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Diálogos estrangeiros e pseudotraduções

No documento carolinaalvesmagaldi (páginas 190-195)

A questão da relação entre tradução, capital cultural e nacionalismo vem sendo discutida há séculos. Goethe buscou sistematizar a dimensão cultural da tradução, relacionando-a ao nascente conceito de nação:

Existem duas máximas na tradução: uma exige que o autor de uma nação desconhecida seja trazido até nós, de tal maneira que possamos considerá-lo nosso; a outra, ao contrário, exige de nós que vamos ao encontro do estrangeiro e nos sujeitemos às suas condições, sua maneira de falar, suas particularidades. Graças a traduções exemplares, as vantagens de ambas são suficientemente conhecidas por qualquer homem culto (GOETHE, 2001, p.19).

Desde então, temos visto o surgimento da discussão com relação aos aspectos de estrangeirização ou de domesticação das obras traduzidas, buscado consciente ou inconscientemente pelo tradutor ao destacar, ampliar, apropriar, suprimir ou ressignificar elementos do texto-fonte que não são comumente encontrados na cultura- alvo.

Ambas as traduções aqui estudadas trazem grandes preocupações culturais, além de diversas justificativas das escolhas estilísticas feitas pelos tradutores, em particular na versão brasileira da Kalevala. Álvaro Faleiros chega a discutir os conceitos de estrangeirização e naturalização antes de justificar as escolhas tradutórias em termos de métrica, figuras de linguagem e gêneros textuais da reescrita brasileira da Kalevala, argumentando que considera o termo domesticação forte demais para sua reescrita (FALEIROS, 2009, p.78). Exemplificamos, assim, que os teóricos-tradutores consideram importante a discussão acerca dos elementos nacionais e estrangeiros que perpassam as traduções, mesmo quando não concordam com os conceitos mais utilizados pelos Estudos de Tradução na contemporaneidade.

Ainda relacionado ao tema, se pensarmos em Goethe e suas posições com relação à formação de identidades nacionais, o autor destaca o papel d‘O Anel dos

190 Nibelungos na criação do imaginário alemão, argumentando que teria sido mais proveitoso se a obra tivesse sido publicada em prosa, com caráter amplamente popular e domesticante99 (GOETHE, 2001, p.19).

Os Nibelungos fazem parte do mesmo processo que a Kalevala finlandesa e o engodo Ossian escocês, ainda que estejam distanciados por mais de um século, no qual se buscava a cultura popular por meio da literatura, em um contexto de construção literária, cultural e nacional a partir das teorias herderianas. A Kalevala, apesar de extensa e em versos, apresentou grande apelo popular em épocas posteriores à sua publicação, construído em processo semelhante ao texto alemão, com adaptações para a música e as artes plásticas. A grande distinção parece estar no fato de que o processo de fundação nacional finlandês ter sido centrado na Kalevala, enquanto o movimento alemão teve múltiplas facetas.

Goethe define as estratégias de supressão dos elementos estrangeiros como uma primeira época da tradução, seguida por uma segunda fase de apropriação do elemento estrangeiro e reconstrução com sentido próprio, a qual ele denomina ―parodístico no mais puro sentido da palavra‖ (GOETHE, 2001, p.21). Essa fase dialoga com os pontos IV e V da teoria de Even-Zohar, discutido em nosso último subitem, segundo o qual as interferências ocorrem frequentemente para criação de repertório.

A terceira fase é caracterizada da seguinte maneira:

(...) experimentamos o terceiro período, que é o mais elevado e último, onde se procura tornar a tradução idêntica ao original, não de modo que um deva vigorar ao invés do outro, mas no lugar do outro. (...) Esse modo sofreu, inicialmente, a maior resistência. Pois o tradutor que se une firmemente ao seu original, abandona, de uma forma ou de outra, a originalidade de sua nação e, assim, surge um terceiro para o qual o gosto da multidão ainda deve se formar (GOETHE, 2001, p.21).

A francesa Pascale Casanova, que destaca o papel da tradução como elemento de valorização, consagração e enriquecimento literário e cultural da cultura-alvo, afirma que Goethe via o tradutor não somente como intermediário, mas igualmente como criador de ―valor literário‖ (CASANOVA, 2002, p.28).

