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Estereótipos de gênero e classe na assistência ao parto

CAP IV – APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.3 Cuidado e gênero na visão dos profissionais entrevistados

4.3.4 Estereótipos de gênero e classe na assistência ao parto

Observamos que a imagem que os profissionais trazem em seus relatos das parturientes assistidas por eles, no serviço público ou privado, é permeada por estereótipos de classe e gênero como a dor do parto ser o preço pelo prazer sexual e um exercício da sexualidade fora de controle nas mulheres pobres.

Desta forma, frases utilizadas como jargões no meio revelam uma cultura institucional de banalização da discriminação social; de repressão da sexualidade feminina e de controle da vida reprodutiva das pacientes. Destacamos três frases que revelaram mais claramente esses estereótipos e podem apontar para julgamentos morais atravessados na conduta profissional. O uso desses jargões, ou de posturas profissionais nesse mesmo sentido, foi considerado pela maioria dos entrevistados, tanto os profissionais quanto as puérperas, como um tratamento grosseiro, desrespeitoso e associado à violência institucional, como veremos adiante.

A primeira e a mais conhecida das frases, apontada até pela literatura científica a respeito18 (com algumas variações), é: “Está gritando por quê? Na hora de fazer gostou” ou “está chorando porque se na hora de fazer não chorou”.

Nove dos dez obstetras entrevistados, quatro enfermeiras e três técnicas de enfermagem disseram já ter ouvido esta frase, e algumas de suas variações, ditas diretamente para as pacientes ou entre colegas “nos bastidores”. Uma das enfermeiras confirmou já ter ouvido inclusive em hospital particular diretamente para a paciente. Todos admitiram ser uma fala desrespeitosa para com a paciente por fazer alusão ao exercício de sua sexualidade que é entendido pelos profissionais como algo de fórum íntimo. Frases com este sentido foram definidas como “chulas”, grosseiras, “de baixo calão”. Uma enfermeira (E1) considera que esse tipo de frase é dito mais pelo pessoal da enfermagem do que pelos médicos. Outra (E3), por sua vez, acredita que a frase é dita por todos os profissionais, principalmente entre colegas, longe da paciente, e confirma também já tê-la dito.

18 Na literatura também internacional encontramos diversas variações desta frase com o mesmo

sentido. Na Argentina, por exemplo, diz-se: “bien que te gustó lo dulce, ahora aguántate el amargo” (Arenas, 2008).

“Ele fala isso, sabe, e incomoda profundamente a todos que estão em volta. Sabe? Incomoda a gente de ouvir falar. As pessoas vêm ainda hoje, né... Eu conheço esse médico há vinte anos e ainda hoje ele fala isso. E quando as pessoas vêm me falar “Poxa, você viu o quê que ele falou?”. Outro dia ele foi atender a paciente e ele soltou essa frase. Ele ainda fala isso, sabe? É horrível”. (O10)

“um residente que era típico de fazer isso, ele era nordestino lá não sei dá onde, não me lembro da onde, mas ele sempre usava. (e alguma vez alguma paciente respondeu a ele?) uma paciente respondeu. (e falou o que?) “por que? senhor não gosta, doutor? 19”(e ele falou o que?) ele ficou desconcertado e ficou calado. (E5)

Outra frase, “Não chora não que ano que vem você está aqui de novo!”, também foi ouvida por seis obstetras, três enfermeiras e três técnicas de enfermagem e alguns admitiram usá-la, às vezes, em tom de brincadeira. A justificativa para o seu uso é de que ela faz alusão, primeiro ao fato de que na maioria dos casos a mulher esquece a dor do parto e tudo que sofreu depois que o neném nasce e por isso engravida de novo, e segundo, ao fato de que a população atendida nas maternidades onde trabalham é em sua grande maioria de baixa renda e alto índice de natalidade começando em idades bem jovens. Logo, de acordo com esses profissionais, é realmente frequente que vejam essas pacientes com certa regularidade nos anos seguintes.

