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Violência institucional como uma questão de gênero

CAP I – Violência Institucional: definindo o termo

1.1. Violência institucional como uma questão de gênero

profissional está uma série de preconceitos que, profundamente arraigados e naturalizados na sociedade, fundamentam determinadas concepções e representações acerca da sexualidade feminina, como a de que esta deve ser voltada para fins reprodutivos e a dor do parto é, então, o preço que a mulher paga pelo prazer experimentado no ato sexual.

Assim, nosso referencial de partida será a definição de violência dada por Chauí. Contudo, uma vez que essa autora não discutiu este conceito especificamente para o campo do nosso objeto de estudo (violência institucional no âmbito das práticas médicas e especificamente em maternidades) faz-se necessário adensar nosso referencial teórico a fim de possibilitar a instrumentalização do conceito para nossa análise. Para tanto, propomos olhar para a violência institucional sob duas óticas distintas, porém interligadas: a dos estudos de gênero e a do poder/saber da prática médica sobre os corpos.

1.1. Violência institucional como uma questão de gênero

O conceito de gênero passou a ser utilizado como uma categoria de análise a partir dos anos 60 e 70 pelas intelectuais do movimento feminista, marcando assim sua entrada definitiva no campo acadêmico. Este conceito, ao transformar o sexo em uma variável social e, portanto relacional, rompe com o determinismo biológico dos papéis sociais de homens e mulheres e permite uma abordagem crítica sobre suas práticas cotidianas enquanto resultantes de condicionamentos históricos, sociais, políticos e culturais. Ou seja, as diferenças referentes ao sexo passam a ser

compreendidas como desigualdades construídas socialmente e, desta forma, é possível que sejam apreendidas historicamente (Barbieri, 1991; Giffin e Costa, 1995).

De acordo com Paim (1998) a utilização desta categoria de análise tem a preocupação da desnaturalização não só das identidades sexuais, como também da divisão sexual do trabalho e da desigualdade nas relações entre homens e mulheres. Neste sentido, gênero diz respeito à construção social do sexo – fenômeno natural. E uma vez que toda elaboração sobre qualquer fenômeno natural é uma produção social, também os conceitos de sexo e a natureza resultam de uma construção histórica e cultural. Desta forma,

Não se deve interpretar „gênero‟ como noção unívoca que é determinada do mesmo modo em todos os lugares e épocas, mas como produto da interação de forças sociais (Paim,

1998:33).

Neste sentido, Joan Scott define gênero em duas partes distintas, porém, interligadas. Primeiro no sentido do seu efeito nas relações sociais e institucionais, gênero é definido como um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas

diferenças percebidas entre os sexos (1990:14). Como tal, envolve a articulação de

símbolos culturais com múltiplas representações que podem ser contraditórias (por exemplo, as imagens de Eva e Maria) e conceitos normativos que, numa oposição binária, afirmam categórica e inequivocamente o significado de masculino e feminino e se expressam através de doutrinas religiosas, educativas, jurídicas, políticas e científicas como produto de um consenso social e não de um conflito. Esta normatividade guarda, portanto, um caráter ideológico ao limitar e padronizar as

possibilidades de interpretação de sentido desses símbolos. Em segundo lugar, Scott (1990) considera que o conceito de gênero, tomado como um conjunto de referências, estrutura a percepção e organização de toda vida social concreta e simbólica de cada indivíduo e, por esta razão, é o primeiro campo na constituição dos sujeitos onde a significação do poder se articula.

Na medida em que essas referências estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e na construção do poder em si

(Scott, 1990:17).

Ou seja, gênero é entendido como um lócus de exercício de poder instituído através de uma ideologia dominante com normas que determinam papéis sociais para homens e mulheres pautados na diferença sexual. Para reflexão sobre o conceito de poder em gênero a autora toma como referência os estudos de Michel Foucault.

Desta forma, se considerarmos que o campo da maternidade é por excelência onde se exercita não só a função biológica do corpo feminino, mas uma função social do papel conferido à mulher regulado por uma construção simbólica, toda e qualquer violência neste campo é fundamentalmente uma violência de gênero. E, uma vez que o próprio conceito de gênero está interligado a fatores culturais, sociais, econômicos, políticos e étnicos, já que as mulheres se distinguem de acordo com o contexto social no qual elas estão inseridas, esta violência perpetrada nas maternidades (públicas ou privadas) é atravessada também por estas questões.

É sob esta ótica que abordamos e refletimos sobre a fala dos sujeitos da pesquisa no que se refere às suas experiências: de um lado mulheres, mães, usuárias de serviços públicos de saúde e pacientes submetidas a um modelo biomédico

hegemônico de dominação e controle de seus corpos e sexualidade; de outro lado homens e mulheres que no exercício de sua profissão também estão inseridos neste modelo biomédico e suas normas. Todos, sujeitos concretos que são ao mesmo tempo produtores e reprodutores de representações sociais, normas, valores, códigos simbólicos e hábitos dos grupos sociais aos quais pertencem. Estamos considerando, portanto, que todo individuo é um agente criativo na construção de sua identidade de gênero, ou seja, na forma como se coloca enquanto homem ou mulher em relação às normas da sociedade em que vive, no exercício de suas práticas cotidianas, de sua sexualidade e nas relações de poder nas quais se engendra.