Em nosso corpus, o tradutor cria não só um valor literário, como também um valor cultural. Tanto na tradução brasileira da Kalevala quando no Popol Vuh é dada

99 Para Goethe, a escrita do Anel dos Nibelungos em verso afastou-a do universo popular, em um processo

reforçado pelas adaptações para as artes plásticas e para a música clássica. Caso tivesse sido produzida em prosa, o autor considera que haveria um maior apelo popular e, o que teria ocasionado consequências culturais mais profundas.

191 ênfase ao processo de construção escrita das obras e, portanto, de sua transição do universo oral ao escrito. Esse tema ocupa praticamente todo o texto de José Bizerril acerca da tradução da Kalevala para o português brasileiro e povoa as reflexões de Gordon Brotherston na reescrita brasileira do Popol Vuh. Vale ressaltar que, no caso da obra maia, Brotherston tece considerações acerca da escrita hieroglífica em quiché e da presença de palavras em nauátle no texto (BROTHERSTON, 2007, p.14).

É interessante ressaltar que Brotherston é estadunidense e é o revisor da tradução de Sérgio Medeiros, então, apesar de manifestar mais considerações linguístico-tradutórias do que o tradutor da obra, ele as registra de forma geral, sem relacioná-las às escolhas provenientes das diferenças entre o quiché e a língua portuguesa. É, ainda, Gordon Brotherston que continua as reflexões acerca da importância cultural e política do Popol Vuh no paratexto ―O texto como germe‖, que destaca os desdobramentos da obra maia nas criações de diversos escritores consagrados, como Miguel Ángel Astúrias, Jorge Luís Borges e Alejo Carpentier, além de artistas plásticos como Diego Rivera e músicos como Edgar Varèse, em um texto curto e quase catalográfico, talvez buscando uma maior sistematização do sistema centrado na obra em questão.

A criação de valor literário e cultural por meio da tradução perpassa processos sutis de diálogos artísticos e incorporação de elementos da cultura-alvo, bem como outros mais drásticos, como é o caso da ―pseudotradução‖. Na Enciclopédia Routledge de Tradução, Anton Popovich define o fenômeno da seguinte forma:

Um autor pode publicar sua obra original como uma tradução fictícia, [ou pseudo]tradução para ganhar um público amplo, portanto fazendo uso das expectativas dos leitores. O autor tenta utilizar a crescente popularidade da ‗tradução‘ para empreender seu próprio programa literário. Do ponto de vista de teoria do texto, a tradução fictícia pode ser definida como o chamado quase-metatexto, isto é, um texto que é para ser aceito como metatexto100 (BAKER (ed.), 1996, p.183).

O Popol Vuh é possivelmente um caso de pseudotradução, posto que seu tradutor, Francisco Ximénez alegou ter encontrado o manuscrito original em uma

100

No original: ―An author may publish his original work as a fictitious [or pseudo]translation in order to win a wide public, thus making use of the readers‘ expectations. The author tries to utilize the ‗translation‘ boom in order realize his own literary program. From the standpoint of text theory, the fictitious translation may be defined as the so-called quasi-metatext, i.e. a text that is to be accepted as a metatext.‖

192 sacristia e tê-lo perdido após a conclusão de seu trabalho de versão ao espanhol, tal como destacam os teóricos-tradutores Adrián Recinos e Dennis Tedlock.

Na perspectiva francesa sobre a origem do Popol Vuh, aqui representada por Paul Gendrop (2005), a tradução é atribuída a Brasseur de Bourbourg e o texto-fonte é creditado às raízes da civilização maia no continente perdido da Atlântida, sendo ainda mais clara a origem fictícia do texto.

Importa-nos, aqui, ressaltar o papel cultural dessas afirmações, uma vez que estabelecer o Popol Vuh como um texto de autoria anônima, traduzido por um frade comprometido com a preservação da cultura autóctone mantinha o caráter de obra sobrevivente à colonização e de autenticidade inquestionável.

