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4.4 Modelação e Experiência Vicária

4.4.3 Autorregulação

Considera-se que tanto as disciplinas do campo da performance quanto da área educacional têm como fim último a plena autonomia e emancipação dos indivíduos para que possam atuar sem a dependência de outros para determinar suas ações. "Não apenas dê o peixe, mas ensine a pescar", é um dito bastante conhecido para aqueles que defendem que se deve não somente auxiliar aqueles que precisam de ajuda, mas também dar-lhes autonomia e ferramentas para seu autodesenvolvimento, pois assim também poderão ensinar outros que estiverem na mesma situação inicial que a sua.

Tal conceito de autonomia assemelha-se justamente ao conceito da autorregulação. Através da autorregulação os indivíduos são capazes de aferir seu rendimento pelo tempo investido, esforço dispendido, seu progresso em relação ao que já foi avançado e em relação ao resultado almejado. Levando-se em conta tais características, é possível notar uma proximidade conceitual com o conceito da autoeficácia.

Tais termos, entretanto, guardam suas diferenças. Conforme explicam Azzi e Polydoro (2009), tanto autoeficácia e autorregulação influenciam-se reciprocamente, pois

a auto-eficácia [sic passim] interfere na auto-regulação porque está associada à antecipação, seleção e preparação para a ação. Por sua vez e de modo recíproco, a auto-regulação influencia a crença de auto-eficácia ao fornecer informações sobre o progresso, esforço e tempo despendido na realização da atividade (...). Em síntese, as crenças de eficácia desempenham um papel central na auto-regulação não só porque afetam as ações diretamente, mas também devido ao impacto nos determinantes cognitivos, motivacionais e afetivos (BANDURA, 2001). (AZZI; POLYDORO, 2009, p. 158)

Ao contextualizar a autorregulação para a área educacional, Cavalcanti (2010) sistematiza um modelo cíclico, no qual estão envolvidos quatro processos inter-relacionados: auto avaliação e monitoramento; identificação de meta e planejamento de estratégias; implementação das estratégias selecionadas e monitoramento da precisão em executá-las; monitoramento da relação entre resultados de aprendizagem e estratégia para obter eficácia (CAVALCANTI, 2010, p. 77). Tal sistematização tende a atender diversos campos do conhecimento humano, e um deles que certamente se beneficiaria dessa sistematização – e da própria autorregulação seria a performance musical.

Araújo e colaboradores (2014) trazem justamente à baila o tema da autorregulação para o campo da música, quando advogam a importância da competência da autorregulação da aprendizagem para o músico. Esta capacidade de auto ensino, capaz de preparar, facilitar e controlar a própria aprendizagem é tão importante para o músico quanto a aquisição de competências auditiva ou motoras, sendo determinante para um bom desempenho (ARAÚJO; CAVALCANTI; FIGUEIREDO, 2014, p. 37).

A afirmação dos autores é impactante sobre a relevância fundamental da autorregulação para composição das competências necessárias ao músico para o bom desempenho. Tal concepção é, no entanto, complementada com o alerta de Azzi (2015, p. 15) acerca do risco da utilização dos conceitos da autorregulação advindos do cenário educacional sem a devida contextualização e adaptação ao cenário musical.

O campo da música certamente demanda sua gama de especificidades, tais como o propósito da atividade, a modalidade instrumental, aspectos relativos à performance (agenda, ensaios, apresentações), natureza (profissional / amador), etc. Portanto, a exploração da autorregulação dentro do âmbito musical, ao mesmo tempo em que se apropria das contribuições dos estudos da autorregulação da aprendizagem requer, contudo, uma exploração crítica para uma adequada apropriação para um campo diferenciado como o musical (AZZI, 2015, p. 15).

Por outro lado, Azzi e Polydoro (2009) destacam a interação existente entre a crença de eficácia pessoal e a autorregulação, as quais, em ação recíproca, influenciam padrões adotados pelo indivíduo, definindo suas escolhas, nível de esforço e persistência frente a dificuldades, resiliência diante da adversidade, de vulnerabilidade ao estresse e de depressão (AZZI; POLYDORO, 2009, p. 158). A influência recíproca entre os padrões de autorregulação e a crença de autoeficácia pessoal sugere que a autoeficácia não se restringe a um componente pontual e isolado, mas sim de um conjunto de vários aspectos

interdependentes, tanto externos quanto internos, tanto no comportamento e ações idealizadas para êxito futuro quanto nas dificuldades e fracassos presentes e passados.

Para estas circunstâncias adversas, a que as autoras associam estados de estresse e depressão, um componente tem destaque primordial para a mitigação de suas consequências, bem como para a sua reversão em direção à superação: a resiliência.

4.4.3.1 Resiliência

Frequentemente os indivíduos são confrontados com erros, fracassos e situações adversas em suas atividades, causando muitas vezes frustrações e estados emocionais depressivos, prejudicando sua crença de autoeficácia. Como elemento capaz de atenuar tais situações, a resiliência traz em seus atributos a promoção da consciência comportamental, desempenhando papel fundamental para o êxito das ações humanas em situações adversas. Tais situações – assim como os fracassos e os erros – não devem, no entanto, ser consideradas como resultados desastrosos que comprovem falta de capacidade.

