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Popol Vuh: Contexto e princípios de leitura

No documento carolinaalvesmagaldi (páginas 101-107)

2.4 Os paratextos do Popol Vuh

2.4.3 Popol Vuh: Contexto e princípios de leitura

O paratexto seguinte, ―Popol Vuh: Contexto e princípios de leitura‖, de Gordon Brotherston, já traz em seu título o intuito de estabelecer uma indicação de leitura e interpretação da obra. Aprofundaremos esta questão em nosso quarto capítulo, ao discutirmos a proposta de André Lefevere segundo a qual o tradutor arquetípico fiel se utiliza de notas explicativas para garantir a leitura correta do texto, em particular de obras fundadoras. No caso do Popol Vuh, a escolha pela supressão de notas de rodapé e a inclusão da chave de leitura no paratexto relativiza essa posição, assim como a postura de discutir o sistema tradutório como um todo, e não só a iniciativa atual.

Esse texto introdutório, o mais relevante dos paratextos do Popol Vuh para nosso estudo, possui diversos focos de interpretação, dentre os quais destacamos as noções de autoria e história, o desenvolvimento da narrativa e a relação entre oralidade e escrita.

Com relação à autoria, Brotherston determina uma criação autóctone coletiva ao poema, ao afirmar que ―Este livro foi escrito em meados do século XVI pelos quichés na sua própria língua, pertencente à família maia‖ (BROTHERSTON, 2007, p. 11). Podemos refletir, nesse momento, com relação à definição de livro, à noção de original e à cronologia da obra.

Primeiramente, caso tenha havido, de fato, uma obra original, traduzida e posteriormente perdida por Francisco Ximénez, ela seria um códice, tendo um valor simbólico similar, mas não equivalente ao objeto livro, trazido às Américas pelos colonizadores europeus. Para Brotherston, ―o mais antigo manuscrito conhecido do Popol Vuh é uma cópia, feita em Rabinal, Guatemala, de outra cópia, feita no povoado de Chichicastenango, também na Guatemala, do original maia quiché do século XVI, que utiliza a escrita alfabética introduzida pelos conquistadores‖ (BROTHERSTON, 2007, p. 12). Trata-se, portanto, de uma inferência de Brotherston acerca da existência e das condições de registro do manuscrito no qual Ximénez haveria baseado sua tradução. Dessa forma, Brotherston mantém a noção de originalidade de um texto referenciado por tradutores espanhóis, porém perdido, além de presumir que a versão original teria sido registrada em quiché, tendo vindo a apresentar hibridismos com o

101 alfabeto latino em versões posteriores. Além disso, a origem da obra é apontada como tendo sido em meados do século XVI e não do século XV, como consta na orelha do livro, sem assinatura, colocando-a, assim, no contexto da colonização europeia, e não antecedendo-a.

Devemos destacar, ainda, que a existência de uma escrita maia não implica que o papel cultural dessa tecnologia tenha sido o mesmo que aquele operado pela escrita em alfabeto romano operada pelos espanhóis. Além disso, a própria existência dos códices foi motivada pela colonização e pela chegada da tecnologia escrita europeia, bastando lembrar, mais uma vez, que o primeiro catálogo dos códices maias conta com quinze títulos pré-colombianos e novecentos e quarenta e oito manuscritos da época colonial (PORTILLA, 1992, p.138). Essa discrepância revela tanto uma mudança na finalidade dos mesmos, que passam de registro simbólico a resgate cultural, quanto a quantidade de códices perdidos e queimados durante a colonização.

Brotherston cita, de fato, esses quinze códices, assim como os ciclos calendáricos, como elementos da cultura Mesoamericana. O número de códices varia, devido ao fato de que alguns desapareceram recentemente, como é o caso do manuscrito de Nova Iorque. Além disso, a pertinência cultural é normalmente uma inferência, já que somente a escrita dos calendários se encontra totalmente decifrada. Brotherston destaca, ainda, que a origem do poema é creditada à Guatemala, em região próxima à fronteira asteca onde hoje é o México. Vale ressaltar que a origem geográfica do poema ainda hoje é foco de discussões entre Guatemala e México, até porque as fronteiras étnicas não coincidem, muitas vezes, com aquelas político-administrativas do Estado- Nação.