É interessante destacar que essa possibilidade de tradução fictícia é pouco discutida nos paratextos das traduções do Popol Vuh. Nos paratextos da edição brasileira há, inclusive, muito mais destaque aos tradutores da obra para a língua inglesa do que ao seu momento de construção escrita. Essa questão provavelmente se relaciona à importância dada às conexões acadêmicas dos tradutores e à preocupação em expor diálogos com escritores, músicos e artistas plásticos renomados, apresentando o Popol Vuh, assim, como substrato artístico mais do que como elemento cultural pré- colombiano.

Na Kalevala o advento da pseudotradução se dá de forma indireta. Primeiramente, discutimos em nosso segundo capítulo que o projeto protonacionalista finlandês envolveu a produção de um épico folclórico.

A mesma estratégia foi aplicada por Henry Wadsworth Longfellow em sua Song of Hiawatha, publicada em 1855. Entretanto, ao invés de escrevê-la a partir de lendas indígenas estadunidenses, o escritor adaptou a própria Kalevala, com resultados de crítica semelhantes ao fracasso de Ossian. O autor declarou na época que pretendia escrever os Edda estadunidenses, porém já em suas primeiras críticas nos jornais da época foram descobertas relações muito mais profundas com a Kalevala.

Havia uma confluência de temas, personagens e até mesmo escolhas métricas entre as duas obras, explicadas talvez pelo período que o autor passou na Suécia. Tal como no caso de Ossian, The Song of Hiawatha perde prestígio cultural e literário quando suas reais origens e fontes de inspiração são descobertas. A tradução, dessa forma, sendo um fenômeno intercultural por excelência, relaciona os universos literário e cultural de maneira complexa e com resultados variados.

193 No cenário centrado na obra de Longfellow, percebe-se o papel desempenhado pelas críticas editoriais na receptividade da obra. Esta conexão entre o universo editorial e o público leitor é um dos fatores que levou André Lefevere a buscar aliar a dimensão cultural da literatura ao universo mercadológico e editorial. Para o teórico há dois fatores de controle do sistema literário: o ―profissional‖, que confere autoridade e status por meio da atuação de críticos, resenhistas, professores e tradutores, e o segundo é o ―mecenato101‖, que é centrado nos elementos ideológico, econômico e de status (LEFEVERE, 2007, p.33-35).

Nesse sentido, a tradução surge como possibilidade de alinhar uma obra à poética dominante no momento de sua publicação. Lefevere compreende as poéticas como variantes históricas, que possuem um aspecto dinâmico e evolutivo apesar de almejarem controlar, ou mesmo congelar, determinados elementos e estilos literários. Dessa forma, as traduções permitem ―medir até que ponto uma determinada poética foi internalizada‖ (LEFEVERE, 2007, p.67). Em nosso corpus, mais uma vez, o sistema transcende as características literárias e alcança o âmbito cultural como um todo, podendo-se perceber, por exemplo, a alteração das formas de apresentação dos povos maia e finlandês por meio das traduções da Kalevala e do Popol Vuh. A tradução de John Martin Crawford (1888) para o épico finlandês, previamente discutida, destaca o aspecto ―selvagem‖ dos finlandeses102, demonstrando um primeiro momento de apresentação cultural finlandesa em termos de curiosidades e referências datadas até mesmo dos tempos do Império Romano. Esse elemento a distancia sobremaneira da proposta da edição brasileira do épico, cuja análise cultural é derivada da dissertação de mestrado de José Bizerril acerca dos universos da oralidade e escrita na Finlândia. Em ambos os casos, entretanto, as posições dos teóricos-tradutores se fazem presentes na leitura, nos levando a um último ponto a ser discutido no universo da tradução, referente à visibilidade do tradutor.

101

O termo inglês ―patronage‖ utilizado por Lefevere é por vezes traduzido como ―patronagem‖ e por vezes por ―mecenato‖ nas edições brasileiras. Ambos se referem, portanto, ao mesmo conceito.

102SACRED TEXTS. Coordenação de John B. Hare. Apresenta introdução, com a citação da crônica de

Tácito e o poema Kalevala traduzido por John Martin Crawford. Disponível em: http://www. sacred- texts.com/neu/kveng/. Acesso em 18 fev. 2006:

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