Sob o enfoque da capacidade humana de exercer controle sobre si, Bandura (1997) também destaca a existência de uma eficácia inabalável nos inovadores e reformadores sociais, os quais muitas vezes são objetos de escárnio, condenação e perseguição. Contudo, sua capacidade de superar obstáculos aparentemente intransponíveis sugere a importância da resiliência para a eficácia pessoal. Assim, para Bandura,

a capacidade humana para exercer controle é uma benção mista. O impacto da eficácia pessoal na qualidade de vida depende dos propósitos para os quais é colocada. Por exemplo, as vidas dos inovadores e dos reformadores sociais impulsionados pela eficácia inabalável não são fáceis. Eles são muitas vezes objeto de escárnio, condenação e perseguição, mesmo que as sociedades eventualmente se beneficiem de seus esforços perseverantes. Muitas pessoas que ganham reconhecimento e fama moldam suas vidas superando obstáculos aparentemente insuperáveis, apenas para serem catapultados para novas realidades sociais sobre as quais eles têm menos controle e administram de maneira ruim. (BANDURA, 1997, p. 2. Tradução do autor.)19

Corroborando com a ideia da importância da persistência diante das dificuldades, de maneira a sustentar seus esforços e a recobrar rapidamente o senso de confiança, Cavalcanti (2009) complementa que as pessoas que confiam em suas capacidades, persistem diante das

19 The human capacity to exercise control is a mixed blessing. The impact of personal efficacy on the quality of

life depends on the purposes to which it is put. For example, the lives of innovators and social reformers driven by unshakable efficacy are not easy ones. They are often the objects of derision, condemnation, and persecution, even though societies eventually benefit from their persevering efforts. Many people who gain recognition and fame shape their lives by overcoming seemingly insurmountable obstacles, only to be catapulted into new social realities over which they have less control and manage badly.

adversidades e procuram esforçar-se para atingir seus objetivos, geralmente vindo a alcançar um bom resultado. Elas estabelecem metas desafiadoras e mantêm um forte compromisso em cumpri-las, sustentam seus esforços diante das dificuldades e, embora cometam erros, recobram rapidamente seu senso de confiança, acreditando ser possível exercer controle sobre as situações do cotidiano. Em decorrência disso, sentem menos estresse, sendo menos vulneráveis a estados depressivos (CAVALCANTI, 2009, p. 93).

A capacidade de resiliência pode ser elemento decisivo para os êxitos na vida pessoal e profissional, podendo inclusive ter repercussões críticas capazes de definir os rumos da vida das pessoas mais talentosas. Um exemplo memorável disso é o caso de Sergei Rachmaninoff.

4.4.3.2 A Queda e Superação de Rachmaninoff

Reconhecido como um dos mais influentes pianistas do século XX, Rachmaninoff é também conhecido pelas suas composições com alto grau de dificuldade de execução. Suas mãos largas eram capazes de cobrir um intervalo de uma 13ª no teclado, uma grande vantagem para se tocar amplos intervalos ao piano.

Entretanto, sua popularidade e reconhecimento de hoje não vieram de pronto no início de sua carreira. Seu grande revés veio após o fracasso da performance de sua sinfonia nº 1 que, somado a outras situações adversas, culminou num estado de profunda depressão e bloqueio criativo, paralisando suas habilidades composicionais e criativas. Seu futuro musical estaria comprometido não fosse a intervenção de um homem e suas técnicas psicológicas: seu nome era Nikolai Dahl.

Dahl foi um médico russo, especialista em neurologia, psicologia e psiquiatria, além de ser proficiente violista amador, tendo estudado hipnose na França com Jean-Martin Charcot. Seu curso de autossugestão permitiu a Rachmaninoff sair rapidamente do quadro depressivo e retomar o fôlego em suas composições e performances musicais. A importância que Dahl teve em sua recuperação foi suficientemente relevante a ponto de Rachmaninoff ter a ele dedicado seu concerto nº 2, no qual o próprio compositor também foi o solista, evidenciando sua plena recuperação tanto no âmbito composicional quanto no da performance.

Esse foi um caso extremo de como a mente pode dificultar ou facilitar o desempenho da criatividade e performance musical. No início do século XX a hipnose ainda estava em estudos, não sendo uma ciência totalmente comprovada e científica, razão mesma por Sigmund Freud tê-la utilizado e abandonado posteriormente.

Desde Freud e seus contemporâneos, muito se avançou acerca dos conhecimentos sobre hipnose (ERICKSON, 1980) e outros processos mentais (BANDLER; GRINDER, 1982; BENSON; KLIPPER, 1992; McCRATY et al, 2000), dos quais a motivação e a consciência e controle comportamental ocupam lugar central nos estudos sobre resiliência – ou recuperação de fracassos – e alta performance.