Já o percurso tradutório da obra é apresentado da seguinte maneira:

A história de sua tradução para as línguas europeias começa com uma versão setecentista do padre Ximénez, que foi seguida por versões em francês e alemão, e por outras em espanhol. Sua primeira tradução direta para o inglês foi feita em 1971 por Munro Edmonson, e a segunda, em 1985, por Dennis Tedlock. As maiores qualidades da edição de Edmonson derivam do fato de reproduzir o texto quiché em uma ortografia padronizada, que foi adotada nesta tradução bilíngüe para o português, e de examinar onze principais traduções feitas diretamente do quiché, até aquele momento, para o espanhol, o francês, o alemão e o russo. Essa edição considera seriamente a estrutura dos versos, fator geralmente ignorado até hoje (BROTHERSTON, 2007, p.13).

102 O sistema de traduções é analisado, assim, como iniciado por Francisco Ximénez. A possibilidade de pseudotradução não é apontada, mantendo a consistência com suas propostas de originalidade. Outra polêmica é evitada com a supressão do nome de Brasseur de Boubourg, tradutor para o francês, creditado por seu país de origem como aquele que resgatou a obra maia, apesar de sua crença de que os maias eram descendentes dos habitantes do continente perdido da Atlântida.

Há, então, um salto de mais de duzentos anos, para o início da história de traduções do inglês, com as versões de Munro Edmonson (1971), amplamente discutida e defendida, e de Dennis Tedlock (1985), muitas vezes, criticada ao longo dos paratextos.

A edição de Tedlock é louvada por ter sido feita a partir do quiché, apesar de não ser uma edição bilíngue e a principal ressalva de Brotherston está, exatamente, em seu subtítulo de ―texto definitivo‖, o que interromperia o processo de sistematização das retraduções. Além disso, Tedlock é criticado por discordar de Edmonson em detalhes pequenos e por não conservar o dístico em toda a obra (BROTHERSTON, 2007, p.13).

A importância da estrutura poética dos versos recebe grande destaque e, assim, como a edição brasileira da Kalevala, há ênfase na formação dos dísticos, próprios da poesia oral. Além disso, Brotherston valoriza a numeração dos versos, que será enfocada mais tarde novamente com a escolha de não se suprir lacunas de versos desaparecidos.

O segundo grande tema tratado por Brotherston refere-se ao universo histórico. Segundo o teórico-tradutor:

Escrito apenas três décadas após a invasão do território quiché liderada por Pedro de Alvarado em 1524, o Popol Vuh procura afirmar memória e direitos locais, perguntando quem, naquele ano, entrou na história de quem? Quem entende melhor o tempo que vai prevalecer agora, ‗na Cristandade‘? A quem pertence a narrativa mais original da gênese do mundo? Narra com clareza de detalhes a história da criação do Quarto Mundo, numa forma que recorre com engenhosidade à tradição da escrita indígena da qual ele próprio reivindica ter sido copiado (BROTHERSTON, 2007, p.11).

A passagem abre portas para diversas análises. Temos, em primeiro lugar, a descrição do embate entre nativos e colonizadores sendo mostrada quase em termos de igualdade político-cultural. Da mesma forma, a ancestralidade das narrativas cosmogônicas, cristã e maia, é apontada como critério de importância ou mesmo

103 grandeza. Há, ainda, a contraposição entre as concepções de tempo europeia e mesoamericana.

Por fim, destacamos uma rara postura de questionamento de Brotherston com relação à origem do Popol Vuh ao apontar que a obra refere-se ―à tradição escrita indígena da qual ele próprio [Ximénez] reivindica ter sido copiado‖, apontando, assim, que a existência de uma obra original é algo declarado, e não reconhecido ou comprovado.

