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Vieira Pinto alerta para a necessidade imperiosa de, ao se estudar a máquina41, levar-se

em conta o “processo histórico cultural do qual representa termo”, sem o que se recai na “falta de perspectiva sobre o passado, defeito que não só empobrece qualquer compreensão do presente, como limita, obscurece e deforma a visão do futuro” (Pinto, 2004, v.2, p.30-31). O mesmo alerta se aplica, por extensão, ao estudo das teorias de base que permitem o aperfeiçoamento da máquina, no caso, as teorias cibernéticas, cujo desenvolvimento propiciou as condições para o maior aprimoramento das máquinas auto-reguladas, antes realizado de forma lenta, predominantemente empírica. O que se busca, nos parágrafos seguintes, é compreender a cibernética e seus produtos sob uma perspectiva histórica, na medida em que essa compreensão é importante para elucidar o seu sentido epistemológico e o seu sentido social, contribuindo para o posterior levantamento de questões pedagógicas pertinentes. Como já foi dito, o destaque dado à cibernética no presente trabalho tem a sua razão de ser na

41 Naturalmente o filósofo não se refere a uma máquina em particular, enquanto objeto material individual,

influência duradoura desse campo de estudos sobre os sistemas de produção, e conseqüentemente, sobre toda a sociedade.

No que concerne à identidade da cibernética, de meados do século XX para cá mudaram os atores, as técnicas e a terminologia; aprimoraram-se as ferramentas e métodos, e de modo geral, deslocou-se o enfoque, antes algo teórico e matemático, para um campo mais pragmático de realizações, na indústria e em outras áreas. Todas essas mudanças, contudo, não anulam a pretendida abrangência da cibernética enquanto estudo da “comunicação e do controle no animal e na máquina” (Wiener, 1965); ao contrário, reafirmam essa abrangência. Por isso, penso que uma das razões para que o nome “cibernética” tenha caído em desuso é justamente o sucesso alcançado pelos pressupostos e pelas teorias elaboradas sob a sua inspiração, que levou à rápida subdivisão dos estudos cibernéticos em várias especialidades, cada qual adotando a sua própria terminologia e suas próprias técnicas, adequadas ao seu objeto de estudo.

Mais ou menos na mesma época que Wiener publicava a segunda edição do livro “Cybernetics”, em 1961, a computação já despontava como área independente, e dentro dela, já se instalava o ramo conhecido como inteligência artificial. No mesmo período, o behaviorismo se sedimentava, dando origem, na confluência posterior com a computação e com a lingüística, à vasta área de estudos que se convencionou agrupar sob o rótulo de “ciências cognitivas”. A neurofisiologia também seguiu uma via independente, embora hoje também se aproxime bastante do “cognitivismo”, inclusive nos projetos, sonhados por Wiener, de próteses para pessoas que perderam mãos, braços ou pernas, ou que se tornaram paraplégicas ou hemiplégicas42. Nesse meio tempo, a engenharia de automação e controle

cresceu em importância, e com o desenvolvimento da microeletrônica, da mecânica de precisão, da ciência dos materiais e dos algoritmos, surgiu nos últimos anos a mecatrônica, como confluência de teorias e técnicas da computação e das engenharias mecânica, elétrica e eletrônica, reivindicando o status de ciência geral da automação.

Essa análise, necessariamente sucinta, sob pena de fugir ao foco do presente texto, permite-nos apreciar a força da herança cibernética no mundo contemporâneo, independentemente das questões superficiais de nomenclatura. Nos sistemas automatizados, em particular, as idéias e a matemática da cibernética estão presentes de modo inalienável,

42 O controle de prótese através de sinais captados diretamente do sistema nervoso é uma área

embora muitas vezes os seus construtores e os seus patrocinadores desconheçam os processos históricos, os fundamentos conceituais e os pressupostos epistemológicos que condicionam os seus esforços.

A cibernética, enquanto campo científico diferenciado, surgiu no momento em que se multiplicavam as máquinas dotadas de mecanismos de controle interno e externo, despertando a necessidade de reflexões explicativas. É nesse sentido que “a realização histórica da cibernética confirma a essência da cibernética. Em seu fundamento, não passa de um caso de retroação, de feedback da cultura, de retorno da tecnologia sobre ela mesma” (Pinto, 2005, v.2, p.609). Ou seja, a cibernética surge como quadro teórico explicativo, apoiado em um ferramental matemático pré-existente, em um período fecundo em desenvolvimentos tecnológicos que demandavam estudo sistemático para seu melhor aproveitamento. Nesse contexto, “a grande mecanização” da II Guerra Mundial teve um papel de destaque (Wiener, 1965, p.43).

