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CAP I – Violência Institucional: definindo o termo

2.1. Autoridade médica

Uma vez delimitada nossa definição conceitual sobre violência, gênero e relações de poder faz-se necessário aprofundar a discussão sobre como esses conceitos se articulam no exercício cotidiano das práticas de saúde. Para fins de análise optamos por eleger como foco para discussão a categoria profissional em saúde que é mais estudada justamente por estar na origem da medicina moderna e, portanto, no topo da hierarquia do poder – a categoria médica, através da figura do profissional médico, propriamente dito. A partir deste profissional discutiremos a autoridade médica nos serviços e quais são as suas bases para o exercício do poder na relação entre o profissional de saúde e a paciente – relação esta sempre atravessada por questões de gênero. Sem ignorar, contudo, que esta autoridade é exercida (e a ideologia médica reproduzida) também pelos outros profissionais, em diferentes níveis, envolvidos nas práticas de saúde. No limite ou nos meandros desta relação, buscaremos captar as condições que possibilitam a ocorrência da violência institucional; o que leva ao seu exercício e como ela se dá.

Vimos com Foucault (1995) que o poder se exerce por meio das relações como uma ação sobre a ação dos outros. No âmbito das práticas de saúde este poder é exercido numa relação hierárquica por definição – a relação profissional de saúde/paciente. No topo desta hierarquia está o médico que é aquele quem dá a

última palavra, ou, dito de outra forma, é quem detém a maior autoridade sobre o corpo, a saúde, o cuidado e o tratamento do paciente. Esta autoridade é, por assim dizer, a fonte do poder médico.

De acordo com Starr (1991), a partir da segunda metade do século XIX a profissão médica passa a assumir cada vez mais uma posição social de maior autoridade cultural e de poder econômico e político. Esta autoridade médica (cultural e moral) sobre a sociedade baseia-se não somente em determinados conhecimentos científicos e tecnologias, como também em certos valores e crenças culturais que são compartilhados como verdadeiros e seu domínio sobre a conduta moral dos sujeitos. Ambos os tipos de autoridade, cultural e moral, portanto, embora freqüentemente estejam juntas, não necessariamente o estarão sempre.

Ainda segundo este autor, os dois pilares de sustentação da autoridade médica são suas fontes de controle efetivo: legitimidade e dependência. A legitimidade baseia-se na aceitação por parte do paciente de que o médico detém um saber legitimado pela ciência sobre o seu corpo que ele próprio não detém. Este saber pressupõe maior competência na prática médica e, por esta razão, a aceitação da autoridade médica implica em uma renúncia do julgamento pessoal por parte do paciente, que deve obedecer voluntariamente. A legitimidade da autoridade médica se dá, principalmente, porque a saúde em nossa sociedade é um valor inequívoco de importância para todos, que historicamente foi monopolizado pela medicina.

A dependência, por sua vez, está pautada no receio de que se venha a sofrer conseqüências desagradáveis se esta autoridade não for obedecida, ou seja, não seguir a orientação médica pode resultar em agravos maiores para a saúde, por exemplo. E há entre ambos, legitimidade e dependência, uma relação dinâmica de

articulação que possibilita a estabilidade nas relações de autoridade: quando uma está ameaçada é a outra que sustenta a autoridade e vice-versa.

Outro ponto importante que queremos destacar aqui na análise que Paul Starr (1991) faz sobre a autoridade médica se refere a uma característica intrínseca de toda e qualquer autoridade de trazer como recurso inerente a possibilidade de uso da persuasão, da sanção, da coação e mesmo da força diante da negação de seu reconhecimento, de uma desobediência ou resistência direta, ao mesmo tempo em que este uso por si só contraria a própria legitimidade da autoridade, colocando-a em suspenso. Esta concepção está de acordo com o conceito de poder para Foucault, ou seja, as relações de autoridade para Starr (1991) e as relações de poder para Foucault (1995) requerem um sujeito não coagido, não anulado em sua subjetividade. O que também vai ao encontro da distinção feita por Arendt (2009) entre violência e poder. Para ela, a autoridade legítima seria uma expressão de poder, se for construída no diálogo livre entre as pessoas. Quando a autoridade precisa de força, sanção ou coerção para ser obedecida, sai do campo de poder e adentramos a violência – a capacidade de dispor dos meios para atingir um determinado fim. A violência, portanto, erode as condições de geração de poder – entendimento e compreensão como fim.

Neste sentido, Starr (1991) nos chama a atenção para os limites da autoridade moral do médico que precisa estar pautada numa ética profissional para manter sua legitimidade. Sobre esta questão Schraiber (1995, 2008;) coloca que tanto a ética quanto a técnica são dimensões da prática médica, e nesta interação a medicina é uma prática social moral-dependente. A formação de bons vínculos no sentido de interesse pelo outro é importante para a efetiva eficácia da técnica, ou seja, o bom

cuidado é produzido quando há uma dependência moral no uso da técnica, e a ética da profissão é realizada no cotidiano. Assim, a reta conduta moral do profissional implica também no reconhecimento dos limites de sua autoridade moral com o paciente e no uso adequado da técnica.

