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Autoria

No documento carolinaalvesmagaldi (páginas 40-45)

A questão da autoria na Kalevala e no Popol Vuh reserva particular complexidade para nosso estudo. Tendo sido compiladas a partir de universos orais, as obras já partem de um tenso encontro entre narrativas de construção coletiva e interferência individual. Adiciona-se a esse cenário a questão do ponto de vista estrangeiro representado por Elias Lönnrot e Francisco Ximénez e tem-se um contexto no qual a apresentação da autoria se confundirá com discussões de autenticidade e pertencimento cultural6.

Ximénez era um frade espanhol estudioso da cultura e língua quiché, e, mesmo em sua versão dos acontecimentos que levaram à tradução do Popol Vuh, afirma que o manuscrito original teria sido deixado em sua sacristia por nativos junto a quem teria conquistado confiança. Assim sendo, nem em sua explicação do encontro com a narrativa há contato direto entre a narrativa oral coletiva e sua famosa tradução.

Já Lönnrot tem sua postura estrangeira reforçada por ter sido criado em Turku, antiga capital finlandesa, sendo essa uma região extensamente assimilada pela cultura sueca e, posteriormente, pela russa. Como médico, Lönnrot viaja por regiões da Carélia, onde a população ainda conservava a língua e os costumes finlandeses. No caso finlandês, observamos uma mudança na percepção da figura de Lönnrot, visto nas primeiras traduções como herói compilador7, que recuperou uma tradição popular e nas obras contemporâneas como escritor que se baseou em um substrato popular para sua criação. Na edição brasileira há uma falta de diálogo acerca do tema, sendo o prefácio de Raisa Ojala representativo da antiga noção de Lönnrot como compilador de uma obra ancestral de autoria coletiva, e o paratexto de José Bizerril sintomático da concepção atual acerca do folclorista8, na qual ele é visto como autor individual da obra.

6

Ressaltamos aqui a inexistência de edições críticas das obras, elevando, assim, a importância das sucessivas discussões dos tradutores a respeito do teor e da significação histórica, cultural e literária da

Kalevala e do Popol Vuh.

7 Durante meu período de estadia na Finlândia houve uma pesquisa nacional de opinião a respeito dos

heróis da nação. Os três primeiros colocados foram Mikael Agricola, que primeiro registrou a língua finlandesa, Carl Gustav Emil Mannerheim, que foi alçado à posição de general durante a Segunda Guerra Mundial, tendo livrado a Finlândia da anexação à Rússia, e Elias Lönnrot, compilador da Kalevala.

8 Os temas relacionados à famosa escola finlandesa de folclore serão abordados com mais profundidade

no último subitem deste capítulo. Neste momento faz-se importante destacar que os folcloristas visavam coletar o maior número possível de manifestações populares, as quais seriam direcionadas a espaços próprios, tais como museus e bibliotecas, bem como que ainda hoje os departamentos de folclore são extremamente comuns nas universidades finlandesas.

40 A questão da autoria no Popol Vuh é ainda mais delicada, devido à alegada perda do texto original por seu primeiro tradutor, Francisco Ximénez. Nossa proposta de debater a possibilidade de a escrita de Ximénez ser uma ―pseudotradução9‖ se deve tanto a uma preocupação com a origem do texto quanto a uma atenção devida ao fato de essa possibilidade sequer ser levantada em traduções e artigos sobre a obra maia.

Para que possamos problematizar questões de tamanha importância para o estudo das traduções da Kalevala e do Popol Vuh precisamos, inicialmente, compreender melhor o papel desempenhado por seus primeiros protagonistas, sejam eles vistos como autores, compiladores ou tradutores.

No caso da Kalevala entendemos que o médico, filólogo e folclorista Elias Lönnrot (1802-1884) ficou encarregado de finalizar um processo de coleta de material oral que resultou na recriação escrita nas narrativas encontradas. Nascido em Sammatti, no sul da Finlândia, Lönnrot estudou medicina na Academia de Turku, até que o Grande Incêndio de 1827 consumisse praticamente metade da cidade, sendo, assim, forçado a concluir seus estudos em Helsinque.

Os estudos subsequentes de Lönnrot centraram-se nas áreas de folclore e linguagem, tendo sua dissertação de mestrado sido dedicada à recorrência do personagem Väinämöinen em poemas e canções populares.

Seu primeiro emprego como médico foi na cidade de Kajaani, no norte da Finlândia. A posição geográfica da cidade possibilitou ao estudioso dedicar-se à pesquisa da língua finlandesa, ainda falada por lá, e à coleta de manifestações orais centradas nos personagens mais recorrentes do folclore finlandês.

Lönnrot realizou cerca de doze expedições, entre os anos de 1833 e 1853, à região vizinha da Viena Carélia, território que hoje é parte finlandês, parte russo, para coletar provérbios, canções e narrativas, bem como para exercer suas funções médicas. Ao final desse período, retornou a Helsinque para dedicar-se à carreira acadêmica.