“como no serviço público a gente sempre se acostumou a ver mulheres que, assim, em termos de planejamento familiar, nada, sabe? Elas são mal orientadas ou elas são orientadas, mas não seguem, então é muito freqüente você ver...” (O10) “Ah, tá chorando, mas o ano que vem volta”. Até a gente brinca. (...) Porque toda mulher que termina um parto, seja

19 A questão da resistência das pacientes à violência institucional será retomada no tópico sobre a

ele normal ou cesárea, imediatamente diz que nunca mais vai voltar” (O4)

Segundo Teixeira e Pereira (2006), esta concepção da fecundidade da mulher pobre como exacerbada e sem controle que remonta ao séc. XIX já fundamentou políticas de controle de natalidade no Brasil e ainda hoje permanece como um viés na prática assistencial de muitos profissionais. O que se expressa em críticas diretas ou não a essas mulheres por terem mais filhos do que podem sustentar.

Entretanto, dados apresentados na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2004 confirmam queda da fecundidade no Brasil, sobretudo nas classes sociais mais baixas, com menor nível de escolaridade e entre a população negra, tanto na região urbana quanto rural. Ou seja, apesar da coexistência de vários regimes de fecundidade no país e dos diferenciais entre esses regimes, o estudo mostra um declínio sistemático do percentual de mulheres entre 15 e 49 anos com cinco ou mais filhos, ao mesmo tempo em que cresce a proporção de mulheres com fecundidade abaixo do nível de reposição (Berquó e Cavenaghi, 2006).

A terceira frase que destacamos é: “Na hora de fazer não chamou a mamãe, porque está chamando agora?”. Três obstetras entrevistados disseram já ter ouvido esta frase. Duas enfermeiras e duas técnicas também confirmaram já tê-la ouvido dita por médicos na hora do parto. Todos os entrevistados a consideraram desrespeitosa, porém, para alguns, também engraçada. Um obstetra admitiu usar uma variação dessa frase em tom de brincadeira e como forma de “conscientizar a paciente de suas novas responsabilidades”:

“Eu brinco às vezes com o paciente, quando eu vou passar visita alguma coisa aí eu vejo: “Que mordomia é essa de estar com a mãe aqui?”. (...) Elas falam assim: “Eu sou de

menor”. Eu falo: “Ah, é de menor”. Aí eu viro pra mãe e pergunto: “Levou você no dia de namorar, junto? Porque agora no trabalho ela te traz aqui, mas na hora do lazer ela não te chamou, né!”. Então isso é uma forma jocosa de lidar com essa ambigüidade, porque a menina adolescente, ela é adulta pra praticar uma, pra, pra... Pra responder pelo seu corpo, mas ela se sente fragilizada na hora de ter responsabilidade com o, com o produto daquela ingerência com o próprio corpo. Então isso, de uma forma, de uma forma indireta ou de uma forma jocosa, eu tento utilizar pra mostrar pra menina que ela precisa ter responsabilidade com ela, que ela não pode delegar pra uma outra pessoa.” (O6)

Em um estudo sobre o uso do humor na comunicação entre profissionais e destes com as parturientes, em maternidades de 5 hospitais de Milão (Itália), Pizzini (1991) aponta para o uso de piadas e jargões humorísticos como forma de abordar determinados tabus sociais, como a relação entre sexo e nascimento. A autora considera ainda que o humor possa ser usado como forma de socialização em um meio de extrema hierarquização profissional e que sirva também para alívio da tensão nos momentos mais críticos do processo de parto. Em seus dados, Pizzini (1991) encontrou exemplos de desqualificação da dor, da autonomia e do saber sobre o próprio corpo das parturientes através do humor, sempre contendo algum elemento agressivo. Nesse sentido, uma questão a ser ressaltada é a banalização desse tipo de violência muitas vezes entendida como uma brincadeira (de mau gosto ou não) tanto por profissionais quanto pelas pacientes.