em outras espécies e as afirmativas já mencionadas de Tomasello, sobre a capacidade peculiar dos seres humanos para a compreensão causal e intencional do mundo. Na verdade, ambas as posições não se excluem, necessariamente, desde que compreendamos a intencionalidade como atributo, necessário, porém não suficiente para a compreensão intencional e causal do mundo – embora, provavelmente, suficiente para o comportamento causal e intencional, que de fato se observa

81 O livro citado, originalmente publicado em 1983, é o primeiro em que Searle desenvolve amplamente a

teoria da Intencionalidade. Nele, o termo aparece com inicial maiúscula, para distinguí-la da “intencionalidade” (com minúscula) entendida meramente como estado em que há intenção de se fazer algo. Em obras posteriores, Searle (1994, 1995) abandona essa prática, e a palavra é sempre gravada em minúsculas. A partir de agora, no presente texto, essa opção mais recente será adotada.

em muitos animais. É provável, portanto, que a filogênese humana tenha, em algum ponto, nos equipado de maneira diferenciada para a compreensão de mundo, a partir de uma base comportamental comum com outros mamíferos superiores, embora por vias que ainda não compreendemos integralmente82. Esse é um ponto sobre o qual não nos aprofundaremos,

porque, para os propósitos do presente texto, eventuais discordâncias dos estudiosos no que concerne ao potencial cognitivo dos animais não são, a princípio, relevantes. O importante é nos firmarmos em um terreno razoavelmente sólido, concernente ao potencial cognitivo humano, que o estudo de outras espécies às vezes nos ajuda a compreender.

Feita essa ressalva, devemos completar a noção de intencionalidade com a noção de Background83, que segundo Searle, é subjacente à primeira. Background é o conjunto de

“capacidades, habilidades, e know-how geral” que permite o funcionamento dos nossos estados mentais (Searle, 1994, p.175). Uma das formas de compreender o Background é como um conjunto de faculdades “não representacionais”, que se colocam como condição de possibilidade do uso da linguagem, ao proporcionar a base sobre a qual a compreensão das sentenças é possível. Assim,

o mesmo significado literal determinará diferentes condições de satisfação, por exemplo, diferentes condições de verdade, relativamente a diferentes pressupostos de Background, e alguns significados literais não determinarão condições de verdade devido à ausência de pressupostos de Background apropriados (Searle, 1994, p.178).

Por exemplo, se no meio de um jogo de futebol, um amigo diz ao outro “vai, chuta!”, o que o ouvinte deve entender? Qual é o desejo do falante? Provavelmente, o de que o ouvinte dê um bom chute no rumo do gol adversário. Mas, a rigor, há outras possibilidades de entendimento, algumas verossímeis (“chuta para fora, que vêm chegando dois adversários”), outras descabidas (“chuta no nosso gol que o goleiro está distraído”). O significado mais provável será compreendido em contexto, não só do instante em que a sentença é proferida,

82Biologicamente, o sistema nervoso humano se destaca em relação ao dos outros animais devido ao seu

maior índice de encefalização, ou seja, a razão entre a massa cerebral e a massa corpórea, que nos humanos é sensivelmente maior do que em qualquer outra espécie (Fonseca, 1998; Sagan, 1983). Embora, dentro da espécie humana, a variação de alguns pontos percentuais nesse índice seja irrelevante, sua variação entre as espécies relaciona-se de forma consistente com a variabilidade comportamental, e com as habilidades cognitivas da espécie. Contudo, não sabemos ainda de que forma essa característica peculiar contribui para a capacidade humana de entender o mundo de forma intencional.

83Iniciando por maiúscula, e em inglês, conforme convenções adotadas respectivamente por Searle e por

mas em relação a todo um conjunto de práticas sociais subjacentes, aqui representadas no jogo de futebol.

Com exemplos análogos a esse que criei, Searle quer mostrar que, mesmo em relação a sentenças muito simples, “o número de interpretações errôneas84 é estritamente ilimitado”

(1994, p.180). E não é apenas a nossa capacidade de interpretar o significado literal das sentenças que mostra a importância do Background, mas também a nossa capacidade, também aparentemente ilimitada, de criar e compreender metáforas.

Em aproximação com aquilo que chamamos de habilidades cognitivas de base, Searle adota o termo “Background de base”,

que incluiria no mínimo todas aquelas capacidades de Background comuns a todos os seres humanos normais em virtude de sua constituição biológica – capacidades tais como andar, comer, pegar, perceber, reconhecer (1995a, p.199).

Complementarmente, “a atitude pré-intencional que leva em conta a solidez das coisas e a existência independente de objetos e [de] outras pessoas” seria própria do “Background local”, entendido como as

práticas culturais locais, que incluiriam coisas tais como abrir portas, beber cerveja em garrafa e a atitude pré-intencional que assumimos em relação a coisas como carros, geladeiras, dinheiro e reuniões sociais (1995a, p.199).

Da associação desses dois aspectos do Background nascem as condições para o aparecimento dos estados intencionais, que incluem os desejos, o ímpeto, as intenções e a deliberação. É nesse ponto que o terreno para o desenvolvimento das competências começa a se delinear, porque não é possível pensar qualquer competência que se desenvolva ou que se concretize, em ato por outra via, que não seja a de uma atitude deliberada, direcionada, e por conseguinte, intencional. A propósito, Rey (2002, p.36) afirma que

se não há uma competência sem objetivo, se ela é a faculdade de organizar os movimentos elementares visando a uma ação socialmente identificável, ela coloca em cena a intenção daquele que a possui.

Indo um pouco além, eu diria que a competência, em suas variadas manifestações coloca em cena a intencionalidade do sujeito, no sentido que Searle atribui ao termo intencionalidade. Estabeleço, assim, uma relação dialética entre conceitos, pois na mesma medida em que o Background fundamenta os estados intencionais, e estes condicionam o desenvolvimento das competências, estas, ao se desenvolverem, modificam o ambiente físico,

biológico e cultural do indivíduo e da espécie. Logo, o Background não é um terreno sólido, porém movediço, alterando-se sob o efeito das competências às quais serve de base: é o ser intencional transformando o mundo.