Um dos pontos-chave em que Munro Edmonson é abordado como fundamentador da interpretação da edição brasileira do Popol Vuh refere-se à noção de ―título‖ enquanto delimitação territorial. Para Brotherston,

Em termos de gênero literário, como Edmonson mostrou, a melhor maneira de interpretar o Popol Vuh é, em primeiro lugar, trata-la como título (a palavra é a mesma em espanhol e português). Isto é, como tantos outros documentos nativos da Mesoamérica do século XVI, este foi composto por uma comunidade local ou, talvez, por uma parte dela, a facção kavek da cidade de Santa Cruz Quiché, Guatemala, para reclamar, perante o governo colonial espanhol, um benefício ou privilégio que datava de uma época anterior à invasão. O texto começa e conclui reconhecendo claramente o poder atual da cristandade e dos invasores conduzidos a Quiché em 1524 por Pedro de Alvarado, tenente de Cortés. Encerrada nestes dois momentos, a narrativa começa pela própria origem dos tempos, oferece um relato das quatro idades do mundo, características da cosmogonia do continente americano, e concentra-se, a seguir, na história quiché enquanto tal e nos eventos particulares nos quais os kaveks baseiam sua reivindicação legal. Consequentemente, os vulcões surgidos no início da criação são depois identificados com marcos que definem e protegem o território quiché. Longe de diminuir o valor do texto, a sua função prática de título imediatamente o eleva e nos alerta para os vários e diferentes níveis de tempo e de propósitos que a narrativa no seu conjunto unifica (BROTHERSTON, 2007, p. 13).

Esse dado territorial expresso pela interpretação da obra enquanto título está ausente da maioria dos paratextos das edições do Popol Vuh em língua espanhola e inglesa, incluindo as traduções de Tedlock para o inglês e de Recinos para o espanhol. Essa reivindicação histórico-geográfica não compromete, segundo Brotherston, a grandeza do texto ou sua importância literária, apesar de o termo ―título‖, grifado no texto, ocupar um lugar limítrofe entre os discursos literário, histórico e legislativo.

O ponto mais relevante para nosso estudo é, no entanto, a apresentação do texto como pertencente a dois momentos distintos: pré- e pós-colonização, estabelecendo um diálogo diacrônico com o universo espacial anterior à invasão e tentando reconstituí-lo após a chegada dos espanhóis. Para Brotherston, o Popol Vuh representa, assim, uma conexão entre uma construção pré-colonial enquanto obra de arte verbal oral e um

104 registro escrito após a chegada dos espanhóis. Por conta desse diálogo Brotherston apresenta o texto como uma ―transição da cosmogonia à história‖ (BROTHERSTON, 2007, p. 16). Conforme visto na citação destacada acima, para o teórico-tradutor, ―Longe de diminuir o valor do texto, a sua função prática de ―título‖ imediatamente o eleva e nos alerta para os vários e diferentes níveis de tempo e de propósitos que a narrativa no seu conjunto unifica‖ (BROTHERSTON, 2007, p. 13). Dessa forma, a reivindicação territorial não só faria parte da construção da obra, como também seria um elemento unificador dos objetivos da narrativa.

Dessa forma, o momento de construção escrita e difusão do Popol Vuh, é visto como um período de transição do discurso mítico ao universo racional histórico, como um paralelo ao processo vivido pelo velho mundo na antiguidade clássica.

A narrativa em si é apresentada inicialmente por meio de referências à Bíblia do quarto continente, e mais tarde a partir de parentescos com Chilam Balam, com A lenda dos Sóis e o começo dos Anais de Cuauhtiylan (BROTHERSTON, 2007, p. 11- 12). Os paralelos religiosos serão recuperados no segundo paratexto de Brotherston, como veremos em seguida.

Esse paratexto inicial de Brotherston apresenta uma reivindicação de inclusão do Popol Vuh no contexto de literatura mundial, em processo distante daquele apontado por Lefevere no âmbito da Kalevala, pois, ao contrário de estabelecer analogias com obras clássicas, Brotherston advoga a originalidade e a unicidade do texto como fator de distinção:

Como crônica e como construção literária o Popol Vuh possui qualidades que fazem dele, sem dúvida, uma obra capital não apenas do Novo (ou Quarto) Mundo, mas da literatura em geral. Empreender uma leitura atenta e crítica desse texto significa buscar o cerne da América indígena, o que implica, por sua vez, levantar questões filosóficas que não deixam de interpelar a inteligência humana (BROTHERSTON, 2007, p. 12).

