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CAP IV – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.4. O que é violência

4.4.5 Discutindo o conceito de violência institucional

Identificamos nos relatos de maus tratos e desrespeitos dos entrevistados a violência institucional tal como definida por nosso referencial teórico, ou seja, a conversão de uma diferença, ser mulher, ou da diferença entre mulheres, ser pobre e ter muitos filhos, por exemplo, em uma desigualdade, que as coloca em uma situação de inferioridade. Conversão esta, no âmbito da assistência em maternidades públicas carregada de estereótipos de gênero (atravessados por questões de classe), os quais a medicina ajudou a construir, e que nos informam sobre o papel socialmente esperado dessas mulheres como mães, sobre os significados dados à maternidade e ao exercício da sexualidade feminina.

Nesse contexto, a mulher sofre uma dupla objetificação: seu corpo é tomado como objeto de controle e domínio da medicina e como meio para se chegar a um fim – o bebê. Visto como fim último do parto, o bebê, via de regra, é o produto mais importante de todo esse processo, para a mãe e para os profissionais. A esse respeito, Martin (2006) reflete sobre o uso cada vez maior de tecnologias e prescrições médicas sobre a gestante a favor do feto, em detrimento dos próprios desejos e direitos desta. Ou seja, a mulher é deixada de lado, como sujeito, e vista apenas como um corpo reprodutor.

Essa objetificação da paciente na maternidade se dá no contexto da crise da

profissionais e pacientes e uma erosão da qualidade ética de suas interações (Schraiber, 2008). No processo de “objetificação” do outro vemos uma dissociação entre o sujeito (transformado em objeto) e sua subjetividade, sua individualidade. Se o outro – o paciente – não é reconhecido como um sujeito pelo profissional que o assiste, ele não é visto como alguém de direitos e alguém que sofre.

Maturana entende a preocupação ética “como preocupação com as

consequências que nossas ações têm sobre o outro, é um fenômeno que tem a ver com a nossa aceitação do outro” (2009:72). Dessa forma, é preciso incluir o outro no nosso domínio social para que ele seja alvo de nossa preocupação ética, o que está de acordo com o conceito de banalização da injustiça social de Dejours (2007) e do qual nos apropriamos para refletir sobre outro aspecto premente no relato dos entrevistados: a banalização que invisibiliza a violência institucional. Segundo Dejours (2007), para que o sofrimento alheio cause alguma mobilização de indignação no individuo é necessário que esse sofrimento seja percebido como resultado de uma injustiça. Quando essa associação não é feita frequentemente a postura adotada é a de resignação. Abstém-se assim de qualquer responsabilidade pessoal ao se conceber que o sofrimento do outro não é causado por uma injustiça, mas sim por uma questão de causalidade do destino, causalidade econômica ou sistêmica. O autor se utiliza do conceito de “banalização do mal”, de Hanna Arendt, para uma análise da banalização da injustiça social no âmbito do trabalho. De acordo com ele,

A exclusão e a adversidade infligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilização política contra a injustiça, derivam de uma dissociação estabelecida entre adversidade e injustiça, sob efeito da banalização do mal no exercício de

atos civis comuns por parte dos que não são vitimas da exclusão (ou não o são ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da população, agravando-lhes a adversidade. (2007:21)

Neste sentido, se faz passar por adversidade a injustiça que resulta do mal praticado por uns contra outros, favorecidos por uma tolerância social para com este mal e esta injustiça através da sua banalização. Dejours (2007) contextualiza o mal a que ele se refere em sua análise como a tolerância, a cumplicidade do silêncio (a falta de denúncia) e a participação na injustiça e no sofrimento infligidos a outrem:

O mal diz respeito igualmente a todas as injustiças deliberadamente cometidas e publicamente manifestas, concernentes a designações „discriminatórias‟23 e manipuladoras para as funções mais penosas ou mais arriscadas; diz respeito ao despreza, às grosserias e às obscenidades para com as mulheres. (2007:76)

No contexto da assistência nas maternidades podemos identificar esta banalização do sofrimento da parturiente, por exemplo, através da ideologia de naturalização da dor do parto como um preço pelo prazer sexual ou como um destino biológico – uma causalidade ou adversidade a ser enfrentada para que a mulher possa se tornar mãe. A banalização do sofrimento do outro remete à banalização da violência institucional contida nas frases (jargões), de cunho moralista e discriminatório, usadas como brincadeiras; na aceitação da falta de anestesistas de plantão para realização de analgesias durante o trabalho de parto e até mesmo no tom casual com que alguns admitem que a violência institucional seja, de fato, uma rotina nas maternidades públicas do Brasil.