Cada momento histórico é evidentemente único, pois as as formas de convivência social não param de se transformar, assim como as as formas de mediação tecnológica entre os seres humanos, e entre esses e a natureza. Por outro lado, há aspectos de base na organização da sociedade, em especial no que tange às estruturas de poder, que persistem durante séculos, com poucas alterações, apesar das transformações dos mecanismos através dos quais se manifestam. No mundo contemporâneo, as relações de classe ainda se assemelham bastante àquelas existentes na Idade Média, ou mesmo na Antiguidade, apesar das mudanças institucionais e dos enormes avanços tecnológicos ocorridos desde então. Portanto, o destaque dado à técnica como elemento determinante das relações sociais deve ser visto com reservas. Nesse sentido, é um erro acreditar que a disseminação em larga escala das máquinas cibernéticas computadorizadas, por si só, faz do atual momento histórico um momento revolucionário. Analisando a questão, Vieira Pinto (2004, v.2, p.88) alerta para

o perigo da fascinação com as novidades verbais, levando a consciência despreparada a esquecer que muito daquilo agora dito por uma nova ciência, a cibernética, na verdade sempre existiu, apenas com outros nomes, porém com a mesma função essencial em relação ao homem.

Sem trair o pensamento do autor, pode-se precisar que não é exatamente a cibernética que sempre existiu, mas sim muitas das criações a ela atribuídas, embora sob roupagem diferente da atual, adaptada às contingências sociais e tecnológicas de cada tempo.

Nesse sentido,

as classes poderosas sempre tiveram ao seu dispor servomecanismos, fossem eles o escravo dos faraós e dos sátrapas, o cavalo dos barões feudais e os engenhos mecânicos, agora aperfeiçoados com o caráter eletrônico e automatizados, dos industriais modernos (2004, v.2, p.87-88).

Em termos ontológicos, não cabe comparar a máquina com o ser humano rebaixado à condição de escravo. Mas, economicamente, a automação tem semelhanças com a escravidão, como instituição a serviço do status quo, porque: (1) tanto o escravo quanto o autômato estão a serviço de uma classe que dispõe de capital para sua aquisição; (2) escravos e máquinas cibernéticas são ambos capazes de realizar tarefas complexas, com um certo grau de autonomia; (3) ambos necessitam, para operar, de uma certa quantidade de energia43; (4) os

autômatos são programados e os escravos, condicionados (por meios violentos) pelos detentores dos meios de produção, ou mais precisamente, por seus servidores remunerados, para a realização das tarefas requeridas na produção44; (5) o seu proprietário pode usá-los da

maneira que melhor lhe aprouver, ressalvados os respectivos limites, físicos no caso da máquina, fisiológicos, no caso do escravo e eventualmente legais e culturais, em ambos os casos.

Mas o escravo, não sendo máquina, traz em si um inalienável desejo de emancipação que, malgrado o aparato repressor da sociedade escravocrata, ameaça sempre rebelar-se, ou seja, agir de modo incompatível com as finalidades e expectativas da classe dominante. Portanto, a substituição dos escravos pelas máquinas – primeiro as simplesmente mecânicas, e depois as computadorizadas –, ao cabo de um prolongado processo histórico, não se deve tanto às considerações de ordem humanitária, mas sobretudo às conveniências do sistema capitalista em constante renovação. Segundo Derry e Williams (1993, p.252), o moinho a água, por exemplo, não era comum no Império Romano até o século III d.C., possivelmente porque

enquanto os escravos e outras formas de trabalho barato estavam disponíveis havia pouco incentivo para os investimentos de capital necessários [...] Quando a força humana não estava disponível, era mais fácil usar burros ou cavalos do que construir moinhos a água.

43 No caso da máquina, energia elétrica, térmica, química ou nuclear, oriunda de fontes definidas, e no caso

do escravo, energia química, por meio da ração diária de alimento.

Para o industrial, assim como para o agricultor em larga escala da atualidade, geralmente é mais recompensador manter uma estrutura complexa de máquinas cibernéticas, sob o comando de técnicos especializados, do que uma estrutura servil de seres humanos degradados fisicamente e intelectualmente, que nada produzirão além daquilo que lhes possa ser tirado através do uso ostensivo da força. Hoje em dia, os trabalhadores que se destacam no mundo da produção são os que projetam, operam, programam e consertam as máquinas, pois deles se pode extrair mais-valia com maior eficiência e sutileza, devido à enorme produtividade que alcançam indiretamente, por meio dos autômatos45 que dominam. Contudo,

se historicamente a automação traz tantas vantagens para o capital, é preciso explicar porque nem sempre as máquinas substituem as pessoas, mesmo quando a tecnologia necessária está madura.