Além da Kalevala, Lönnrot publicou também, em 1840, o Kanteletar, coletânea de baladas e poemas líricos, e escreveu, ainda, artigos para jornais e revistas e um dicionário de bolso das línguas russa, sueca e finlandesa. Outra contribuição para a literatura se deu na criação de um dos primeiros contos da literatura finlandesa, O Conto de Vorna.

9 O termo pseudotradução indica textos originais apresentados ao público como traduções, como

estratégia de inseri-los em um movimento, estilo ou escola de maior prestígio. Ao longo da tese abordaremos tanto a possibilidade de o texto de Ximénez ser uma pseudotradução, quanto o foto de essa possibilidade não ser sequer cogitada nas traduções estudadas.

41 É interessante notar que, além de ter preservado a língua finlandesa, o autor contribuiu grandemente para o aumento de seu vocabulário, tendo cunhado palavras do campo semântico dos estudos de linguagem, tais como kirjallisuus (literatura), pääte (declinação), luku (capítulo, número), yksikkö (singular gramatical) e monikko (plural gramatical) e da medicina, como é o caso de potilas (paciente), oire (sintoma), kuume (febre), valtimo (artéria) and laskimo (veia).

O autor traduziu, ainda, textos da área de medicina e educação, principalmente voltados a cuidados básicos nas comunidades rurais em que trabalhava. É o caso de Suomalaisten Talonpojan Koti-Lääkäri (O Médico de Família do Camponês Finlandês), publicado em 1839 e Neuvoja yhteiselle Kansalle Pohjanmaalla pienten lasten kasvattamisesta ja ruokkimisesta (Conselhos ao povo de Ostrobothnia sobre criar e alimentar crianças), publicado em 1844. Seus dois campos de conhecimento finalmente se fundiram em sua tese de doutoramento, intitulada Om Finnarnas Magiska Midicin, ou A Medicina Mágica dos Finlandeses.

Apesar do imenso volume e da fundamental importância do trabalho de Lönnrot para os estudos de linguagem, a Kalevala é sempre apresentada como sua obra prima. Segundo artigo publicado no site oficial do Instituto Juminkeko10, ―a Kalevala deu ao povo finlandês uma identidade. Ela é a base da cultura finlandesa, que logo começou a exercer uma profunda influência em outras áreas de produções artísticas.‖11

A questão da autoria no Popol Vuh é também delicada, devido ao momento histórico e às circunstâncias de sua construção escrita. A data exata de sua escrita permanece desconhecida, com especulações sendo realizadas por estudiosos e tradutores com base em seu conteúdo e estrutura narrativa.

Muitos estudiosos, como Miguel León Portilla12, autor de Literaturas Indígenas de México, afirmam que a origem do Popol Vuh remonta ao século XVI e que

10 O Instituto Juminkeko foi fundado em 1985 com o objetivo de revitalizar as manifestações artísticas

centradas na Kalevala e na cultura carélia como um todo. Sua existência é extremamente recente quando comparada aos mais de cento e cinquenta anos da Sociedade Kalevala e responde a uma necessidade ainda imperiosa da nação finlandesa em incorporar referências culturais da Carélia, berço da Kalevala e território anexado pelo exército russo durante a Segunda Guerra Mundial.

11 JUMINKEKO. Disponivel em http://www.juminkeko.fi/en/. Acesso em 05 de julho de 2010. Citação

original: ‗The Kalevala gave the Finnish people an identity. It is the cornerstone of Finnish culture, which soon began to exert a profound influence on the other spheres of artistic endeavor.‘

12

Miguel Leon Portilla (1926-) é antropólogo e historiador mexicano, especialista em culturas e literaturas nativas mesoamericanas, em particular a náhuatl. É pesquisador emérito da Universidade Autônoma do México desde 1988. Recebeu quatorze doutorados honoris causa de universidades latino- americanas, estadunidenses e até mesmo da Universidade de Tel Aviv. É autor de diversas obras fundamentais para a reinterpretação do processo de colonização da América hispânica, como é o caso de

42 o manuscrito13 manteve-se oculto até ser encontrado em uma sacristia pelo frade Francisco Ximénez, que teria feito uma cópia e perdido o original. Dessa forma, somente sua versão teria sobrevivido, com o nome de Historia de los Indios de esta Provincia de Guatemala (PORTILLA, 1992, p.178).

Francisco Ximénez (1666- c.1729), que tem por vezes seu sobrenome grafado Jimánez ou Jiménes, foi um padre dominicano cuja maior contribuição para as culturas mesoamericanas está na conservação do Popol Vuh para as gerações seguintes. Há pouca informação biográfica acerca do religioso, mas acredita-se que ele tenha sido ordenado em 1691 e que tenha sido enviado a Santo Tomás Chichicastenango em 1701, onde teria tido contato com a narrativa maia em questão. Ambos os manuscritos de Ximénez, que se encontram hoje na Biblioteca Newberry, nos Estados Unidos, não possuem divisões, nem uma definição consistente com relação à pontuação ou ao uso de letras maiúsculas, representando um desafio à parte para os tradutores do Popol Vuh. No meio acadêmico como um todo há pouca ênfase na polêmica estabelecida pela ausência de um original, no qual Ximénez teria baseado sua cópia, ou mesmo na veracidade de sua existência. Uma das nossas hipóteses para tal silêncio seria que o reconhecimento de Ximénez como compilador do Popol Vuh retiraria a obra de um contexto de autoria coletiva e autóctone e o traria para um universo de escrita original, europeia e cristã, donde se deriva nossa preocupação com a possibilidade da pseudotradução.