De acordo com Dejours o incômodo causado pelo sofrimento alheio pode mobilizar estratégias de defesa individuais e coletivas de invisibilização deste sofrimento através da sua banalização:

Necessárias à proteção da saúde mental contra os efeitos deletérios do sofrimento, as estratégias defensivas podem também funcionar como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer. Além disso, permitem às vezes tornar tolerável o sofrimento ético, e não mais apenas psíquico, entendendo-se por tal não o sofrimento que resulta de um mal padecido pelo sujeito, e sim o que ele pode experimentar ao cometer, por causa do seu trabalho24, atos que condena moralmente (...) e se ele for capaz de construir defesas contra esse sofrimento, poderá manter seu equilíbrio psíquico (2007:36)

Ao investigar os limites e possibilidades para o exercício da solidariedade, da cooperação e do cuidado nos serviços públicos de saúde, através de uma pesquisa realizada na porta de entrada da emergência de um hospital geral no município do Rio de Janeiro, Sá (2005) identificou a crescente banalização da dor e do sofrimento alheios nesses serviços como um processo que potencializa a baixa qualidade e a dificuldade de acesso aos mesmos. Segundo a autora,

Tal processo se manifesta, por exemplo, na apatia burocrática, no corporativismo e na omissão dos profissionais, na falta de ética, de respeito e de solidariedade na relação entre profissionais de saúde e destes com os usuários/pacientes. O clientelismo político, o fisiologismo e a corrupção também não poupam os serviços de saúde. O saldo deste processo não se traduz apenas em ineficiência, baixa produtividade, baixa cobertura e baixa qualidade dos serviços, mas principalmente, em sofrimentos, seqüelas e mortes que poderiam ter sido evitados (Sá, 2005:31)

A autora conclui que a banalização do mal nos serviços de saúde é em parte uma estratégia de defesa dos profissionais contra o próprio sofrimento, mas também, o resultado da banalização do mal numa sociedade que ela define como estando entre a “impossibilidade da culpa” e a “falta de vergonha”, que faz com que a corrupção corroa cada vez mais os valores éticos fundamentais de nossa sociedade e acabe se tornando o que é esperado e até admirado, através de sua banalização. O mal produzido nos serviços de saúde, portanto, seria um reflexo do mal produzido e agravado na própria sociedade e igualmente banalizado. Sá (2005) chama a atenção para esta “crise social” que se revela pela degradação dos valores sociais e do cuidado com o outro.

No cenário das maternidades públicas apontado pelos entrevistados, no qual conflitam diferentes interesses – dos gestores (através da instituição), dos profissionais e das pacientes – a qualidade da interação nas relações se enfraquece diante da precariedade de recursos, da excessiva demanda por uma rapidez na produção de serviço e de uma segurança, cada vez mais, depositada no uso de recursos tecnológicos como mediadores dessa relação e como solução para esses conflitos. Como apontado por Schraiber (2008), o ideal de uma boa assistência deixa de ser pautado na qualidade ética da interação entre profissionais e pacientes e na confiança resultante desta interação para se basear no maior acesso a tecnologia, que representa um bem em si.

Neste sentido, a melhor humanização para alguns profissionais é dar às pessoas toda a tecnologia que há disponível e, sob esta lógica, a cesárea ou o parto normal “intervencionista” são considerados mais “humanizados”. Ocorre, então, uma

inversão ética da contemporaneidade: o parto normal humanizado é tido pelos profissionais como um parto “abandonado” e a cesárea seria o parto sem dor.

Por outro lado, há também no campo da assistência à reprodução um duplo exercício de poder – médico e de gênero – pelo qual os sujeitos envolvidos estabelecem suas relações, com diversas estratégias de resistência e acomodação por parte daqueles sobre os quais se dá a ação de poder. O uso da violência como instrumento desse poder, para sua manutenção, resulta na própria erosão do poder. Nesse contexto a violência institucional parece ter limites tênues para os profissionais entrevistados, estando, na maior parte das vezes, atrelada a intencionalidade do ato.

A questão que se coloca aqui, portanto, sobre a violência institucional, diz respeito aos limites éticos de uma ação para que ela não resulte em violência. A esse respeito recorremos mais uma vez ao nosso referencial teórico. Segundo Chauí (1998:34),

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência...

Vemos, portanto, de acordo com os relatos dos entrevistados, que a anulação da subjetividade e da alteridade da paciente, a desqualificação de sua fala, de sua liberdade e autonomia aparecem no cotidiano das maternidades públicas, naturalizado e banalizado na cultura institucional. Imersos nesta mesma cultura, que

tem sua fonte não só na medicina, mas também nos valores vigentes da sociedade, profissionais e pacientes a reproduzem e resistem em diversos momentos e de diversas formas.

Assim, como salientou Sá (2005) sobre a banalização do mal nos serviços de saúde, consideramos que a banalização da violência institucional nas maternidades públicas é em grande parte reflexo de um fenômeno social que atinge a todos. Sem mudanças nas relações de gênero e nas relações de poder entre profissionais e usuários, com relações que reconheçam o outro como um sujeito e respeitem seus direitos enquanto tal, a violência institucional continuará banalizada e invisibilizada.