Morgan (1996) divide o chamado mercado de trabalho em dois estratos: o mercado de trabalho primário, onde transitam os trabalhadores de carreira, dotados de conhecimentos específicos, cuja formação profissional exige investimentos de capital mais ou menos significativos, e o mercado de trabalho secundário, onde se posicionam os trabalhadores não- especializados, fáceis de contratar e de demitir, porque sua formação não requer investimentos significativos. Nesse contexto, o mercado de trabalho funciona como um “amortecedor”, que permite à organização se adaptar à flutuação da demanda por seus bens ou serviços, por meio da contratação e da dispensa dos trabalhadores menos qualificados. Dessa forma, preserva-se a posição dos trabalhadores do mercado primário e das elites dirigentes contra as “incertezas do ciclo de negócios”. Daí decorre que a existência da tecnologia, por si só, não elimina as tarefas arriscadas, insalubres, repetitivas ou pouco significativas, que continuarão sendo realizadas por seres humanos, enquanto isso for conveniente para os donos do capital.

Cabe observar que, ao substituir as pessoas por máquinas, o empresário espera obter ganhos, ou com o aumento da produção, ou com a melhoria da qualidade do produto, ou com a economia de energia ou de matéria-prima. Por outro lado, ele se compromete com um certo modo de produção que, além de demandar um vultoso investimento de capital, implica em um custo fixo elevado com a manutenção e depreciação dos equipamentos, mesmo em períodos

45 Na disseminação do conhecimento já começa a se delinear uma tendência análoga, com a contratação de

professores para os cursos de “educação à distância”, em que as aulas são ministradas via satélite, de modo que um só professor atende simultaneamente a centenas de alunos espalhados pelo País, aumentando sobremaneira a lucratividade das instituições.

prolongados de ociosidade. Por isso, em alguns setores, freqüentemente, é mais rentável contratar trabalhadores não qualificados, em caráter precário, do que automatizar as tarefas que eles realizam. É por isso que ocorrem, por exemplo as contratações de empregados temporários pelas indústrias de chocolates, meses antes da páscoa, dependendo das expectativas de vendas decorrentes do cenário econômico. Consoante a tese de Morgan (1996), os trabalhadores mais qualificados, em especial aqueles que programam as máquinas da linha de produção, são muito menos vulneráveis às flutuações sazonais e às crises econômicas do que os operários embaladores, por exemplo. Logo, a automação não resolve – e possivelmente agrava – o problema da exclusão dos trabalhadores menos qualificados, mantidas as atuais formas de relação entre capital e trabalho.

Dentro das empresas, a presença crescente da automação na produção conduz, atualmente, ao amortecimento, ou ao menos ao mascaramento das tensões entre os trabalhadores e a administração, porque: (1) A automação provoca a dispensa de uma parte significativa da força de trabalho, mas, por outro lado, tende a proporcionar, aos trabalhadores que ficam, melhores condições de higiene e conforto; (2) A atividade sindical se enfraquece, às vezes pelo medo do desemprego, mas sobretudo porque o número de trabalhadores sindicalizados diminui; (3) Os técnicos que detêm o know-how de programação e manutenção das máquinas cibernéticas são relativamente bem remunerados, e freqüentemente enquadrados sob o rótulo dos “cargos de confiança”, gozando de um status social acima da média. Por isso, em geral, tornam-se mais dóceis às demandas do sistema46.

Porém, com o constante aprimoramento dos sistemas de automação, mesmo a posição dos trabalhadores do mercado primário se torna delicada, porque as máquinas incorporam cada vez mais know-how e se tornam mais fáceis de programar, em alguns casos chegando a dispensar conhecimentos especializados. Além disso, as máquinas capazes de aprender, contribuirão ainda mais para reduzir o número de trabalhadores necessários para assistí-las, na medida em que se inserirem rotineiramente no sistema produtivo. As empresas, por sua vez, enfrentam o dilema, ainda não resolvido, entre manter um quadro de profissionais altamente qualificados para planejar, projetar, construir ou integrar os seus sistemas, ou confiar prioritariamente nos pacotes tecnológicos mais fechados, sob controle dos seus fornecedores. Questões dessa ordem representam desafios enormes, porém muitas vezes ignorados ou

46 Nesse sentido, Morgan (1996, p.291) afirma que normalmente espera-se “lealdade” dos trabalhadores do

subestimados, que não poderão ser resolvidos sem intervenções em profundidade nas atuais formas de organização do mundo da produção.