Brotherston dedica, em seguida, vinte e duas páginas ao detalhamento da narrativa em si, em um extenso resumo iniciado por uma justificativa da divisão da obra em duas partes, a segunda começando com a criação dos homens de milho (BROTHERSTON, 2007, p.15-37).

Um último ponto fundamental para nossa análise trata das relações entre oralidade e escrita. Essa discussão é iniciada pelo processo de escrita dos códices, que incluem, segundo Brotherston, a hieroglífica maia e o tlacuilolli, significando ‗coisa

105 escrita ou pintada‘ em náuatle, a língua dos astecas, que seria mais internacional por não estar restrito à fonética de uma língua só (BROTHERSTON, 2007, p.11). Vale relembrar que o náuatle funcionava, à época da colonização, como uma língua franca da região mesoamericana.

A partir desse cenário, a origem oral do Popol Vuh:

Tem-se dado, com razão, grande importância ao fato de o Popol Vuh referir- se a si mesmo como um texto originário de um texto anterior, também chamado Popol Vuh, cujos leitores, afirma-se, agora ―escondem sua face‖. Não há nenhuma razão para não aceitar essa afirmação, que é ponderada e corresponde a reivindicações existentes em muitos outros textos das línguas maia e náuatle, os quais se baseiam, de uma maneira ou de outra, nas tradições de escrita mesoamericana. Sem dúvida, certas passagens do texto têm forte qualidade oral, como, por exemplo, o final onomatopaico da segunda era ou idade do mundo e os diálogos ágeis e irônicos entre os Gêmeos e seus antagonistas animais. Ainda assim, parece improvável que a versão em escrita alfabética fosse, na sua totalidade, uma transcrição direta de um original só falado ou cantado. Outras características, contudo, como a estruturação geral dos episódios das idades do mundo e os detalhes políticos da história quiché posterior, têm analogias significativas com a tradição das línguas indígenas (BROTHERSTON, 2007, p.14).

Vários pontos emergem da discussão acima. Primeiramente, temos a noção de que o substrato original oral foi provavelmente submetido a um processo de compilação e construção escrita, o qual não tem seus compiladores apresentados ou discutidos, ou mesmo a finalidade de seu trabalho. Há, ainda, a possibilidade de o material original não ter sido totalmente oral. O único ponto de contato das diferentes interpretações parece ser que o Popol Vuh é, de fato, resultado de uma combinação de narrativas pré- existentes.

Além disso, na apresentação da possibilidade improvável de um original oral também chamado Popol Vuh, Brotherston destaca que seus leitores agora ―escondem sua face‖. O trecho entre aspas nos parece ser uma tradução da expressão ―face saving‖ do inglês, língua materna do teórico-tradutor, a qual pode ser traduzida como ―manter as aparências‖, ou até ―salvar a pele‖46

. Nesse caso, a noção de um texto original oral manteria o status quo da obra, conservando, ou mesmo ampliando seu capital cultural e sua construção enquanto bem simbólico.

46 Cf. Manutenção de segredos e preservação de territórios nos relatos autobiográficos indígenas em

BEARD, Laura Jean. Traduzindo culturas: Questões éticas ao lecionar narrativas de vida de outras culturas. In: SCHNEIDER, Liane e LÚCIO, Ana Cristina Marinho (org.). Cultura e Tradução –

106 As relações com a oralidade e a escrita indígenas são, de fato, marcantes no Popol Vuh. As relações com os gêneros europeus, expressas, por exemplo, na organização de genealogias presente na conclusão da obra, não são tratadas nos paratextos da edição brasileira aqui analisada.

Um último ponto tratado por Brotherston refere-se à questão da escrita indígena, a qual não se resume à escrita hieroglífica maia, como presumiram Edmonson e Tedlock. A região quiché fica em uma ―área externa‖ à região dos hieróglifos e há muitas palavras em náuatle no Popol Vuh, fatores que marcam a discussão da obra enquanto texto fundador guatemalteco.

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