Outros autores, como Paul Gendrop14, autor de A Civilização Maia, afirmam que o Popol Vuh seria uma obra quiché de tradição maia, recolhida pelo padre Brasseur de Bourbourg no século XIX (GENDROP, 2005, p. 205). Abbé Charles-Etienne Brasseur de Bourbourg (1814 – 1874) foi um escritor, etnógrafo, historiador e arqueólogo francês. Foi especialista em estudos mesoamericanos, tendo se dedicado às culturas maia e asteca. Suas crenças na conexão entre a civilização maia e o continente perdido da Atlântida influenciaram o trabalho do político, escritor populista e cientista amador estadunidense Ignatius L. Donnelly e, em última instância, inspiraram a criação

Visión de los vencidos, de 1959 e El reverso de la conquista – Relaciones aztecas, mayas e incas, de

1964.

13 A utilização dos termos ―manuscrito‖ e ―original quiché‖ merecem sempre muita atenção nas leituras

dos paratextos das traduções do Popol Vuh, pois, tal como na edição brasileira, eles são utilizados para se referir a três textos diferentes: ao texto que Ximénez alega ter lido; ao primeiro texto produzido pelo frade e incluída em um volume histórico e, à segunda versão do texto produzida por Ximénez, dessa vez com mais qualidade literária, sendo essa última aquela que de fato é utilizada como base para a maioria das traduções.

43 da pseudo-ciência do maianismo, misto de estudo cultural e crença religiosa ligada à Nova Era.

Os estudos de Bourbourg foram de grande importância para as pesquisas acerca dos povos maias, mas sua convicção na relação entre tal civilização e o continente perdido da Atlântida prejudicou a credibilidade de seu trabalho, ainda que defesas de sua teoria sejam ainda hoje encontradas em sítios de internet15.

Muitos pesquisadores contemporâneos, tais como Gendrop e Barnadas, concordam que, se houve um texto escrito original, ele teria sido escrito por um nativo convertido ao cristianismo. O texto teria sido então copiado e traduzido do quiché original oral e escrito para o castelhano em fins do século XVII pelo monge Francisco Ximénez.

Brasseur de Bourbourg teria ingressado na história por meio da influência de um pesquisador austríaco, Dr. C. Scherzer, que teria encontrado o manuscrito de Ximenes na biblioteca da Universidade de San Carlos, na Guatemala, em 1854 ou 1855. O próprio austríaco teria feito uma cópia da versão em castelhano do texto e publicado em Viena, em 1856, com o título de of Las Historias del origen de los Indios de Guatemala, par el R. P. F. Francisco Ximénes. Bourbourg teria então traduzido o texto para o francês e publicado em Paris em 1861, sob o título de Vuh Popol: Le Livre Sacré de Quichés, et les Mythes de l'Antiquité Américaine. Portanto, mesmo para os pesquisadores franceses que priorizam sua participação na chegada da narrativa à Europa, o papel de Ximénez como primeiro a traduzir o texto permanece.

Ambas as criações são acompanhadas de extensas notas explicativas que defendem seus pontos de vista acerca do texto em si e da cultura maia como um todo. Hoje em dia o nome de Bourbourg ainda é invocado por estudiosos franceses, mas suas teorias das raízes míticas da civilização maia não são incluídas ou debatidas nas traduções francesas ou em volumes acerca dos maias, dando-se destaque ao fato de o estudioso ter dado o nome moderno à narrativa.

O ponto referente à construção escrita do Popol Vuh é extremamente relevante para nosso estudo, pois ilustra o diálogo entre colonizadores e colonizados e o momento

15 Popol Vuh sob a ótica de Brasseur de Bourbourg. Disponível em

http://www.vopus.org/pt/gnose/antropologia-gnostica/popol-vuh-livro-do-conselho.html. Acesso em 12 de dezembro de 2011.

44 de choque entre universos orais e escritos, além de demonstrar que as narrativas construídas acerca da obra podem ser tão fantásticas quanto seu conteúdo.

É provável que o Popol Vuh já tenha iniciado sua história escrita como uma pseudotradução, uma vez que a versão mais aceita para a construção escrita da narrativa relata que o frade Francisco Ximénez teria encontrado o texto em uma sacristia, o copiado e, então, perdido o original. Seu processo de tradução se intensificou durante o século XX, sendo a tradução de Adrián Recinos o mais recorrente ponto de referência para tradutores contemporâneos. Uma discussão mais aprofundada dos conceitos de pseudotradução e da própria concepção de autoria do âmbito dos estudos tradutórios será empreendida no quarto capítulo, devido a seu impacto para os diálogos entre de texto-fonte e texto-alvo, bem como entre cultura-fonte e cultura-alvo.

No documento carolinaalvesmagaldi (páginas 40-45)