Schraiber (2008) nos lembra que a obediência do paciente à autoridade médica tem como lastro histórico em sua base a confiança que se estabelece nesta relação de interação pessoal. Por esta razão a atual mudança no caráter das relações, pela qual passa a Medicina moderna, lhe imputa uma dupla perda: como um valor ético humano e como necessidade técnica, uma vez que:

A confiança e uma ética de relações que a viabilize são essenciais para o agir técnico do médico, tornando essencial o encontro entre a técnica e a ética (Schraiber, 2008:211)

Sendo assim, segundo esta autora, a medicina na sua conformação atual (a de uma medicina tecnológica) ressalta a dimensão de “técnica tecnologia dependente”, com uma grande valorização da base científica desta tecnologia, ao mesmo tempo enfraquecendo o caráter “moral dependente” da prática que se apóia na interação entre os sujeitos. No entanto, todo agir médico é sempre singular e único porque implica num conhecimento e numa técnica científica articulados com o saber prático (experiência pessoal e profissional do médico) aplicados à singularidade de cada caso (Schraiber, 2008).

(...) o desempenho de um profissional não se alimenta apenas das condições materiais, ou sequer somente de sua sabedoria técnico-científica. Também se faz com base nos dispositivos relacionais, fruto das éticas interativas e comunicacionais

A perda da ética, portanto, conduz ao fracasso técnico e prático, uma vez que engendra a violência (transformando sujeito em objeto) com muito pouca possibilidade de resistência, em função da dependência e legitimidade do saber e prática envolvidos. A erosão da qualidade ética das interações entre profissionais e pacientes é, em grande parte, responsável pela crise de confiança que Schraiber (2008) detecta na medicina tecnológica contemporânea. É neste sentido que buscamos a dimensão da discriminação de gênero na crise da confiança da medicina tecnológica, ou seja, como é que a crise da confiança, que está colocada para a medicina tecnológica, se aplica às questões da medicalização do corpo feminino na assistência ao parto e puerpério e nas questões da violência institucional nas maternidades.

E é justamente no campo dos dispositivos relacionais a que se refere Schraiber que observamos as formas de violência institucional mais difíceis de serem percebidas como tal pelos sujeitos envolvidos, ainda que impliquem de forma bastante clara na anulação da autonomia do sujeito e na sua discriminação por alguma diferença de classe, etnia ou gênero. Estas formas, quando percebidas, são freqüentemente traduzidas no âmbito da maternidade por falas grosseiras e desrespeitosas para com as pacientes e desatenção quanto as suas necessidades tanto de analgesia e uso apropriado de tecnologia como de ajuda para se levantar, locomover, tomar banho, dentre outras – pautadas em estereótipos de gênero que julgam sobre a moral e a vida sexual da mulher ao mesmo tempo em que lhe relegam uma sobrecarga de atribuições ao papel materno.

Martin (2006) nos chama a atenção, neste contexto, para a “tripla dificuldade” que sofrem as mulheres negras de baixa renda: etnia, classe e sexo. O

tratamento diferenciado das mulheres em trabalho de parto por estas condições pode afetar profundamente a experiência de parto destas mulheres que vindas de uma classe já oprimida socialmente verão como esperadas condutas hostis na assistência pública e buscarão resistir a essas condutas dentro do limite que lhe é possível mover-se nesta relação com o profissional de saúde.

Esta dimensão relacional é primordial se pensamos a assistência à saúde como um cuidado integral tal como definido por Ayres:

Uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde (2004:22)

O autor ressalta que sempre há, no encontro entre profissional de saúde e paciente, uma “objetificação” posta em função da técnica que justifica a ocorrência deste encontro. Ou seja, o paciente vai à procura de um conhecimento técnico científico que o profissional detém. Contudo, o encontro entre esses dois sujeitos não deve se resumir ao processo de objetivação de uma das partes, visto que isso anularia a subjetividade da mesma, transformando o sujeito em questão em mero objeto de análise diagnóstica e intervenção, reduzindo a possibilidade de eficácia técnica e sucesso prático desse encontro. Ao contrário, a presença do paciente diante do profissional de saúde lhe demanda elementos que vão além da técnica tecnológica na assistência a esse paciente para a sua efetividade (Schraiber, 1997; Ayres, 2001).

Entretanto, se na prática observamos que estes elementos são freqüentemente negligenciados na assistência ao parto e puerpério, é necessário compreender como

historicamente o corpo feminino, corpo reprodutor por excelência, tornou-se objeto de controle da medicina.